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A escola tradicional, transmissora e preocupada com o fazer aprender, está a ser influenciada por teóricos que se preocupam mais em fazer entender que a aprendizagem se processa numa relação entre o indivíduo e o meio. O processo Tyleriano de ensinar com eficiência deverá ser substituído pelo paradigma do aprendiz em ação. Nesta conceção da aprendizagem construcionista o aluno é um ser ativo, construtor do seu próprio conhecimento através da transformação do já existente.

O pensamento construtivista fundamenta-se nas ideias e estudos de dois pensadores: o suíço Jean Piaget e o russo Lev Vygotsky. O fundamental dos seus estudos consistia em compreender o desenvolvimento do indivíduo, ou seja, como evolui de um estado de menor conhecimento para outro de maior conhecimento. Para Piaget, o indivíduo absorve conhecimento a partir de experiências, ações e interações com o meio e com os objetos. As experiências são depois assimiladas, ou seja, interiorizadas. Este processo permanente de alteração da estrutura antiga por uma mais recente resulta na formação da estrutura do pensamento. A passagem de uma estrutura, ou estádio, para a seguinte fazia-se de forma sequencial e inflexível, em que o subsequente assentava, necessariamente no precedente.

A função do professor, segundo esta teoria, consiste em promover ambientes de aprendizagem ricos e estimulantes com objetos diversos para que as crianças desenvolvam as atuais estruturas e se preparem para as aprendizagens subsequentes. O desenvolvimento antecede a aprendizagem, ou seja, é importante observar o estágio de desenvolvimento das funções psíquicas e cognitivas de um indivíduo antes de submetê-lo a um determinado processo de aprendizagem. Moll (1996:48), referindo-se à relação polémica entre aprendizagem e desenvolvimento, acentuou a discórdia de Vygotsky segundo o qual o ensino cria processos de aprendizagem que conduzem ao desenvolvimento e não é necessário esperar pela prontidão biológica para que ocorra a aprendizagem.

A noção de desenvolvimento proximal contém em si duas questões de psicologia educacional: a avaliação das capacidades cognitivas das crianças e a avaliação das práticas de instrução. A primeira refere-se à avaliação do potencial cognitivo da criança e a segunda serve para verificar o seu potencial de desenvolvimento, ou seja, aquilo que a criança consegue fazer com a mediação de um par mais competente. Nesta perspetiva, a instrução exerce um papel

importante na medida em que catapulta competências que estão latentes, ou em fase de zona de desenvolvimento proximal (ZDP). A instrução só é válida se preceder e tiver efeitos no desenvolvimento. São ineficazes as aprendizagens cujos níveis já foram atingidos, uma vez que não criam condições para a formação de outros estádios de desenvolvimento (Fino, 2003).

Centrando-nos nas conceções de Vygotsky sobre a leitura, este considerava que esta é de importância fundamental no desenvolvimento cultural da criança e que deve ser ensinada como uma linguagem, muito para além de desenhar letras e de construir palavras com elas. Sobre as metodologias de ensino da leitura, afirmou:

Até agora, a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática escolar, em relação ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da criança. Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal (Vygotsky,1998:139).

Vygotsky reclamou ainda mais procedimentos científicos para o ensino da leitura, já que,

até à data, a psicologia contemplava a aprendizagem da escrita apenas como um processo motor. Contrariamente a aprender a falar, aprender a ler necessita de treino artificial, atenção e esforços enormes por parte do professor e do aluno. Vygotsky, tal como Piaget, Ferreiro e Teberosky, valoriza a atividade da criança no processo de aprendizagem. Segundo o autor o ensino da leitura e da escrita deveria fundamentar-se na atividade e nas necessidades da criança e não numa atividade sem significação que é imposta pelo professor. O que se deve ensinar é a linguagem escrita e não apenas letras.

