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1.5 PECULIARIDADES DOS RISCOS NA SOCIEDADE DE RISCO

1.5.3 Invisibilidade dos riscos e a dificuldade de sua determinação

Além da globalidade, da projeção no tempo e das dificuldades de controle, outra característica dos novos riscos ganha destaque na obra de Beck: a sua invisibilidade em relação aos sentidos humanos. Ressalta o autor que: “A vida cotidiana é cega a respeito dos perigos que ameaçam a vida, portanto, depende, em suas decisões, de expertos e contra- expertos. Não se trata unicamente do dano potencial, senão também que esta „expropriação de sentidos‟ pelos riscos globais faz insegura a vida” (BECK, 2002, p. 86, tradução nossa)9.

Nesse cenário, os estados de incerteza frequentemente se manifestam sem que os afetados tenham ciência da sua origem, desenvolvimento ou mesmo da sua própria manifestação. Em certos casos, eles não se ativam sequer durante a vida dos atingidos, mas na de seus descendentes e precisam dos órgãos perceptivos da ciência para que sejam visíveis e interpretáveis como perigos (BECK, 1998, p. 33). Nisso reside outro paradoxo: a mesma ciência que gera os riscos de alta consequência é a única capaz de torná-los perceptíveis.

Por conta da sua concretude, os riscos industriais são passíveis de uma avaliação segura quanto a suas causas e consequências e têm a sua dimensão temporal e territorial bem delimitada. Já os novos riscos, em virtude de sua indeterminação e dificuldade de avaliação científica, são passíveis apenas de uma “avaliação probabilística” e têm a potencialidade de atingir um número indeterminado de pessoas.

Dada a incomensurabilidade dos perigos e o problema da avaliação subjetiva da probabilidade de sua ocorrência, no tocante aos riscos da sociedade industrial avançada, fracassam todas as tentativas de estabelecer medidas para os riscos, como os cálculos de probabilidade, os valores iniciais e os cálculos dos custos. Isto explica porque os conflitos se desencadeiam essencialmente no nível do conhecimento em torno dos problemas da definição e relações causais (BECK, 2002, p. 131).

Beck recorda que os antigos marinheiros do século XIX quando caiam no Támesis não morriam afogados, mas envenenados pelos

9 Lê-se no original: “La vida cotidiana es „ciega‟ respecto a los peligros que amenazan a la vida y, por tanto, depende, en sus decisiones íntimas, de expertos y contraexpertos. No se trata únicamente del daño potencial, sino también de que esta „expropiación de lós sentidos‟ por los riesgos globales hace insegura la vida” (BECK, 2002, p. 86).

vapores fétidos e pela fumaça do esgoto londrinense. Do mesmo modo, a passagem pelas ruas estreitas de uma cidade medieval representava uma tortura para o nariz (BECK, 1998, p. 27). Desta forma, os perigos típicos da sociedade medieval, diferente do que acontece atualmente, afetavam o nariz ou os olhos, sendo perceptíveis aos sentidos humanos, enquanto que os riscos civilizatórios de hoje escapam a percepção, residindo em fórmulas físico-químicas (BECK, 1998, p. 28). Enquanto os perigos medievais poderiam ser atribuídos a uma falta de abastecimento da tecnologia higiênica, os novos riscos têm a sua origem atrelada à excessiva produção industrial.

Exemplificam estas novas ameaças a radiotividade e as substâncias nocivas e tóxicas presentes no ar, na água e nos alimentos. Estes riscos causam danos sistemáticos e ao menos irreversíveis, podem permanecer invisíveis, se baseiam em interpretações causais, pelas quais só se estabelecem no saber (científico ou anticientífico) deles, e no saber podem ser transformados, ampliados ou reduzidos, dramatizados ou minimizados, pois estão abertos numa medida especial, aos processos sociais de definição (BECK, 1998, p. 28).

Para Hermitte (2005, p. 17), a invisibilidade destas ameaças traz à tona um reino das sombras, onde as substâncias tóxicas invisíveis passam a substituir os espíritos escondidos das coisas, o que apresenta um significado antropológico forte. Neste contexto, o risco nunca assume uma forma nitidamente concreta e material, não apenas porque se apresentam como perigos ou ameaças futuras potenciais, como também porque seu surgimento envolve muitas vezes um processo de expropriação de sentidos, o que os torna imperceptíveis aos sentidos humanos (HERMITTE, 2005, p. 17).

Beck acrescenta que as afirmações sobre perigos nunca são reduzíveis a meras afirmações sobre fatos, incluindo tanto um componente teórico como um componente normativo. Dependem, portanto, de uma interpretação causal que as façam parecer decorrência da industrialização e do processo de modernização. Deve-se, dessa forma, estabelecer um nexo direto entre as instituições e atores do processo de modernização e os danos e as ameaças produzidas (BECK, 1998, p. 33).

Os danos e as ameaças da sociedade de risco, por sua vez, encontram-se completamente separados das instituições e atores da modernização, tanto num sentido social quanto material, local e temporal (BECK, 1998, p. 33). Por isso, o sociólogo observa que “os

riscos da modernização se apresentam de uma maneira universal que é ao mesmo tempo específica e inespecífica localmente” e “quão incalculáveis e imprevisíveis são os intrincados caminhos de seus efeitos nocivos” (BECK, 1998, p. 34).

Neste caminho, os riscos da modernização terminam por reunir causalmente o que se encontra separado por conteúdo, espaço e tempo, estabelecendo uma responsabilização tanto social quanto jurídica. Contudo, as relações de causalidade escapam a qualquer percepção, pois apresentam natureza teórica (e não fática). Isso faz com que a causalidade suposta seja sempre insegura e provisória (BECK, 1998, p. 34).

Os riscos também apresentam um horizonte normativo de segurança perdida ou de confiança quebrada, pois, mesmo quando os riscos encontram-se impregnados por cifras ou fórmulas, vinculam-se a algum lugar, constituindo “condensações matemáticas de noções feridas da vida digna de ser vivida” (BECK, 1998, p. 34). Em outras palavras, os riscos são compreendidos por Beck como “negativos de utopias em que o ser humano (ou o que resta dele) se conserva no processo de modernização e volta a ser animado”. Sempre encobrem a questão acerca de como queremos viver (BECK, 1998, p. 34).

Desta maneira, Beck enxerga as manifestações de risco como oportunidades para a ressurreição da ética nos centros da modernização, na economia, nas ciências naturais, nas disciplinas técnicas. Por conta disso, não são mais passíveis de isolamento por um ou outro especialista e de análise conforme parâmetros de racionalidade. Antes, dependem da colaboração das diversas disciplinas, indivíduos e instituições para serem definidos (BECK, 1998, p. 35).

1.6. O PAPEL DA TECNOLOGIA E DAS CIÊNCIAS NATURAIS NA