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TEORIA DE LÉON DUGUIT

No documento SAHID MALUF - Teoria Geral Do Estado (2013) (páginas 84-88)

JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO —

2. TEORIA DE LÉON DUGUIT

Duguit reduz o Estado a uma expressão simplíssima, tanto que o define como “uma sociedade onde vontades individuais mais fortes se impõem às outras vontades”. Perfilha, como se vê, a teoria da força, em sua essência, desenvolvendo o pensamento de Gumplowicz.

Sua doutrina acolhe um conceito encontrado na filosofia de Aristóteles, referindo-se a que o Estado é formado de governantes e governados. Partindo desse fato facilmente aceitável, chega Duguit a construir a sua teoria eminentemente subjetiva e profundamente impressionante, que pode ser condensada no seguinte resumo: A organização política do Estado repousa na diferenciação

entre governantes e governados; a classe dos governantes, dispondo de uma maior força, impõe a sua vontade aos governados.

Não obstante haver certa aparência de verdade, não é juridicamente certo nem democraticamente admissível que o Estado seja formado por duas classes antagônicas, uma dirigente e outra dirigida.

Também não é exato que o fenômeno governo possa ser reduzido a uma simples manifestação de vontades pessoais. O poder de governo, em verdade, baseia-se na lei que é expressão da vontade geral.

O que distingue o regime democrático — diz Queiroz Lima — é a sistematização do equilíbrio das duas correntes de forças: a do governo, poder de mando, e a do povo, poder de resistência. Não há vontade individual nem grupal armada de maior força, mas um crescente automatismo de funções de disciplina tendendo idealmente para a completa supressão do arbítrio da autoridade. O direito superintende a organização administrativa, regula as funções de governo e define as normas de conduta dos agentes do poder público.

A maior força é o poder de soberania, proveniente da nação. Ora, a nação não delega inteiramente essa suprema potesta aos seus representantes. Não delega, não aliena, não transfere a

sua vontade. A soberania (vontade nacional), sendo inalienável segundo o judicioso conceito da escola clássica francesa, é indelegável e intransferível. A população nacional transfere aos seus representantes o exercício do poder de soberania, mas o conserva na sua substância. O poder de soberania (maior força) é da nação e se distribui pelas diversas funções criadas e definidas por leis. Os órgãos (pessoas) incumbidos do desempenho dessas funções são instrumentos de execução da vontade da lei. Não têm eles nenhuma autoridade, pelo menos no sistema democrático, para substituírem a vontade da lei pela sua vontade própria.

É natural que os indivíduos ou colegiados que exercem funções de mando tenham destacada preeminência no meio social. São eles envolvidos por uma evidente auréola de prestígio público. Mas essa preeminência, esse prestígio dos governantes, é mais um reflexo das funções públicas que eles exercem. O respeito, o acatamento e a reverência são devidos diretamente à função e só indiretamente à pessoa que a exerce. Os que assim não entendem igualam-se ao asno da fábula de La Fontaine, que se empertigava ante as reverências públicas sem se aperceber de que eram elas dirigidas à imagem do santo que lhe vinha nos costados.

No Estado democrático, acresce notar, as funções de mando são sistematizadas, hierarquizadas e subordinadas a um sistema de freios e contrapesos. Um ato discricionário e ilegal pode ser anulado pela autoridade superior. O governado não está obrigado a obedecer a ordens ilegais. No próprio Código Penal se lhe reconhece o direito de resistir. O funcionário não age validamente senão em nome e nos termos da lei. Quando ele pretender substituir a vontade da lei pela sua vontade individual, já não terá a couraça da função pública.

De acordo com este entendimento, o conceito de uma classe dotada de poder de mando, que age em função do seu arbítrio, é absurdo. Ademais, é contra a natureza do Estado democrático a existência de classes superpostas.

O poder de governo, repetimos, é puramente funcional. A autoridade não se delega ao governante — diz Queiroz Lima —, porque não é prerrogativa de ninguém que a possa delegar. A autoridade é inseparável da própria função, que representa um aspecto particular, variável na medida das forças que se combinam e conforme se apresenta, no meio nacional, o sistema de equilíbrio necessário à preservação da ordem jurídica.

Para a boa ordem do Estado, inegavelmente, é necessário que haja uma força material à disposição dos agentes da autoridade pública — a força de coação. Essa força, porém, só é legítima, só é justa, quando satisfaz a estas duas condições: a) exato enquadramento nos preceitos do direito objetivo; e b) aceitação voluntária e pacífica por parte da massa dos governados.