No contexto específico da relação construtivismo e aprendizagem da língua escrita, o nome de Emília Ferreiro, pesquisadora Argentina, é incontornável. A sua contribuição consistiu em reorientar a perspetiva da alfabetização como um momento pontual na vida da criança, com um início claramente marcado e que coincidia com a entrada na escola, para um processo de construção que se inicia muito antes da escolaridade e que se faz com a participação do sujeito. As pesquisas de Ferreiro e dos seus colaboradores visavam a procura de esclarecimentos sobre a forma de agir e pensar das crianças de tenra idade, e não alfabetizadas, em contacto com a escrita. Perante o material escrito registaram-se as hipóteses que as crianças colocavam sobre o significado, as problematizações e as reformulações que construíam perante os símbolos escritos que povoam o seu quotidiano. Concluíram que, antes mesmo da entrada na escola, as crianças têm um certo nível de conhecimento sobre a língua escrita, que esses conhecimentos

advêm da exposição aos símbolos escritos, que a aprendizagem da língua escrita é difícil, independentemente da classe social, e que uma aprendizagem mais ou menos facilitada depende da estimulação do meio rico em materiais escritos. Esta será a condição geradora de desigualdades entre a criança proveniente dos meios urbanos e dos meios rurais. O mesmo é dizer que as crianças que provêm de famílias de estrato cultural mais elevado, onde é natural o contacto com a língua escrita mesmo antes da alfabetização, diferem das crianças de baixo nível cultural, para as quais a entrada na escola é, também, a entrada no mundo da comunicação escrita.

A especificidade dos problemas de aprendizagem da leitura carateriza-se pelo facto da criança se mostrar competente nas demais tarefas e ser, aparentemente, incompetente no processo de descodificação ou, por outro lado, a criança tem um desenvolvimento cognitivo dentro da normalidade e encontra dificuldades substanciais nas tarefas escolares.

A aprendizagem da leitura e escrita é um processo de apropriação socialmente constituído e com origem extra-escolar. Antes da iniciação do processo de alfabetização, a escrita evolui na criança através de formas próprias. Cada criança encontra, à sua maneira, a forma de compreender os simbolos gráficos impressos nos objectos físicos do ambiente. O sujeito, segundo esta visão de apropriação, constrói o seu próprio conhecimento para poder apropriar- se do conhecimento dos outros, cria para poder assimilar e assimila para compreender.

Historicamente falando, não restam dúvidas de que a escrita tem uma origem extra-escolar; que o início da sua organização enquanto objecto de conhecimento precede às práticas escolares; que a escrita efectiva evolui na criança através de modos de organização que a escola desconhece, por ter herdado, do tempo da formação dos escrivães, o cuidado pela reprodução fiel. Porque não sabendo como tratar as escritas que se desviam da norma esperada, ignora-as ou reprime-as. (Ferreiro e Palacio (1987:102).

Assim, tanto na perspetiva de Ferreiro e Palácio como na de Piaget, a criança é construtora do seu conhecimento. A abordagem tradicional vê a criança como sujeito passivo, sujeita a um tipo de instrução igual para todos, cujos fracassos na aprendizagem são atribuídos à falta de competência da criança. A criança “ Piagetiana” que Ferreiro fala está no centro do processo da aprendizagem e é designada por sujeito cognoscente que é, no dizer das autoras,:

O sujeito que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia, e trata de resolver as interrogações que este mundo provoca. Não é um sujeito que espera que alguém que possui um conhecimento o transmite a ele,

por um acto de benevolência. É um sujeito que aprende basicamente através de suas próprias ações sobre os objectos do mundo, e que constrói suas próprias categorias de pensamento ao mesmo tempo que organiza seu mundo (ibidem, p. 26).

Também Bettelheim e Zelan (1984) apresentam a tese psicanalítica explicativa dos erros de leitura, bloqueios, inversões de letras ou palavras opondo-se fortemente às teses neurológicas que veem os mesmos erros como perturbações e deficiências. Estes autores interessaram-se pelo ensino da leitura durante o tratamento de crianças profundamente perturbadas que frequentavam a Orthogenic School em Chicago. Observaram que o inconsciente exerce influência sobre a aprendizagem, em especial da leitura, e envolveram-se em pesquisas para determinar as razões psicológicas que levam a que crianças normais sejam incapazes de aprender a ler. Para os autores, as crianças que tiveram no seu ambiente familiar experiências agradáveis com a leitura têm grande facilidade em aprender a ler na escola e o seu sucesso na aprendizagem não está relacionado com os métodos de ensino empregues.

