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O advento da Revolução Industrial acarretou profundas mudanças sociais. O acelerado progresso científico, associado a outros fatores como a industrialização e o acentuado crescimento demográfico, ampliou a exposição da coletividade às situações de risco concreto. É bem exemplificativa dessa época a repetição dos acidentes de trânsito e de trabalho (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 127).

A falta de preparo dos operários aliada ao empirismo das máquinas gerou a constância dos acidentes de trabalho. De outra banda, a ampliação da frota de veículos, o crescimento populacional e o forte êxodo rural banalizaram os acidentes de trânsito e tornaram o sistema de transportes urbanos caótico (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 127).

Fatores como o crescente número de vítimas expostas às atividades humanas cada vez mais intensas; a desproporção técnica e econômica entre vítimas e os “criadores de risco”, assim como a maior complexidade nas relações de trabalho e de consumo passaram a dificultar a comprovação da culpa dos agentes, levando as vítimas, frequentemente, a situações de desamparo.

O que caracterizava os novos riscos e acidentes era, primeiro, a impossibilidade de vinculá-los às antigas noções de acaso ou providência. Decorrendo do exercício normal das atividades coletivas, não se relacionavam mais com acontecimentos extraordinários. Assim, o evento danoso deixa de ser compreendido como uma mera fatalidade e passa a ser visto como um fenômeno normal, estatisticamente calculável, consequência necessária do desenvolvimento de determinadas atividades. Por outro lado, os novos riscos são marcados pelo anonimato.

Neste novo cenário, a prova da culpa torna-se uma prova diabólica, já que, para a vítima, era praticamente impossível demonstrar que o dano por ela sofrido decorreu de uma conduta culposa do agente. Segundo Stoco (2001, p. 106), os principais óbices para a comprovação da culpa no âmbito da teoria subjetiva eram: a desigualdade econômica entre os responsáveis e as vítimas, a capacidade organizacional das empresas e as cautelas do juiz na aferição dos meios de prova trazidos ao processo. Por conta dessas peculiaridades, submeter os riscos da sociedade industrial à teoria subjetiva da responsabilidade civil equivaleria a tornar os danos dela advindos irressarcíveis.

Com isso, os ideais de equidade passam a se confrontar com a fatalidade jurídica de se impor à vítima inocente, que não contribuiu para a produção do risco, o peso excessivo do dano, dando origem ao movimento das novas ideias, que fundamentam a responsabilidade extracontratual somente nexo de causalidade entre o dano e o fato gerador (LIMA, 1998, p. 116).

Torna-se, então, patente a inadequação entre a nova realidade social e o sistema de responsabilidade que, lastreado em valores liberais e individualistas, fazia o ressarcimento depender da presença de um comportamento voluntário de um indivíduo determinado. A teoria subjetiva já não era mais suficiente para casos específicos, tanto em

virtude da dificuldade probatória do elemento subjetivo quanto em razão da gravidade e da extensão dos prejuízos causados, o que podia ser constatado, de maneira clara, em face dos danos ambientais (LUCARELLI, 1994, p. 14-15).

Desse modo, a solução do problema da responsabilidade extracontratual passou a exigir o afastamento do elemento moral, da pesquisa psicológica, do íntimo do agente, ou da sua possibilidade de previsão ou diligência, para situar-se apenas no ponto de vista da reparação do dano (LIMA, 1998, p. 115).

Como forma de reequilibrar os interesses em jogo, desnivelados pela aplicação da responsabilidade subjetiva, começa-se a compreender que o dano e a reparação não deveriam ser medidos de acordo com a culpabilidade, mas levando em consideração o fato causador da lesão ao bem jurídico em si (LIMA, 1998, p. 116).

Além destes aspectos sociais e materiais, as novas ideias também sofrem a influência do positivismo jurídico, que coloca os elementos morais à margem do problema da responsabilidade extracontratual (RIPERT, 2009, p. 216) e da socialização do direito, que situa os interesses sociais acima dos interesses de ordem individual na determinação da existência ou não da necessidade de reparação (LIMA, 1998, p. 117).