Ora, o povo (massa de governados) não aceita voluntária e pacificamente aquilo que não condiz com o direito. As imposições da força, da tirania, podem submeter o povo num dado momento, mas receberão, cedo ou tarde, os efeitos de uma reação própria da contingência humana.

O Prof. Sampaio Dória, comentando a teoria subjetivista de Duguit, chega a admitir a existência de uma classe de predestinados para o governo: “Também há os mais aptos para o governo dos homens. As qualidades primaciais de estadista não se encontram a granel: discernimento rápido em ver, com acerto, no emaranhado das ambições; certa perspicácia em prever os acontecimentos; o senso realista de transigência e de firmeza; cultura social; uma intuição segura da psicologia do indivíduo e das multidões; até resistência física para os esforços prolongados. Pois nem todos nascem, senão bem poucos, com tendências aprimoráveis para o governo dos homens. Ninguém duvida da predestinação de homens para o exercício do governo, ou pelo menos, de grandes aptidões

para dirigir os destinos coletivos”.

Não negamos a conveniência ou necessidade mesmo de uma elite coordenadora das forças opinativas no Estado democrático. Essa elite é até imprescindível para a vitalidade da democracia. Porém, daí a aceitar a exis-tência de uma classe de governantes armada de maior força por direito próprio, submetendo à sua vontade a massa de governados, vai longa distância.

A existência de uma classe dotada de poder de mando por direito próprio só se coaduna com o sistema monárquico, talvez com a república aristocrática, nunca com a república democrática. Nesta, convém repetir: o poder de governo é puramente funcional. A atividade dos governantes não se prende, absolutamente, às vontades individuais, mas, sim, a um sistema de funções traçado objetivamente pelas leis. No ato de governo ou de administração, o poder se exercita precisamente em função dos princípios universais de equilíbrio e harmonia entre o Estado e o povo.

Como síntese do arbítrio e da prepotência dos homens, o Estado seria a opressão organizada. Como primado do direito, é um instrumento de realização dos ideais de liberdade e justiça.

Completando esta noção da famosa teoria de Duguit, cumpre observar que esse autor, por considerar o governo como um simples fato social e não como um fato jurídico, desenvolve a teoria do direito independentemente da teoria do Estado: “uma regra econômica ou moral torna-se norma jurídica quando, na consciência da massa dos indivíduos que integram um certo grupo social, penetra a ideia de que os detentores da maior força podem intervir para reprimir a violação dessa regra. Antes, portanto, de receber a sanção do Estado, a lei existe na consciência do povo. Forma-se o direito espontaneamente, da própria natureza das coisas”.

Essa teoria do eminente professor de Bordéus, particularmente no que concerne à formação mecânica do direito, tem sido refutada com veemência pelos mais autorizados expoentes do pensamento jurídico universal. O Prof. Miguel Reale, na sua monumental obra Teoria do Direito e

do Estado, demonstra com firmeza a inconsistência de tal doutrina, fulminando-a com esta imperiosa

conclusão: “Em verdade, a teoria de Duguit, por ser a negação da soberania como princípio jurídico, é também uma teoria essencialmente antiestatal uma vez que ele confunde o Estado com o governo, usando estas expressões como sinônimos”.

Efetivamente, para Duguit a soberania é apenas um fato do poder. Ele a reduz a uma simples noção de serviço público. Tanto assim que, ao ser acusado por Hauriou como “anarquista de cátedra”, respondeu: “eu somente nego que o poder governamental seja de direito; afirmo que aqueles que detêm esse poder, detêm um poder de fato, não um poder de direito”.

O direito é independente — disse mais —, sendo insuscetível de qualificação jurídica o fato do poder público.

Claudicando, pois, no seu ponto de partida, segue a teoria de Duguit demandando conclusões insustentáveis. Como bem observou Queiroz Lima, é somente pela simplicidade da sua fórmula e pela exatidão aparente do seu conceito que essa teoria tem adquirido muita vulgarização, chegando a conquistar os próprios juristas clássicos filiados na tradicional corrente da soberania nacional.

À inconsistente concepção realista de Duguit respondem as teorias objetivas: a única vontade que comanda a organização do Estado e o exercício do poder do governo é a vontade nacional, manifestada através dos poderes constituinte e legislativo. Não há classe de governantes em oposição à massa dos governados, nem os atos de governo resultam da vontade arbitrária dos detentores eventuais do poder de mando. O poder de governo, se bem que exercido por meio de pessoas, reside no sistema de funções criado e mantido pelo direito objetivo. Os indivíduos investidos nos cargos de

governo são apenas órgãos de realização das funções governamentais, ou melhor, instrumentos de realização da vontade da lei.

XIX

No documento SAHID MALUF - Teoria Geral Do Estado (2013) (páginas 84-88)