Os autores criticam a forma como a leitura é ensinada atualmente, considerando a descodificação como a parte central do processo de alfabetização. A condição fundamental para iniciar o ato da alfabetização inicia-se antes da entrada na escola e relaciona-se com as atitudes que as crianças adquiriram e mantiveram apesar das experiências educativas. Essa é a razão explicativa porque os filhos de pais elevadamente escolarizados têm vantagem sobre as crianças de famílias culturalmente em desvantagem que não se tornam plenamente alfabetizadas apesar de terem adquirido as capacidades elementares de descodificação e reconhecimento. Salientam que as pobres vivências trazidas de casa podem ser compensadas pelas experiências que a criança ache motivantes. Se, eventualmente a aprendizagem da leitura não for considerada positiva e a criança fracasse, então as consequências são irremediaveis.

Ensinar a ler através de palavras não significativas supõe que não importa o meio através do qual as crianças adquirem as habilidades de descodificação. Pressupõe que as palavras ou frases não significativas automaticamente ensinarão a ler e que só através de repetições a criança aprende a reconhecer. Obviamente que estas suposições não correspondem à visão do sujeito aprendente e construtor de seu conhecimento, pois se uma criança quiser aprender uma palavra ela irá fazê-lo sem esforço, como acontece com o reconhecimento das palavras que povoam o seu quotidiano e que lhe despertam interesse.

Quanto mais jovem e menos intelectualmente maduro for o leitor, mais poderosamente suas emoções afetarão tudo aquilo que ele fizer. Consequentemente, ele não é muito capaz de experienciar coisas independentemente de suas preocupações, e de maneira objetiva, nem pode ele impedir que seu inconsciente se intrometa e distorça aquilo que ele conscientemente tenta compreender (Bettelheim & Zelan 1984:43).

Relativamente ao papel do professor, este deve ensinar a ler através destas frases cheias de significação. Não deve colocar demasiada ênfase na capacidade de descodificação e reconhecimento de palavras. Esse processo mecânico reduz a atividade de leitura a um processo sem valor que é o mesmo que dizer desprovido de magia. Sobre a influência que o professor pode exercer no processo de aprendizagem, os autores Bettelheim e Zelan (1984) exemplificam o caso de Helen Keller, a criança cega e surda cuja história pessoal inspirou o mundo pela sua coragem e determinação em contrariar limitações tão grandes. Helen Keller aprendeu a falar, a ler, e a escrever e chegou a formar-se com distinção na Universidade de Radcliffe. A ajuda da sua professora, Ann Sullivan, foi extremamente importante em todo o processo de desenvolvimento e aprendizagem de Helen. Ann começou por escrever nas mãos de Helen as palavras que para si tinham muita significação como boneca, bolo, cama, colchão, lençol, manta. Diariamente, Helen aprendia cinco a seis palavras e dias depois ainda as recordava, pois eram de tal forma importantes para a sua vida diária que se tornavam significativas. Imaginemos que Ann Sullivan começara por escrever na sua mão as palavras que as crianças aprendem quando iniciam a escolaridade; “A vovó viu a uva”; “O papá tapa o pote”; decerto que Ann não conseguiria aprender a ler nem a escrever.

O ensino da leitura, segundo Bettelheim e Zelan (1984:37), através de uma série de palavras demasiado simples, sem significado emocional e, portanto, desinteressantes, é uma indulgência grave. Acrescentam que quando através destas palavras, por vezes monossilábicas, se constroem histórias demasiado simples, de vocabulário limitado e, consequentemente desinteressantes transformam-se num “ insulto para a criança, a qual sente que está sendo

tratada como uma pessoa estúpida.”

