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1. Noção. 2. A doutrina de Montesquieu. 3. Unidade do poder e pluralidade dos órgãos de sua manifestação.

1. NOÇÃO

A divisão do poder de Estado em três órgãos distintos (Legislativo, Executivo e Judiciário), independentes e harmônicos entre si, representa a essência do sistema constitucional. Uma Constituição que não contenha esse princípio não é Constituição, como afirmaram os teóricos do liberalismo.

Diga-se inicialmente, por conveniente dizê-lo, que se não trata aqui da divisão material do poder de governo em vários departamentos (Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Agricultura etc.), pois tal divisão é de natureza burocrática e pertinente ao direito administrativo.

Objeto deste ponto é o princípio da divisão funcional do poder de soberania em três órgãos, pelos quais ela se manifesta na sua plenitude: um que elabora a lei (Poder Legislativo), outro que se encarrega da sua execução (Poder Executivo) e o terceiro (Poder Judiciário), que soluciona os conflitos, pronuncia o direito e assegura a realização da justiça.

Nos Estados monárquicos antigos, medievais, e até mesmo no começo da idade moderna, bem como nas primitivas repúblicas gregas e romanas, não havia, em regra, divisão funcional do poder de governo. Naquelas o monarca, e nestas as assembleias populares acumulavam as funções de legislar,

executar as leis e julgar as controvérsias. Entretanto, já os filósofos antigos cogitaram da limitação

do poder de governo. Platão, no Diálogo das leis, aplaudindo Licurgo por contrapor o poder da

Assembleia dos Anciãos ao poder do Rei, doutrinou que “não se deve estabelecer jamais uma

autoridade demasiado poderosa e sem freio nem paliativos”. E Aristóteles, em sua obra Política, chegou a esboçar a tríplice divisão do poder em “legislativo, executivo e administrativo”.

Na antiga república romana o consulado, a questura, a pretura e as magistraturas menores, todas elas, eram exercidas por dois magistrados com poderes iguais, o que constituiu, de certo modo, um sistema prático de limitação do poder pelo poder: dualidade de magistrados com poderes iguais, cabendo a cada um, qualquer deles, em iguais condições, a totalidade do poder. O direito de veto de um magistrado contra a decisão do seu par correspondia, embora de maneira empírica, ao moderno processo constitucional.

Continuando as elocubrações dos filósofos gregos, John Locke tratou do assunto com relativa amplitude, aconselhando a divisão do poder em quatro funções. Além desse líder inglês, outros pensadores, notadamente Bodin e Swift, desenvolveram a velha tese em função das teorias racionalistas.

A preocupação constante dos teóricos foi sempre de evitar a concentração de todo o poder numa só pessoa ou num só órgão.

Somente no século XVIII, porém, Montesquieu, autor da obra famosa O Espírito das Leis (1748), que alcançou 22 edições em 18 meses, sistematizou o princípio com profunda intuição. Coube-lhe a glória de erigir as divagações filosóficas dos seus predecessores em uma doutrina sólida, que foi desde logo acolhida como dogma dos Estados liberais e que permanece até hoje sem alterações substanciais. Antes mesmo dos Estados europeus, a América do Norte acolheu com entusiasmo a fórmula do genial escritor. A primeira Constituição escrita que adotou integralmente a doutrina de Montesquieu foi a de Virgínia, em 1776, seguida pelas Constituições de Massachussetts, Maryland, New Hampshire e pela própria Constituição Federal de 1787. Reafirmaram os constitucionalistas norte-americanos, de modo categórico, que a concentração dos três poderes num só órgão de governo representa a verdadeira definição de tirania:

Quando na mesma pessoa ou corporação, o poder legislativo se confunde com o executivo, não há mais liberdade. Os três poderes devem ser independentes entre si , para que se fiscalizem mutuamente, coíbam os próprios excessos e impeçam a usurpação dos direitos naturais inerentes aos governados. O Parlamento faz as leis, cumpre-as o executivo e julga as infrações delas o tribunal. Em última análise, os três poderes são os serventuários da norma jurídica emanada da soberania nacional.

