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A DOUTRINA DE MAQUIAVEL

No documento SAHID MALUF - Teoria Geral Do Estado (2013) (páginas 106-109)

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO —

2. A DOUTRINA DE MAQUIAVEL

Nicolau Maquiavel, nascido em Florença em 1469, foi o mais avançado e influente entre os escritores da Renascença. Foi secretário da segunda chancelaria do Domínio senhorial e do Ofício

dos dez da liberdade e da paz até 1512.

Escreveu Maquiavel a obra Discursos sobre Tito Lívio , em que glorifica a república romana e, baseado nos exemplos tirados da sua história, deduz os meios pelos quais podem as repúblicas expandir-se e durar.

Sua obra principal, denominada O príncipe, foi publicada em 1531, quatro anos depois da sua morte. Afirma-se que foi com o imprimatur da autoridade eclesiástica. Maquiavel tinha dedicado a obra a Juliano de Medicis, mas, em razão do falecimento deste, outra dedicatória foi feita a Lourenço

de Medicis, sobrinho do Cardeal Giovani de Medicis, que seria logo depois o Papa Leão X. Ao que tudo indica, Maquiavel teria destinado a sua obra a todos os componentes da Casa dos Medicis, detentora do Domínio Senhorial de Florença, prestigiada pelo Papado e uma das mais poderosas oligarquias da Itália. Através da Casa dos Medicis esperava Maquiavel que fosse realizado o seu sonho de unificar os Estados italianos, formando uma nação poderosa capaz de restaurar as glórias do cesarismo.

Entretanto, essa ligação direta ou indireta com o Cardeal Giovani de Medicis, posteriormente elevado ao sumo pontificado romano, não envolve a Igreja na publicação da obra, pois a Casa dos Medicis era antes de tudo uma oligarquia política e guerreira, dominadora de Florença e uma das mais influen-tes entre as de todos os Estados italianos. Aliás, a Igreja romana, pelo pronunciamento do Arcebispo de Cantuária, desde logo considerou O príncipe como obra escrita pela mão do diabo. O escritor foi denunciado em 1557, como impuro e celerado, pelo Papa Paulo IV, e em seguida o Concílio de Trento o condenou post mortem, colocando o seu nome no Índex.

Nessa obra Maquiavel se desliga de todos os valores morais, tradições e princípios éticos, para pregar o oportunismo desenfreado e o cinismo como arte de governar. Analisando friamente as qualidades que devem orientar a ação do Príncipe, aconselha-o a mentir, a praticar toda sorte de crueldade, e ao mesmo tempo dissimular e fazer crer que a sua conduta é virtuosa. E acrescenta: o

cuidado maior de um Príncipe deve ser o da manutenção do seu Estado; os meios que ele utilizar para esse fim serão sempre justificados e terão o louvor de todos, porque o vulgo se deixa impressionar pelas aparências e pelos efeitos — e o vulgo é quem faz o mundo.

O Príncipe, diz Maquiavel, deve ser ao mesmo tempo amado e temido. Mas, como isso não é sempre possível, é melhor que se faça temido, isto porque, dos homens em geral, se pode dizer que

são ingratos, volúveis, falsos, tementes do perigo e ambiciosos de ganho. Enquanto se lhes fazem benefícios são todos fidelíssimos: oferecem seu sangue, seu dinheiro, sua vida, seus filhos, contanto que a necessidade esteja longe, mas quando esta chega, então se revoltam. O Príncipe que confia nas palavras dos homens sem procurar se garantir por outro lado , está perdido; porque as amizades que se conseguem, não por grandeza d’alma, mas por dinheiro ou favores , são, embora merecidas, amizades falsas que não podem ser levadas em conta na hora da adversidade.

... acima de tudo deve-se evitar despojar as pessoas dos seus bens, pois o homem esquece mais depressa a morte de seu pai do que a perda do seu dinheiro.

... se é preciso ofender alguém, que a ofensa seja de tal forma que não possibilite vingança. ... quando um Príncipe está à frente do seu exército , com uma multidão de soldados às suas ordens, então é absolutamente necessário que ele não dê a menor importância à pecha de cruel.

É bom que se saiba que existem dois modos de combater: pela lei ou pela força; o primeiro é próprio dos homens; o segundo, das feras; mas como sucede que o primeiro muitas vezes não basta, convém recorrer ao segundo.

