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Anteriormente às grandes descobertas da ciência e da revolução industrial, não eram muito divergentes as opiniões sobre as competências a atingir e sobre os conteúdos a ensinar. O que se aprendia era considerado academicamente legítimo e não era questionado por novas exigências advindas da evolução. Porém este mundo de certeza haveria de ser posto á prova pela tecnologia. As escolas compreenderam que “O que ensinar” deveria ser mais complexo do que o que diziam os sábios. A Primeira grande guerra aumentou a necessidade de operários para tarefas especializadas e com elas a necessidade de treino e de novas competências. A análise das tarefas a executar constituiu uma das primeiras formas de conceção de programas de treino, os quais acelerariam o treino intensivo e as diversas habilitações técnicas. Com o advento da tecnologia e das ciências cai em desuso o currículo racional académico com pressuposto no conhecimento universal de Comenius (1657) onde tudo poderia ser ensinado a todos.

O modelo de currículo de Bobbit aparece em conexão com o modelo de produção fabril, com os movimentos migratórios e a massificação da educação. Tornou-se necessário chegar a educação a muitas pessoas ao mesmo tempo, com alguma eficiência. Os administradores da educação racionalizaram o processo de construção e desenvolvimento curricular. Segundo este modelo não há diferença entre aluno e produto acabado e o “currículo é a especificação precisa

de objectivos, procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que possam ser precisamente mensurados” (Silva, 2000:11). O modelo curricular de Bobbit foi depois

adaptado pelo modelo de Tyler, também este muito preocupado com os objetivos, conteúdos, atividades e avaliação de acordo com a natureza das disciplinas e os fins propostos.

Definindo tão claramente esses resultados educacionais que se têm em vista, o elaborador do currículo dispões do mais útil conjunto de critérios para seleccionar conteúdos, sugerir actividades de aprendizagem, decidir da espécie de procedimentos de ensino que serão adotados, e mesmo dar execução a todas as fases ulteriores do planejamento do currículo. (Tyler, 1978:56).

O modelo proposto por Tyler é essencialmente técnico, foca-se nos aspetos da organização e desenvolvimento do currículo. Se o racionalismo académico centrava o currículo nas preocupações com “O que ensinar?” e “Qual é o conhecimento válido?”, o modelo de Bobbit e Tyler centra-se no “Como ensinar?”. Com Bobbit e Tyler surge a teoria da Instrução ou Racional Tyler que resume o currículo a quatro questões básicas, designadamente:

Que objectivos educacionais deve a escola procurar atingir? Que experiências educacionais podem ser oferecidas que tenham probabilidade de alcançar esses propósitos? Como organizar eficientemente essas experiências educacionais? Como podemos ter a certeza de que esses objectivos estão sendo alcançados? (Tyler,1979:1)

Estas questões constituem a base racional de análise dos problemas de currículo e ensino, e originaram a expressão Racional Tyler. Transpostas para a prática educativa equivalem à denominação: objetivos, conteúdos metodologia e avaliação. Tyler reforçava a necessidade de formular corretamente os objetivos de modo a serem observáveis e mensuráveis. Os objetivos eram atingidos quando fossem observados no comportamento do indivíduo. A diferença que emerge em relação ao modelo de Bobbit é o seu carácter circular em que os resultados finais influenciam a formulação de outros objetivos. Os modelos tecnocráticos deBobbit e Tyler e o progressista de Dewey, são designados de teorias de “aceitação, ajuste e adaptação” (Silva, 2000:27) que seriam contestadas a partir dos anos setenta com os movimentos de “reconceptualização do currículo”.

Um dos críticos do currículo, Louís Althusser, começaria por fazer uma associação entre currículo e ideologia. Através da sua obra Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (1970), Althusser, um marxista1, argumenta que a sociedade capitalista não se sustentaria sem

mecanismos e instituições encarregadas de garantir o Status Quo. Essa força de repressão ou manutenção era exercida pelos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Os aparelhos ideológicos especializam-se na missão de reprimir, como o exército, enquanto outros especializam-se na missão ideológica como a escola, os Mass media, a religião e a família. O poder ideológico é utilizado para o controlo das massas de forma tão natural que os indivíduos