Assim, o princípio de Montesquieu, ratificado e adaptado por Hamilton, Madison e Jay, foi a essência da doutrina exposta no Federalist, de contenção do poder pelo poder, que os norte- americanos chamaram sistema de freios e contrapesos.

A revolução francesa proclamou o princípio nos seguintes termos: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não estiver assegurada, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição” (Declaração dos Direitos do Homem, art. 16).

A Constituição francesa de 1848, como as anteriores, reafirmou o princípio de maneira incisiva: “a separação dos poderes é a primeira condição de um povo livre”.

No Brasil, onde o constitucionalismo surgiu concomitantemente com a independência, foi sempre observada a divisão tríplice do poder. Aliás, a Constituição Imperial de 1824 anunciou o princípio de modo enfático, declarando no seu artigo 9º que “a divisão e harmonia dos poderes políticos é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece”.

Essa separação de poderes não pode ser entendida da maneira absoluta como pretendiam, nos primeiros tempos, os teóricos do “presidencialismo puro” norte-americano. Nem decorre da doutrina de Montesquieu que cada um dos três clássicos poderes deva funcionar com plena independência e plena autonomia, fechado em departamento estanque. Melhor será falar-se em separação de funções. A divisão é formal, não substancial. O poder é um só; o que se triparte em órgãos distintos é o seu exercício.

3. UNIDADE DO PODER E PLURALIDADE DOS ÓRGÃOS DE SUA

MANIFESTAÇÃO

Em verdade, o poder de soberania, intrinsecamente, substancialmente é uno e indivisível. Ele se manifesta através de três órgãos estatais formalmente separados. Dos três órgãos defluem três categorias diversas de manifestação típica do poder soberano. Como observa Kelsen, há unidade do poder estatal e pluralidade das suas formas de manifestação.

A soberania é realmente, necessariamente, una e indivisível. Ora, o Estado é a organização da soberania, e o governo é a própria soberania em ação. O poder, portanto, é um só, uno e indivisível na sua substância. Não pode haver duas ou mais soberanias dentro de um mesmo Estado, mas pode perfeitamente haver órgãos diversos de manifestação do poder de soberania. Cada órgão, dentro da

sua esfera de ação, exerce a totalidade do poder soberano. Em outras palavras: cada ato de governo,

manifestado por um dos três órgãos, representa uma manifestação completa do poder.

Explicando esse fato, Kant parodiou o dogma da Santíssima Trindade, dizendo que o Estado é uno e trino ao mesmo tempo... A aparente confusão, porém, pode ser facilmente desfeita, colocadas as coisas nos seus devidos termos: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são poderes independentes no sentido literal da palavra, já que devem ser harmônicos e coordenados entre si. São órgãos de manifestação do poder de soberania nacional, que é, na sua essência, uno e indivisível. Cada um, na esfera da sua função específica, exerce a totalidade desse poder. Como o corpo humano que dispõe de vários órgãos e sentidos (visão, audição, dicção etc.) sujeitos ao fulcro de uma só vontade, o Estado manifesta a sua vontade, o seu poder, através desses três órgãos que compõem a sua unidade. Cada um dos três poderes, isoladamente, sem a correlação e a integração dos dois outros, não chegaria a expressar o poder do Estado.

Por isso mesmo, a divisão formal e funcional (não substancial) do poder de Estado repele o significado literal do termo independente. Os três poderes só são independentes no sentido de que se organizam e funcionam separadamente, mas se entrosam e se subordinam mutuamente na finalidade essencial de compor os atos de manifestação da soberania nacional, mediante um sistema de freios e

contrapesos, na expressão dos constitucionalistas norte-americanos, realizando o ideal de contenção

XL

No documento SAHID MALUF - Teoria Geral Do Estado (2013) (páginas 171-174)