Verifica-se, assim, que o advento da sociedade industrializada, com as suas consequências sociais e econômicas, provoca o declínio da ordem jurídica liberal que, lastreada nas noções de liberdade e igualdade, é superada pela construção de uma nova ordem.

Lanfredi (1997, p. 87) lembra que a Igreja, por meio da Encíclica

Rerum Novarum (1891), combateu, de modo veemente, as ideias do

individualismo liberal, defendendo a proteção pelo Estado dos trabalhadores e dos economicamente fracos. Outro importante marco dessa nova ordem foi a promulgação da Constituição de Weimar (1919) que acolheu uma visão social de Estado, sendo marcada por muitos avanços sociais e pelo dirigismo estatal.

De acordo com Lanfredi:

O social passa assim a predominar sobre o individual. E, a partir da conscientização da problemática social, cresce o sentido da coletivização, bem como se evolui para a afirmação da dignidade da pessoa humana, da

importância da segurança e da justiça social. (LANFREDI, 1997, p. 87).

Aos poucos, dissemina-se o pensamento de que mais imoral que impor a alguém o dever de reparar prejuízos causados por atos não voluntários seria a multiplicação de danos industriais irressarcidos e suportados, em sua maioria, pela classe operária por conta dos acidentes de trabalho.

Com isso, o modelo tradicional da responsabilidade civil subjetiva resta ultrapassado, incapaz de lidar, tanto do ponto de vista qualitativo quanto quantitativo, com as relações jurídicas emergentes (MORAES, 2006a, p.18).

De fato, na medida em que se reconhece as ameaças como decorrência natural do exercício das atividades, a imputabilidade abandona o seu componente moral para encontrar fundamento na mera assunção dos novos riscos.

Para Leite (2003, p.126), a responsabilidade civil objetiva consiste numa “tentativa de resposta da sociedade ou de adequação a certos danos ligados a interesses coletivos e difusos, que não seriam ressarcíveis, tendo em vista a concepção clássica de dano ligada a interesses próprios, certos etc.”.

Assim, o alargamento da responsabilidade civil e a objetivação de sua base emergem como fatores de realização da justiça nas relações entre os particulares. No entanto, a ideia de justiça presente na responsabilidade objetiva é bastante antiga, decorrendo de um princípio elaborado no jusnaturalismo casuísta romano (MORAES, 2006a, p.12). De acordo com Moraes:

De fato, já Paulo expressara no Digesto (D. 50, 17,10) “Secundum naturam est, commoda cuiusque rei unum sequi, quem sequentur incommoda”, no que foi seguido no direito canônico, por Dino, no Liber Sextus (5, 13, 55): “Qui sentit onus, sentire debet commodum, et contra”. Tal princípio vem expressar a idéia segundo a qual quem obtém as vantagens de uma determinada situação, deve assumir seus inconvenientes, sendo freqüentemente citado na seguinte formulação “ubi emolumentum, ibi onus”.

Assim é que, ainda na Europa do século XIX, há o abandono da aferição da culpabilidade para alguns tipos de acidente. No ano de 1838, a Prússia editou a sua lei sobre acidentes ferroviários, consagrando a responsabilidade civil sem culpa. Na sequência, em 1861, foi promulgada a lei de minas e, a partir de 1884, uma lei sobre acidentes de trabalho passou a exigir que o empreendedor suportasse, por meio de um seguro social, a reparação do dano gerado no exercício da atividade laboral (MORAES, 2006a, p.12).

Contudo, a modificação do instituto da responsabilidade civil até a consagração da responsabilidade civil objetiva não foi radical, passando por algumas fases.