1De acordo com a tradição marxista, o estado é uma força de repressão executiva e repressiva ao serviço da classe dominante. O proletariado deve tomar o poder do estado para apoderar-se dos meios de produção da Burguesia. Numa fase posterior a luta do proletariado deve resultar numa substituição dos aparelhos e do próprio Estado.

são levados a aceitar essas instituições como boas e desejáveis. A produção e disseminação da ideologia são feitas de modo privilegiado pela escola, que está ao serviço da classe dominante. O aparelho ideológico escolar está ao serviço da burguesia, classe dominante sobre o proletariado, que a utiliza não nos interesses da igualdade social. A escola tem um papel fundamental na disseminação da ideologia dominante porque ocupa grande parte da população por um período de tempo relativamente extenso. A burguesia atua através do AIE escolar para servir os seus interesses, perpetuar a divisão de classes entre os capitalistas e o proletariado. Nas palavras de Tomáz da Silva,

A escola actua ideologicamente através do seu currículo, seja de uma forma mais directa, através das matérias mais susceptíveis ao transporte de crenças explícitas sobre a desejabilidade das estruturas sociais existentes, como Estudos Sociais, História, Geografia, seja de uma forma mais indirecta, através de disciplinas “mais técnicas” por, como Ciências e matemática. (Silva,2000:29)

Tomás T. da Silva refere que as “relações entre currículo e multiculturalismo não podem ser

separadas das relações de poder” (ibidem, p.89) A compreensão antropológica da cultura

contribuiu para criar a ideia de que não é possível hierarquizar as culturas. Nas perspetivas criticas o multiculturalismo não pode ser separado das relações de poder porque é o poder que distingue entre as culturas dominantes e as dominadas.

Para a concepção pós-estruturalista, a diferença é essencialmente um processo linguístico e discursivo. A diferença não pode ser concebida fora dos processos linguísticos de significação. A diferença não é uma característica natural: ela é discursivamente produzida. Além disso, a diferença é sempre uma relação: não se pode ser “diferente” de forma absoluta; é-se diferente relativamente a alguma outra coisa, considerada precisamente como “não-diferente” (ibidem, p. 89-90).

Sendo a diferença um rótulo simbólico, linguístico e cultural que ocorre numa sociedade, então ela está também sujeita às relações de poder que fazem que adquira um carácter negativo e prejudicial ou positivo e benéfico. Tomás T. da Silva acrescenta que há diferença porque há poder. Vejamos o exemplo da descoberta e ocupação da América pelos europeus. Decerto que os nativos americanos não sofriam de preconceitos raciais étnicos. Essa diferença que levou à aniquilação do povo nativo americano estabeleceu-se porque o dominante exercia sobre ele uma forte relação de poder, alicerçada pelo saber e utilização de técnicas de fogo sobre os inocentes. Um currículo com preocupações com a diversidade precisaria ensinar valores como tolerância e respeito e insistiria em perceber como é que essas diferenças são produzidas.

Paulo Freire (1971) problematiza a educação como um processo de libertação do oprimido. O oprimido é a pessoa que ainda não encontrou a sua Palavra, uma forma filosófica de dizer que ainda não encontrou a consciência e sua forma de agir sobre o mundo. A conscientização é um estado antagónico ao estado de silêncio em que o homem adota uma forma crítica, em parceria dialógica com o outro. Esta visão capacitadora do ser humano enquanto sujeito que adota uma visão crítica, da sua realidade pessoal e das existentes está em oposição a uma visão “bancária”da educação cujo fim último é colocar conteúdos num depósito para serem utilizados futuramente. Paulo Freire referindo-se à influência política sobre as escolas afirmou:

Os lares e as escolas, primárias, médias e universitárias, que não existem no ar, mas no tempo e no espaço não podem escapar às influências das condições objectivas estruturais. Funcionam em grande medida nas estruturas dominadoras, como agências formadoras de futuros “invasores”. (Freire, 1971, p.216)

Ainda se referindo à determinação do saber pelos poderosos, a posição assumida por estes era absolutamente totalitária e impregnada de preconceitos, tentando, tal como partilham os teóricos da reprodução, legitimar a dominação como algo necessário e benéfico. “Não há que ouvir o povo para nada, pois que, incapaz e inculto, precisa ser educado por eles para sair da indolência que provoca o subdesenvolvimento” (ibidem, p.218). Partilhando da visão de Althusser, Bourdieu & Passeron

(1970) concebem a sociedade como um sistema de relações entre classes baseadas em interesses materiais, que através da força simbólica e dissimulada reforçam os interesses dos dominantes. O poder material é reforçado e convertido em poder simbólico através da dominação e legitimação pela violência dissimulada.

Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força. (ibidem, p.25)

O domínio cultural propaga-se através da ideologia dos Mass media, da religião, da arte, da família e da escola. A ação pedagógica consiste, portanto, numa imposição arbitrária da cultura dos grupos ou classes dominantes aos grupos ou classes dominadas. “Toda acção pedagógica

(AP) é objectivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural” (ibidem, p.26). Os autores demonstram com esta teoria o

inconformismo, desajustamento à ideia de educação e escola como fenómeno independente e neutro. O mesmo seria asseverado por Apple que dirige a sua análise crítica à escola, ao currículo e aos professores.

A institucionalização da escola como serviço público resultou de uma necessidade associada à transformação das condições de trabalho decorrentes da revolução industrial. O movimento de pessoas para os centros de produção industrial transformou não só a sociedade como o próprio ato educativo. O ensino que até outrora se concebia como um ato natural, espontâneo com fortes ligações ao seio familiar, passa a ser organizado por imperativos de educação de grandes massas com fortes ligações ao modelo de gestão da fábrica. A necessidade que as crianças se adaptassem ao modelo de produção fabril com controlo e disciplina coletiva criou uma escola, a conceção de currículo e a identidade do professor fortemente marcada pela lógica do processamento de um produto (aluno) com o mínimo de custos e eficácia. Nesta perspetiva também o ensino e o currículo deveriam organizar-se de forma científica sempre em vista à consecução dos objetivos claramente observáveis e de acordo com um processo ordenado e sequencial. Estávamos na era da gestão científica do currículo que concebia o ensino numa perspetiva behaviorista, com insistência na consecução dos objetivos e na organização das experiências profissionais que melhor os realizassem. O papel do professor seria o de “um mero

técnico de instrução cujo papel seria o de traduzir objectivos gerais, determinados algures, em objectivos comportamentais a aplicar dentro da sala de aula. Não lhe cabia a si questionar sobre o que era suposto ensinar.” (Sousa, 2004: 169). Segundo este modelo de racionalidade

técnica, a atividade do professor meramente instrumental, mediador entre o produto e os objetivos deixou algumas marcas na própria forma dos professores interpretarem a sua ação e também na formação inicial dos futuros professores.

A maior parte da investigação educacional (…) desenvolveu-se a partir desta concepção epistemológica da prática entendida como racionalidade técnica ou instrumental. A concepção do ensino baseada no paradigma processo-produto, a concepção do professor como técnico e a formação de professores por competências são indicadores eloquentes da amplitude temporal e espacial do modelo de racionalidade técnica. (Gómez, 1997:

98)

Os movimentos de crítica à racionalidade técnica do currículo iniciados pelos trabalhos e Bourdieu & Passeron, em 1964, de Paulo Freire, em 1971, e posteriormente Michael Apple, em 1999, alertaram para a necessidade de questionar e desconfiar do papel da escola, que

supostamente de forma inofensiva, escolhe o conjunto de ideias que foram selecionadas por alguém com o objetivo de hierarquizar e dominar os indivíduos. O papel da escola é fortemente contestado pelo fracasso da sua intenção democrática e de mobilidade social e acentua, em conjunto com os professores de forma consciente ou inconsciente, as relações sociais de dominação e subordinação com a participação dos professores que os treinam no estabelecimento dessas relações. Em Portugal, a necessidade de conscientizar os professores para a reflexão sobre o seu papel na reprodução e estratificação social é evidenciado por Jesus Maria Sousa “O currículo tem estado, de uma forma mais ou menos oculta, permeável às forças

do poder hegemónico, seja ele político, social, económico ou cultural. (…) todo um processo de reprodução e estratificação social, que é posto em prática com a conivência, ainda que muitas vezes inconsciente, dos professores” (Sousa, 2004: 165). Decorrente deste

questionamento impõe-se a necessidade de refletir e reconhecer que uma nova relação do professor com o currículo, e por sua vez de novas conceções sobre a profissionalidade docente, se tornam necessárias.