Em suma: ao Príncipe tudo é permitido, até mesmo a infâmia, a hipocrisia, a crueldade, a mentira, contanto que atinja o seu escopo. Todos os meios que forem por ele utilizados no exercício do poder são admissíveis e justificados. A natureza humana e as circunstâncias de cada momento indicam os meios e os instrumentos de que o Príncipe deve lançar mão.

Uma das finalidades que Maquiavel tinha em vista, como já nos referimos, era a de libertar o seu país do domínio externo, porque, diz ele, ad ognuno puzza questo barbaro dominio. Com o

pensamento voltado para esse fim, sugeriu o florentino meios imorais, baixos, repugnantes, mas possivelmente adequados ao momento histórico. Sobretudo, condizentes com a natureza humana, pois o próprio escritor afirmou que os seus conselhos perderiam a razão de ser, se porventura todos os homens fossem bons.

O brilhante sociólogo e publicista cearense, Abelardo Montenegro, em sua monografia Maquiavel

e o Estado, focalizando a obra de Maquiavel pelo ângulo acima referido, observa, com razão, que

“ele não firmou princípios para todos os séculos e para todos os homens. A generalidade dos seus princípios subordinava-se à permanência daqueles fatores que o levaram a fazer tal inferência. Enquanto os homens forem maus, quem quiser conservar o Estado terá que agir conforme sua preconização. E os séculos posteriores deram razão ao escritor florentino”.

Sem embargo de ter sido o teórico do absolutismo monárquico, Maquiavel é considerado o fundador da ciência política moderna, pois as suas obras contêm os princípios doutrinários sobre os quais o Estado moderno assentou as suas bases.

Para Maquiavel toda organização política tem que partir do fato de que todos os homens são fundamentalmente maus; e essa é a razão por que a sua doutrina escandaliza os coevos quando liberta o Príncipe dos laços morais, desde que esteja em jogo o interesse do Estado — acentua Abelardo Montenegro.

Com efeito, entre as filosofias de Hobbes e Rousseau, diametralmente opostas no tocante à natureza humana, o pensamento político moderno inclina-se indisfarçavelmente para a teoria do

homo homini lupus... que parece mais conforme com a realidade e também com os pressupostos

legais que orientam a estrutura jurídica do Estado moderno. Repelem-se o Leviatã e O príncipe, pelo seu realismo chocante, no plano doutrinário, quando é certo que por eles se orientam os próprios Estados democráticos. É que nestes a prepotência se exerce em nome da liberdade. Talvez haja razão no que foi dito por Maquiavel: o vulgo só se impressiona com as aparências; e o vulgo é quem faz

o mundo.

Essa verdade, aliás, foi desprezada pelo escritor, em relação à sua obra. Se ela teve acolhida nos meios científicos, pelo seu conteúdo, a ponto de ser considerada como marco inicial do direito público moderno, o vulgo a condenou pelas aparências, pelos exageros da linguagem e pelo seu acentuado teor de cinismo. Se os mesmos princípios fossem enunciados com um certo eufemismo o autor não seria tão maquiavélico como parece...

No que tange à atuação do Príncipe ou governante para defender e conservar a vida do Estado, onde a linguagem do escritor florentino é mais revoltante, os princípios traçados correspondem com a realidade. Já diziam os romanos que salus publica suprema lex est. E o Padre Antônio Vieira, em uma das fulgurações do seu gênio, pronunciou esta frase lapidar: os reinos, não os pesa a Justiça na

balança; mede-os na espada.

Muitos escritores, finalmente, exaltam a doutrina de Maquiavel como “a mais bela e a mais plena afirmação da moralidade política”, como vemos em Carlo Curcio (La modernità de Machiavelli). Essa doutrina não foi somente o sustentáculo do absolutismo monárquico que surgiu no limiar do mundo moderno. Em pleno século XX refloriu nos Estados autoritários. O próprio Mussolini, escrevendo Prelúdios a Maquiavel, em 1924, disse que no Estado fascista o maquiavelismo estava mais vivo do que na época do seu aparecimento.

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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO — VII

No documento SAHID MALUF - Teoria Geral Do Estado (2013) (páginas 106-109)