Inicialmente, bastante atrelados à ideologia liberal e temerosos de que o pagamento de indenizações inviabilizasse o progresso técnico, a doutrina e a jurisprudência defenderam a exclusão de qualquer responsabilização pelas atividades perigosas, aplicando-se a regra segundo a qual “as perdas devem ficar onde caírem” (MORAES, 2006a, p.18).

Em seguida, as mudanças começaram a ser sentidas no âmbito judiciário. Segundo Cavalieri Filho (2007, p. 127), juízes e tribunais passaram a facilitar a comprovação da culpa; posteriormente, presentes algumas circunstâncias, admitiram a presunção de culpa e, por fim, começaram a aceitar, em alguns casos particulares, a responsabilidade civil sem culpa.15

Um importante precedente para a afirmação da responsabilidade civil objetiva foi o caso Teffaine, julgado em 1896 pela Corte de Cassação francesa. Nesta decisão, a Corte de Cassação introduziu a noção de risco no direito francês ao afirmar que o patrão seria obrigado a responder pelos danos gerados para um empregado em razão da explosão de uma caldeira (MORAES, 2006a, p.12). Seguindo a linha deste precedente, em 1898, a França promulgou a sua lei sobre acidentes de trabalho, fixando a responsabilidade do patrão, independentemente de culpa, com base no risco profissional (MORAES, 2006a, p.12).

15 Essa construção jurisprudencial também foi desenvolvida no Brasil em relação à presunção de culpa dos patrões pelos atos de seus prepostos. Os juízes desenvolveram uma interpretação contra legem do art. 1523 do Código Civil de 1916, que culminou com a edição da Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal, que determina que: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”.

Importa notar que a consagração da responsabilidade civil objetiva vincula-se, neste momento histórico, à emergência da sociedade industrial e aos riscos concretos a ela inerentes. Com isso, a responsabilização deixa de centrar-se na ação do indivíduo para ter como referência o exercício de atividades perigosas. O fundamento da responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a de risco. A objetivação da responsabilidade civil também opera uma alteração na própria finalidade do instituto, que deixa de se voltar à punição do agente para buscar a reparação ou o ressarcimento do dano.

Sob o influxo das novas teorias, o Brasil e muitos outros países passam a consagrar a responsabilidade civil objetiva para determinadas atividades.

A primeira incorporação legislativa da teoria do risco, no Brasil, ocorreu no campo dos transportes ferroviários, onde o aumento do número de acidentes despertou a necessidade de disciplinar a responsabilidade objetiva do transportador. A regulamentação ocorreu por meio do Decreto nº 2.681, de 1912, e foi seguido pelo Decreto nº 3.724, de 1919.

Em seguida, a responsabilidade civil objetiva foi incorporada em outros setores, passando a orientar a responsabilidade decorrente das atividades de mineração (Decreto-Lei nº 227, de 1967), dos acidentes de veículos (Leis nº 6.194, de 1974 e nº 8.441, de 1992), das atividades nucleares (Lei nº 6.453, de 1977), das atividades que degradem o meio ambiente (Lei nº 6.938, de 1981), do transporte aéreo (Lei nº 7.565, de 1986) e das relações de consumo (Lei nº 8.078, de 1990).

Além desses diplomas legislativos, a Constituição Federal de 1988 também consagrou a responsabilidade civil objetiva para as pessoas jurídicas de direito público, para as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público (art. 37, § 6º) e para os danos ocasionados pela exploração da energia nuclear (art. 21, XXIII, c).

Dessa forma, pode-se concluir que o sistema brasileiro de responsabilidade civil foi construído, mantendo a centralidade da responsabilidade civil subjetiva, concebida como regra geral e estabelecendo, paulatinamente, algumas hipóteses de responsabilidade civil objetiva que excepcionavam a exigência da comprovação da culpa. Essa realidade só é alterada com a promulgação do Código Civil de 2002 que, atendendo os anseios de parte da doutrina, passa a consagrar, no parágrafo único do seu art. 927, uma cláusula geral de responsabilidade objetiva.