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NATUREZA DO MANDATO

No documento SAHID MALUF - Teoria Geral Do Estado (2013) (páginas 186-190)

SISTEMA REPRESENTATIVO —

4. NATUREZA DO MANDATO

O instituto da representação política reúne três elementos: o mandante, o mandatário e o

mandato.

Mandante é quem elege as pessoas para o exercício do poder de governo. Na aristocracia é a

classe aristocrática. Na democracia é o povo (demos).

Aqui vem novamente a distinção entre povo em sentido amplo (totalidade dos habitantes) e povo em sentido estrito (povo nacional), distinção esta correspondente às duas teorias chamadas de

soberania popular e soberania nacional.

Em nosso sistema democrático predomina o princípio de que o mandante é o povo nacional. No conceito de povo nacional não entra a universalidade dos habitantes do país, mas somente aqueles que exercem os direitos de cidadania nos termos da Constituição. A vontade política da nação é manifestada pelos membros da nacionalidade e, extensivamente, por estrangeiros que forem incorporados ao grupo nacional mediante processo legal de naturalização.

Os naturais do país e os naturalizados formam o corpo de eleitores, de conformidade com as leis que regulam a capacidade eleitoral. No Brasil, por exemplo, são excluídos os estrangeiros e os conscritos, durante o período do serviço militar obrigatório. Os analfabetos, os maiores de 70 anos e os maiores de 16 e menores de 18 anos podem, facultativamente, compor o corpo de eleitores.

Fala-se impropriamente em sufrágio universal, que encerra a ideia da universalidade dos habitantes de um país, mas esse termo deve ser entendido na acepção jurídica de universalidade das

competências, como já foi exposto no ponto anterior.

Só teoricamente, convencionalmente, é que se tem por mandante a totalidade do grupo nacional. Em verdade, a vontade nacional é manifestada por uma minoria, visto que o corpo eleitoral sempre se reduz a uma minoria em relação ao todo nacional. Se a lei, por apego ao conceito de democracia, só se preocupasse com a quantidade e não com a qualidade de eleitores, o regime democrático tenderia fatalmente ao definhamento. Em última análise, a vontade nacional valoriza-se quando manifestada por consciências esclarecidas. E o mérito é sempre minoria, como se referiu Sismondi; ao que acrescentou Stuart Mill: e a massa, sempre uma mediocridade coletiva.

Mandatário é a pessoa nomeada ou eleita para o exercício do poder de governo. Deve o

mandatário ser cidadão, titular de direitos políticos, possuindo capacidade eleitoral ativa e passiva. O mandatário tem direitos e obrigações semelhantes aos do procurador nas relações de direito privado, com a diferença de que esses direitos e obrigações são prefixados de modo geral nas leis de ordem constitucional. Isso não impede, evidentemente, que tenha ele uma larga margem de ação pessoal, onde pode agir segundo o seu arbítrio, sua capacidade e sua técnica.

Da maior ou menor amplitude dos poderes que a lei confere ao mandatário para gerir os negócios públicos em nome e por conta do mandante, decorrem as diversas concepções do mandato. É o que passaremos a examinar mais detidamente.

O Mandato político, como observa Queiroz Lima, tira o seu fundamento teórico de dois institutos de direito civil: a representação e o mandato procuratório.

A representação, como instituto de direito privado, é o meio pelo qual uma pessoa, em nome de outra, pratica atos jurídicos cujos efeitos se produzem imediatamente em relação à pessoa representada. Pode ser legal ou convencional. A representação legal se exerce ex vi legis, porque incide sobre aqueles que, por incapacidade absoluta ou relativa, permanente ou temporária, não podem praticar por si mesmos os atos da vida civil. São formas de representação legal o pátrio poder, o poder marital, a tutela e a curatela. A representação convencional resulta dos contratos em geral. Sua forma particular consiste no mandato procuratório civil ou mercantil, pelo qual alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses.

O instituto do mandato, portanto, é uma espécie de representação. A representação exprime a forma genérica da qual se destaca a espécie contratual.