Por fim, a mais elogiosa sentença proferida a favor de uma educação construtivista assente na perceção do aprendiz competente, que é sujeito ativo na construção do seu próprio conhecimento, foi a de Ann Sullivan .”Eles (referindo-se aos sistemas de ensino) parecem estar

construídos sobre a suposição de que cada criança é uma espécie de idiota que precisa ser ensinada a pensar” (ibidem, p.44 ).

A valorização do aprendiz como pessoa, com cultura e vivências próprias, sujeito da sua própria aprendizagem , parece ser o ponto convergente entre os diferentes pensadores de cariz construcionista, mas teve, certamente, o seu apogeu com Paulo Freire. A sua conceção rejeitava a visão de “Ensino em cujo processo o alfabetizador fosse enchendo com suas palavras as cabeças supostamente vazias dos alfabetizandos. Pelo contrário, enquanto ato de conhecimento e ato criador,

o processo de alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito” (Freire, 1989:13).

O processo de aprendizagem da leitura e escrita de Paulo Freire ancorava-se no pressuposto de que todas as pessoas, alfabetizadas ou não, tinham as suas próprias experiências a que chamou de leitura do mundo. O processo de alfabetização consistia numa reconstrução da linguagem escrita sobre a linguagem falada já apropriada pelo sujeito. Isto porque o aprendiz tem conhecimento sobre a linguagem falada, sobre a realidade e o mundo do trabalho antes mesmo de começar a aprender a ler. Esse conhecimento deveria ser objeto de levantamento por parte do professor que se inteirava das condições de vida dos alfabetizandos através do diálogo. Este processo tinha dois propósitos: servia, em primeiro lugar, para a seleção das palavras geradoras e, numa fase posterior, para a compreensão da cultura dos alfabetizandos. A cultura era vista pelo povo como algo que era produzida e utilizada pelas classes instruídas da qual não faziam parte. O processo de alfabetização de Freire fazia uso de gravuras e textos criados sobre a cultura dos próprios aprendizes e não dos educadores. Só após esta fase o professor devolvia aos aprendizes as palavras escritas.

Daí que sempre tenha insistido em que as palavras com que organizar o programa de alfabetização deveriam vir do universo vocabular dos grupos populares, expressando a sua real linguagem, os seus anseios, as suas inquietações, os seus sonhos. Deveriam vir carregadas da significação de sua experiência existencial e não da expriência do educador. A pesquisa do que chamava universo vocabular nos dava assim as palavras do povo, grávidas de mundo. Elas nos vinham através da leitura do mundo que os grupos populares faziam. Depois voltavam a eles inseridas no que chamava e chamo de codificações, que são representações da realidade (Freire, 1989:13)

O processo de alfabetização constituia-se de três fases: uma fase preparatória que consistia no levantamento do universo vocabular durante a qual se consultavam as populações da área onde se faria o processo de alfabetização. As palavras geradoras eram selecionadas neste processo de levantamento. O príncipio subjacente à teoria de alfabetização de Paulo Freire era que as palavras deveriam ser das populações e não dos livros ou das bibliotecas. A segunda fase consistia na seleção das palavras geradoras segundo o critério do estímulo intelectual e afetivo.

Deveriam relacionar-se com experiências da vida dos aprendizes, conter todos os fonemas da Língua Portuguesa, organizarem-se segundo uma sequência gradativa da complexidade fonética e deveriam estar fortemente relacionadas com a realidade cultural, política e social dos alfabetizandos (Barreto, 2004).O trabalho iniciava-se com a apresentação das fichas de cultura. Consistiam em ilustrações de cenas da realidade quotidiana dos aprendizes. Estas gravuras eram exploradas oralmente e permitiam (Barreto, 2004; Freire, 1989) a consciencialização de que os aprendizes “eram cultos porque faziam cultura que eram capazes de aprender; que não eram

inferiores aos educadores” (Barreto,2004:116)