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A DECADÊNCIA DO LIBERALISMO

No documento SAHID MALUF - Teoria Geral Do Estado (2013) (páginas 116-120)

1. O Estado liberal, seus erros e sua decadência. 2. A encíclica “Rerum Novarum”. 3. O Estado evolucionista.

1. O ESTADO LIBERAL, SEUS ERROS E SUA DECADÊNCIA

O Estado liberal, marcando o advento dos tempos modernos, correspondia nos seus lineamentos básicos com as ideias então dominantes. Era a realização plena do conceito de direito natural, do humanismo, do igualitarismo político que os escritores do século XVIII deduziram da natureza racional do homem, segundo a fórmula conclusiva de que “os homens nascem livres e iguais em direitos; a única forma de poder que se reveste de legitimidade é a que for estabelecida e reconhecida pela vontade dos cidadãos”.

Quer sob a forma de monarquia constitucional, quer sob a forma republicana, a organização traduzia os ideais que empolgaram o mundo ao tempo das revoluções populares inglesa, norte- americana e francesa: soberania nacional, exercida através do sistema representativo de governo; regime constitucional, limitando o poder de mando e assegurando a supremacia da lei; divisão do poder em três órgãos distintos (Legislativo, Executivo e Judiciário) com limitações recíprocas garantidoras das liberdades públicas; separação nítida entre o direito público e o direito privado; neutralidade do Estado em matéria de fé religiosa; liberdade, no sentido de não ser o homem obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; igualdade jurídica, sem distinção de classe, raça, cor, sexo, ou crença; igual oportunidade de enriquecimento e de acesso aos cargos públicos, às conquistas da ciência e à cultura universitária; não intervenção do poder público na economia particular...

Era esse, pelo menos, o arcabouço teórico do Estado liberal. Entretanto, estava muito longe de corresponder essa teoria com a realidade. Assim como a República de Platão, que fora arquitetada no mundo das ideias, o Estado liberal seria realizável, como se disse algures, numa coletividade de deuses, nunca numa coletividade de homens.

Empolgados pelas novas ideias racionalistas, fortemente sedutoras mas impregnadas de misticismo, os construtores do Estado liberal perderam de vista a realidade. Desconheceram (e isto foi o seu maior erro) uma das mais importantes revoluções que a história política do mundo registra — a revolução industrial —, que se iniciara na Inglaterra em 1770 e que modificaria fatalmente a realidade social em todos os países, criando problemas até então desconhecidos mas perfeitamente previsíveis. Processada à ilharga da revolução popular francesa, continuaria pelos tempos modernos a hostilizar cada vez mais o Estado liberal, minando os alicerces da sua estrutura.

Em verdade, o liberalismo que se apresentara perfeito na teoria bem cedo se revelou irrealizável por inadequado à solução dos problemas reais da sociedade. Converteu-se no reino da ficção, com

cidadãos teoricamente livres e materialmente escravizados.

A revolução industrial apresentara ao mundo um novo tipo de homem até então desconhecido: o operário de fábrica. O aparecimento das máquinas produziu o desemprego em massa. Cada nova

máquina introduzida na organização industrial jogava à rua centenas de milhares de empregados. O trabalho humano passa a ser negociado como mercadoria, sujeito à lei da oferta e da procura. O operário se vê compelido a aceitar salários ínfimos e a trabalhar quinze ou mais horas por dia para ganhar o mínimo necessário à sua subsistência. A mulher deixa o lar e procura no trabalho das fábricas um reforço ao salário insuficiente do marido. As crianças não podem frequentar as escolas e são atiradas ao trabalho impróprio, prejudicial à sua formação física e moral, na luta pela subsistência que o pai não pode prover. E, assim, o liberalismo trazia mais no seu bojo, inconscientemente, a desintegração da família.

Quando colhido pela doença ou pela velhice quase sempre precoce, outra alternativa não restava ao operário senão estender a mão à caridade pública.

Por outro lado, o contraste era chocante: fortunas imensas se acumulavam nas mãos dos dirigentes do poder econômico; o luxo, a ostentação, a ânsia irrefreada de ganhar cada vez mais criaram o conflito entre as classes patronais e assalariadas. Organizaram-se as grandes empresas, os trusts, os cartéis, os monopólios e todas as formas de abuso do poder econômico, acentuando-se cada vez mais o desequilíbrio social. E o Estado liberal a tudo assiste de braços cruzados, limitando-se a policiar a ordem pública. É o Estado-Polícia (L’Etat Gendarme). Indiferente ao drama doloroso da imensa maioria espoliada, deixa que o forte esmague o fraco, enquanto a igualdade se torna uma ficção e a liberdade uma utopia.

Sem dúvida, eram anti-humanos os conceitos liberais de igualdade e liberdade. Era como se o Estado reunisse num vasto anfiteatro lobos e cordeiros, declarando-os livres e iguais perante a lei, e propondo-se a dirigir a luta como árbitro, completamente neutro. Perante o Estado não havia fortes ou fracos, poderosos ou humildes, ricos ou pobres. A todos, ele assegurava os mesmos direitos e as mesmas oportunidades...

Ressalta à evidência a desumanidade daqueles conceitos, porque os indivíduos são naturalmente desiguais, social e economicamente desiguais, devendo, por isso, ser tratados desigualmente, em função do justo objetivo de igualizá-los no plano jurídico. Além disso, não basta que o Estado proclame o direito de liberdade, é preciso que ele proporcione aos cidadãos a possibilidade de serem livres.

Em menos de meio século, tudo o que o liberalismo havia prometido ao povo redundou em conquistas e privilégios das classes economicamente dominantes.