Tais institutos de direito privado, brotando no campo do direito público, formaram o tronco vigoroso por onde viria circular toda a seiva necessária à florescência democrática. A terminologia empregada por Locke, Rousseau e outros filósofos do racionalismo liberal (mandato legislativo, representação nacional, mandatários do povo etc.) é confirmativa deste conceito sobre a origem e o fundamento do mandato político.

Em torno do mandato que o povo confere aos seus representantes se extremam diversas concepções:

A teoria originária do liberalismo clássico é a do Mandato Imperativo, a qual está mais intimamente ligada ao conceito de direito civil acima referido. O representante era eleito sob determinadas condições, e deveria proceder, nas assembleias, em estrita conformidade com as instruções dos seus eleitores, sob pena de revogação do mandato. Assim era nos primeiros Parlamentos ingleses e nas assembleias dos Estados Gerais franceses. A prática do mandato imperativo, porém, foi caindo em desuso e perdendo o seu prestígio em face do direito público moderno.

O mandato imperativo ajustava-se ao sistema de eleições por distritos. Os deputados representavam apenas as circunscrições pelas quais foram eleitos, e assim lhes era fácil receber instruções e cumprir as determinações dos seus eleitores.

O liberalismo, trazendo no seu bojo a doutrina da soberania nacional una e indivisível, condenou o sistema de mandato imperativo.

Sob a liderança de Sieyès e Rousseau formou-se a Teoria Clássica da Representação Política

Nacional: o titular do mandato político representa o povo na sua totalidade, não os grupos

populacionais de regiões ou distritos, e, assim, age livremente, como delegado da soberania nacional una e indivisível, sem necessidade de qualquer consulta. A eleição do candidato importa em aceitar o seu programa pessoal de ação.

Para esta escola clássica da soberania nacional, a nação é um ente coletivo, dotado de consciência e de vontade própria, una e indivisível. Logo, os seus representantes, embora eleitos por circunscrições eleitorais, ficam investidos do poder de soberania e passam a representar a nação integral.

No Estado federativo, principalmente, o preceito é axiomático e inarredável: os Deputados Federais, eleitos pelos Estados-Membros, são representantes nacionais.

De acordo com esta concepção ideológica o Deputado tem ampla autonomia de ação, como

delegado da soberania nacional, o que, de certo modo, choca-se com o princípio de que a soberania

é inalienável, portanto, indelegável, intransferível. Tal contradição, aliás, levou Rousseau a preferir que os representantes fossem denominados Comissários e seus mandatos fossem de natureza imperativa. Ao invés de manifestar-se a soberania nacional somente no ato da eleição, deveria ela ser exercida em caráter permanente, no sentido de poder desconstituir o mandato sempre que o mandatário se revelasse em conflito com a vontade geral.

Procurando cobrir essa evidente contradição, propôs Hauriou o entendimento de que o representante não exerce o poder por delegação da soberania, mas, sim, pelo princípio da investidura.

A Teoria da Investidura , formulada por Hauriou, eminente teórico do liberalismo clássico e professor catedrático da Universidade de Paris, estabelece que a representação política não implica nenhuma transmissão substancial do poder soberano: “delegar alguém é enviá-lo, é conferir-lhe um

poder, enquanto investir alguém é dizer-lhe: exercereis o vosso poder próprio , por uma capacidade que vos compete, mas o fareis em meu nome e no meu interesse... ”. O poder está na função que o mandatário exerce, ou seja, no cargo em que ele é investido; e, assim, embora podendo

atuar com a autonomia do seu próprio poder, de acordo com a sua própria capacidade, não recebe o poder de soberania como atributo pessoal. A soberania está na função que é impessoal, e o seu

exercício é que compete à pessoa investida na função e utilizada como instrumento humano de realização da vontade da lei...

Apenas uma variação de terminologia, como se vê. Na realidade, não há diferença substancial entre uma e outra teoria. Entendemos que a distinção entre delegação e investidura é especiosa, talvez mesmo uma simples figura de semântica. Ambas as teorias estão em desarmonia com o princípio da inalienabilidade da soberania, ou seja, da liberdade de querer como imperativo do direito natural.

