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2. Métodos de ensino da leitura

2.7. Sobre a atualidade do método de João de Deus

João de Deus criou um método de ensino da leitura e uma proposta pedagógica que alicerçava o ensino desta nos mesmos princípios do desenvolvimento da linguagem, de forma natural e assente na compreensão da criança. Também Golbert (1988 citado em Viana & Teixeira, 2007:110) clarifica “que uma boa parte das dificuldades existentes na escola serão

superadas se as metodologias de ensino considerarem os princípios básicos que dirigem a linguagem oral”

Este foi também o alicerce de João de Deus para o seu método de ensino. A primeira condição que o próprio impunha era que o método de ensino teria de fundamentar-se no estudo da fala e, de facto, neste, como em nenhum outro método, se observa a preocupação com a fonética e pela forma como os professores podem auxiliar a criança a descobrir essa unidade fundamental e abstrata que é o fonema. Repare-se que desde as primeiras lições da cartilha, João de Deus recomenda que as crianças sintam e exercitem o ar a passar pelos órgãos fonadores, procurando, dessa forma, que a criança associe os sons às letras, aos pontos de articulação e complementem a noção de fonema. Nas suas próprias palavras, logo ao iniciar a terceira lição da Cartilha Maternal, recomenda: “temos achado útil cobrir e descobrir

alternativamente o [v], nas palavras vai, via etc., fazendo ler ora ai ora vai... A fim de certificar ao principiante o papel que o [v] representa na escrita...” (João de Deus, 1878:5).

As suas explicações pormenorizadas continuam para outras letras, pois a sua visão pedagógica consistia em ajudar o aluno “Cada um tem as suas traças de facilitar o ensino e

ajudar o principiante nas suas dificuldades” (ibidem, p. 5). Por exemplo, para a letra [v] que

ele considerava inequívoca, sem equivalentes e, portanto, a mais perfeita deveria ser ensinada da seguinte forma: se ao proferir demoradamente a letra [a], unirmos o lábio inferior aos dentes

de cima, produzimos o tom que o vê representa na escrita. Mas se nessa mesma posição de lábio e dentes, reprimirmos a voz, limitando-nos só a respirar, então, em lugar de darmos o valor do vê damos o valor do fê...” (ibidem, p.8). De todos os métodos de ensino conhecidos e

no que respeita à preocupação pela consciência do fonema e pela forma de apoiar o aluno a fazê-la não encontramos método que se lhe compare.

No que respeita à classificação do método de João de Deus para o ensino da leitura verifica- se que este, apesar de progredir da unidade letra ou fonema, o que poderia atribuir-lhe a classificação de método sintético ou ascendente é, no entanto, classificado por alguns autores de método interativo por considerar simultaneamente o valor da descodificação e da compreensão na aprendizagem da leitura. Uma dessas autoras, Ruivo (2006), dedicou-se ao estudo da eficácia do método e confirmou o seu substrato pedagógico construcionista, interacionista e atual. Nas suas palavras, a proposta pedagógica representada na Cartilha Maternal,

(…)suporta em si as palavras com a sequência, o rigor e a estrutura que o autor lhe imprimiu de forma a poder, em cada palavra escolhida, transmitir os conhecimentos linguísticos que levarão o aluno a adquirir a competência da leitura através de um raciocínio lógico que o leva quase em simultâneo do processo de descodificação (estratégia do tipo Bottom-up) para o processo de compreensão (estratégia do tipo Top-Down) numa sinergia só possível graças às palavras, qual pedra angular, colocadas sabiamente em cada lição de modo a permitir a relação interativa do leitor com o texto(ibidem, p. 118-119).

Os aspetos visuais também foram valorizados na cartilha maternal através de uma original segmentação das palavras utilizando variações de cor preta e cinzenta, de modo a não apresentar as sílabas separadamente das palavras. Na origem desta tão interessante estratégia está a convicção de João de Deus em não apresentar as sílabas como entidades separadas das palavras nem as letras independentemente das sílabas, no seu dizer: “A leitura, na sílaba, nunca se

interrompe e as letras da mesma cor pertencem à mesma syllaba.” (Deus, 1878: 5) A esta

contexto significativo que é as palavras. Segundo esta conceção o ensino da leitura como uma soma das partes leva à soletração que em nada contribui para o ensino do princípio alfabético nem à leitura, pois para ler aprende-se lendo, vejamos a este respeito a sua opinião:

Há duas soletrações, a antiga e a moderna. A soletração antiga vai chamando as letras pelos seus nomes, para apresentar depois, não a somma desses nomes, mas a somma dos valores dessas letras. Esta soletração é absurda, e desmoraliza o raciocínio do principiante. Como quereis vós que uma alminha, ainda com aquella luz tão pura que traz de Deus, entenda que cê agá á, junto somado é xá?!Isto será ensinar a ler mas é ao mesmo tempo emparvecer. Ora mil vezes analfabeto que idiota. (...) a verdadeira soletração é a leitura

(ibidem, p. 89)

Esta original segmentação silábica que não desmembra a palavra, mas permite a análise das suas partes foi, posteriormente, reintroduzida no método fonomímico de reeducação da dislexia de Paula Teles, dada a importância que para os disléxicos representa a apresentação global das palavras antes da análise das partes.

O método de João de Deus alicerçou-se na compreensão da língua viva apresentando palavras que as crianças conhecessem e outras destinadas a expandir o vocabulário. A compreensão da linguagem exerce uma poderosa influência na aprendizagem da leitura, pois exerce a função retificadora das hipóteses que a criança inexperiente retira dos exercícios de descodificação. Muito anterior ao modelo de aprendizagem da leitura de Goodman (1968), segundo o qual ler é essencialmente um processo de compreensão, João de Deus (1878), quase um século antes, apresentava as razões pelas quais a compreensão, tal como a descoberta do princípio alfabético, auxiliam o processo de aprendizagem. A sua conceção do processo de aprendizagem da leitura deixava antever já na segunda lição da cartilha maternal: “aonde não

chegam as regras, vem em auxílio do principiante a pratica e o estylo da língua” (Deus: 4).

Combina duas componentes, a descodificação e quando esta ainda é imperfeita e insuficiente coadjuva-a a compreensão.

Nós temos julgado inútil dizer que o critério fundamental da nossa prosódia é – ler como se diz: critério sophistico, que não resiste à análise, mas que felizmente a criança, na sua simplicidade, admite de boamente. O alumno folga de rectificar uma leitura fundada no rigor dos dados, pelo que ouve e costuma dizer: um certo instincto prático, um sentimento de utilidade o leva a achar muito bem fundado aquelle dictame fútil. Bói não se diz, bói não é nada; gostosamente corrige e diz bôi.

E o caso é que enquanto outros, acostumados a syllabas vãs, atualmente estropeiam as palavras mais logicamente escritas; o nosso alumno metido aquelle caminho prático, e habituado a entender sempre o que lê, tende naturalmente a dar sentido e alma às combinações da orthographia mais duvidosa, achando uma palavra corrente. (ibidem, p. 22).

3. Métodos globalísticos