As multidões espoliadas, oprimidas, sem lar, sem agasalhos, sem pão, sem a fé em Deus, que o infortúnio faz desaparecer do coração dos homens, começam a reagir violentamente contra as injustiças sociais, já agora arregimentadas sob a bandeira do socialismo materialista, levando o Estado liberal ao dilema de reformar-se ou perecer.

2. A ENCÍCLICA “RERUM NOVARUM”

Foi nessa gravíssima situação, nessa perigosa encruzilhada dos destinos humanos, que surgiu uma manifestação formal, clara e positiva, da Igreja Romana, através da encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, em 15 de maio de 1891. Traçou o Sumo Pontífice um quadro fiel da angustiante situação, analisou as suas causas determinantes e apontou, com segurança e descortínio, os rumos pelos quais se salvaria a nau do Estado democrático prestes a naufragar em mar tempestuoso.

Refutando os princípios do coletivismo materialista e colocando a pessoa humana no lugar que lhe compete como criatura de Deus, verberou o Santo Papa o fato de se apresentarem de um lado a

onipotência na opulência, uma facção que, senhora absoluta da indústria e do comércio, torce o curso das riquezas e faz correr para o seu lado todos os mananciais; facção que, aliás, tem nas mãos mais de um motor da administração pública; de outro lado, a fraqueza na indigência, uma multidão com a alma ulcerada, sempre pronta para a desordem.

Acentua-se que pouco a pouco os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o

decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cupidez de uma desenfreada concorrência.

Deve-se acrescentar o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornam o quinhão de um pequeno número de ricos e de opulentos, os quais exercem um jugo quase servil sobre a imensa multidão dos proletários.

Depois de condenar fundamentalmente o extremismo marxista, propõe o Santo Papa as medidas necessárias ao restabelecimento do equilíbrio social, tais como: fixação de um salário mínimo compatível com a dignidade humana, limitação das horas de trabalho, regulamentação do trabalho da mulher e dos menores, amparo à gestação e à maternidade, direito de férias, indenização por acidentes, amparo à velhice, assistência nos casos de doenças, organização da previdência social etc.

O que é vergonhoso e desumano — acentua Leão XIII — é usar dos homens como vis instrumentos de lucro e não os estimar senão na proporção do vigor de seus braços.

Ninguém certamente é obrigado a aliviar o próximo privando-se do seu necessário, ou do de sua família, nem mesmo a nada suprimir do que as conveniências impõem à sua pessoa. Mas desde que haja suficientemente satisfeito à necessidade e ao decoro, é um dever lançar o supérfluo no seio dos pobres.

Inegavelmente, foi a encíclica Rerum Novarum um farol luminoso a dissipar as trevas que envolviam a realidade social. Alertado por esse valioso documento histórico, o Estado liberal passou a intervir no setor econômico, procurando conjurar o perigo que o ameaçava.

Depois de quarenta anos foi a grande encíclica reafirmada e atualizada pela Quadragésimo Ano, de Pio XI, e depois de 80 anos pela Octagésima Adveniens, de Paulo VI, continuando pelos tempos presentes e vindouros como eterno luzeiro da humanidade.

3. O ESTADO EVOLUCIONISTA

Se a função primordial do Estado consiste em assegurar condições gerais de paz social e prosperidade pública, cumpre-lhe, efetivamente, intervir na ordem socioeconômica, impor restrições ao capital, prevenir os litígios, remover as injustiças, edificar um mundo melhor onde a felicidade seja possível a todos os homens e o império da justiça seja uma realidade. Cumpre-lhe substituir o lema ortodoxo fiat justitia pereat mundus por uma divisa mais consentânea com o mundo moderno:

fiat mundus, pereat justitia.

A crítica demonstrou sempre, e com exuberante evidência, a inconsistência dos princípios teóricos do liberalismo, mas não chegou ainda a uma conclusão definitiva quanto à solução do problema. O socialismo comunista, de um lado, o fascismo e o nazismo, de outro lado, foram as mais destacadas tentativas de reestruturação básica do Estado moderno. O comunismo russo surgiu como uma solução extremista, diametralmente oposta ao liberalismo, enquanto o fascismo e o nazismo foram movimentos de dupla reação, contra a decadência liberal e contra os excessos do monismo

estatal russo. Todos esses movimentos reacionários, entretanto, importam, praticamente, numa transposição dos erros do liberalismo para o plano coletivista. Não resolvem os inconvenientes do regime capitalista, que apenas se deslocam para a direção estatal, como se observa no mundo soviético.

De qualquer forma, ameaçado pelas duas extremas totalitárias, o Estado liberal foi colocado ante o dilema de reformar-se ou perecer. Efetivamente, onde ele permaneceu fraco e inerte, ocorreu a transformação violenta, surgindo o Estado revolucionário, como na Rússia, na Itália, na Alemanha, na Polônia e em vários países, como analisaremos nos capítulos seguintes. Quando não, o Estado liberal se transformou de maneira pacífica evoluindo para a forma social-democrática, através de reformas constitucio-nais e medidas legislativas. Tornou-se evolucionista, intervindo na ordem econômica, colocando-se como árbitro nos conflitos entre o capital e o trabalho, superintendendo a produção, a distribuição e o consumo.

Como veremos oportunamente, o Estado social-democrático, evolucionista, procura harmonizar as verdades parciais e inegáveis que existem tanto no individualismo como no socialismo. É o Estado- eclético, o Estado-composição entre as verdades eternas do individualismo e os imperativos da realidade sócio-ético-econômica do mundo moderno.

XXVIII

No documento SAHID MALUF - Teoria Geral Do Estado (2013) (páginas 116-120)