Essa desarmonia se torna patente em face mesmo das próprias palavras de Rousseau, quando afirma que “a soberania não pode ser representada pela mesma razão de não poder ser alienada. Ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral não se representa: ou ela é ela mesma ou é outra — não há meio-termo”.

Sua lógica é eloquente: “o poder é possível transmitir-se, mas a vontade não. O soberano pode dizer: eu quero atualmente o que quer tal homem, ou, pelo menos, o que ele diz querer. Mas não pode dizer: o que este homem quiser amanhã eu quererei ainda; pois é absurdo que à vontade se dê cadeias para o futuro”.

Realmente, se a vontade do homem é um atributo natural da pessoa humana, por isso mesmo inalienável, intransferível, e se a vontade geral é uma soma das vontades individuais, segue-se, logicamente, que a vontade geral (soberania) não pode ser alienada nem transferida a qualquer título. O que se há de conferir ao mandatário é o poder de exercício, não o poder mesmo em substância. E, neste caso, o poder de exercício há de sujeitar-se a condições permanentes de legitimidade, com a consequência de ser possível a desconstituição do mandato.

A Teoria dos Órgãos de Representação , da escola alemã, procura dar uma solução objetiva ao problema: conceitua o Estado como uma unidade corporativa, dotada de órgãos pelos quais a sua atividade se realiza. A vontade desses órgãos é a própria vontade do Estado. “Os corpos representativos são órgãos da vontade do povo”, disse Jellinek. É claro que essa concepção se ajusta à teoria totalitária da soberania do Estado.

Inúmeras são as teorias sobre a natureza do mandato, e não poderíamos analisar todas elas. O Prof. Sampaio Dória resume as várias teorias em duas concepções simples e elucidativas: ou o representante quer com o povo ou quer pelo povo. Na primeira se alistam todas as teorias verdadeiramente democráticas, segundo as quais os representantes não substituem pela sua a vontade dos representados, mas refletem e procuram realizar fielmente a vontade nacional. Na segunda concepção os representantes substituem pela sua a vontade dos representados. É a sub-rogação da vontade dos governantes na vontade nacional. Só no ato da eleição é que se manifesta a soberania do povo; depois essa soberania sofre um eclipse, isto é, transfere-se completamente ao representante, por um determinado período...

O que ocorre generalizadamente, em verdade, é uma alarmante deturpação do sistema representativo no que ele tem de pureza doutrinária. A soberania popular tem sido confundida com a vontade arbitrária de uma classe — a classe dos representantes políticos. Não há como negar razão ao objetivismo prático do saudoso mestre Sampaio Dória quando afirma que não deve o

representante querer contra o povo, nem pelo povo, mas, sim, querer com o povo ou como o povo.

A vontade geral é ainda evidentemente imperfeita e insegura, mas é suficientemente real para legitimar o poder de governo. As medidas cerceadoras ou restritivas dessa força originária do poder não conduzem absolutamente, à solução dos graves problemas que afetam a ordem política

democrática. Ao revés, é preciso dar maior campo de ação ao povo, permitir-lhe que manifeste permanentemente a sua autoridade, para que se possa caminhar no sentido do aperfeiçoamento das instituições. Restringir a competência dos órgãos representativos, sem se chegar ao extremo do mandato imperativo, e manter a permanência da soberania nacional, como força atuante, fiscalizadora, superior à força da representação, é o ideal.

As medidas que vêm sendo adotadas nos Estados de mais adiantada cultura social e política, para refrear os abusos, a prepotência e irresponsabilidade das corporações representativas, compõem dois grupos distintos: o primeiro compreende a separação e a limitação dos poderes, a redução do tempo de duração do mandato e a institucionalização do mandato; o segundo, a coexistência, com a representação, de certos institutos da democracia pura, quais sejam o referendum, o plebiscito, a iniciativa popular das leis, o veto popular, e outros que tendem a assegurar, sem dúvida, o equilíbrio necessário entre o poder constituinte e o poder constituído.

No documento SAHID MALUF - Teoria Geral Do Estado (2013) (páginas 186-190)