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2.6 PRINCÍPIOS INFORMADORES DA RESPONSABILIDADE

2.6.3 Princípios da prevenção e da precaução

A origem do princípio da prevenção confunde-se com a própria emergência do direito ambiental. Ele nasce bastante atrelado ao princípio da soberania dos Estados sobre os recursos naturais existentes no seu território e tem a sua primeira afirmação internacional na sentença final do Caso da Fundição Trail, de 1941 (GOMES, 2007, p. 275).38 Mais tarde, foi consagrado no Princípio 21 da Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (1972) 39.

A ideia da prevenção deriva da simples constatação de que os danos ocasionados ao meio ambiente, em razão da infungibilidade deste bem, são, na maioria das vezes, irreversíveis. Por isso, embora tenha se originado numa vertente internacional, a jurisprudência internacional tem alargado o seu alcance para abranger a proteção dos bens ambientais enquanto tais, independente do fato de pertencer à jurisdição de um determinado Estado (GOMES, 2007, p. 276).

Vê-se que, na atualidade, o princípio atinge uma dupla dimensão, exigindo que o Estado abstenha-se de provocar danos ambientais que atinjam outras jurisdições e, ao mesmo tempo, adote políticas públicas voltadas para a gestão racional dos seus recursos naturais e para a proteção contra a degradação.

O princípio da prevenção pretende proteger os recursos naturais e evitar a consumação de danos ambientais, quando a probabilidade da degradação é bastante alta e, muitas vezes, demonstrada pelas próprias regras da experiência. Na sua aplicação, ele pode impor a adoção de medidas que impeçam a ocorrência de danos futuros, ainda quando estes sejam derivados de atividades ou empreendimentos devidamente

38 Trata-se da reclamação apresentada pelos Estados Unidos contra o Canadá junto a um tribunal arbitral, motivada por queixas de pessoas e empresas localizadas no Estado de Washington, que sofriam os efeitos deletérios da poluição transfronteiriça (de partículas e fumaça tóxica) produzida por uma fundição de cobre e zinco localizada na cidade de Trail, no Canadá (SOARES, 2003b, p. 44). A sentença final do caso da Fundição Trail é considerada por muitos como a primeira manifestação do direito internacional do meio ambiente (SOARES, 2003a, p. 23).

39 De acordo com o Princípio 21 da Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano: “Em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de direito internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos em aplicação de sua própria política ambiental e a obrigação de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo, dentro de sua jurisdição, ou sob seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdição nacional".

licenciados e desenvolvidos de acordo com os padrões de qualidade ambiental.

O princípio da precaução, por sua vez, relaciona-se com a gestão dos riscos decorrentes das novas tecnologias, marcados por um elevado grau de incerteza científica. Nesses casos, não existe ainda uma alta probabilidade de ocorrência de danos: o perigo é pressentido, mas não está inteiramente comprovado pela ciência.

As primeiras referências à ideia de precaução são comumente atribuídas aos escritos de Hans Jonas da década de 70, onde o autor, a partir da análise dos novos riscos tecnológicos, como a energia nuclear e a clonagem, propõe uma ética em relação ao futuro como forma de evitar catástrofes (JONAS, 2006).

No entanto, sua primeira formulação sistemática ocorreu na Alemanha Ocidental, onde surgiu, no início da década de 70 do século passado, como ferramenta do Direito Ambiental (juntamente com os princípios da cooperação e do poluidor pagador), empregada, sobretudo, para o combate a fenômenos como a chuva ácida, aquecimento global e poluição do Mar do Norte. 40

Posteriormente, expandiu-se por toda a Europa, em parte por conta da pressão dos alemães, que não pretendiam ter a sua competitividade prejudicada pela adoção de medidas precaucionais e almejavam a ampliação do mercado das tecnologias “amigas do ambiente” (NARDY, 2003, p. 174).

No fim da década de 80, o princípio da precaução incorporou-se em alguns instrumentos internacionais. Assim, a primeira menção expressa ao princípio ocorreu na Declaração de Londres de 1987, que resultou da Segunda Conferência sobre a Proteção do Mar do Norte (DOUMA, 1996). Também incluíram o princípio as Conferências sobre a Proteção do Mar do Norte que se seguiram, em 1990 e 1995 e a Declaração de Bergen sobre Desenvolvimento Sustentável de 1990 (DOUMA, 1996).

40 A respeito da origem do princípio da precaução, assim como seu conteúdo e desdobramentos, ver: NARDY, Afrânio. Uma leitura transdisciplinar do princípio da precaução. In: SAMPAIO, J. A. L.; WOLD, C.; NARDY, A. Princípios de direito ambiental: na dimensão internacional e comparada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. cap. 3. p. 171-249. TICKNER, Joel; RAFFENSPERGER, Carolyn; MYERS, Nancy. The

precautionary principle in action: a handbook. Disponível em:

<http://www.mindfully.org/Precaution/Precaution-In-Action-Handbook.htm>. Acesso em: 04 nov. 2003. DOUMA, Wybe Th. The precautionary principle. Disponível em: <http://www.eel.nl/virtue/precprin.htm>. Acesso em: 04 nov. 2003.

Todavia, o reconhecimento mundial do princípio da precaução só veio em 1992, com a sua inclusão na Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (no princípio 15)41. No mesmo ano, a Convenção da Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança de Clima, assinada em Nova Iorque, ambas ratificadas pelo Brasil42, contemplaram, o princípio, com algumas diferenças na formulação.

De fato, constata-se que, diversamente da primeira, a segunda convenção, seguindo a tendência da Declaração do Rio de Janeiro, elevou como pré-requisito para a aplicação da precaução, a existência de ameaças de danos sérios e irreversíveis e da proporcionalidade entre custos e benefícios das medidas precaucionais a serem adotadas. Por conta disso, pode-se falar da existência de uma versão forte e de outra atenuada o princípio da precaução. Esta realidade é percebida por Nardy, que afirma que:

A fórmula utilizada pela Convenção, de resto também insinuada na própria Declaração do Rio de Janeiro, contudo, pode ser considerada como uma versão atenuada do princípio da precaução, pois se, de um lado, o dever de cautela nele enunciado só surge ante a existência de “ameaças de danos sérios ou irreversíveis”, de outro, as medidas de resposta que ensejam seu cumprimento sujeitam-se a um critério de proporcionalidade, pois “devem ser eficazes em função dos custos”. (NARDY, 2003, p. 185)

Na atualidade, pode-se afirmar que a aceitação do princípio da precaução encontra-se pacificada e o seu peso no direito comunitário

41 Segundo o Princípio 21 da Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com as suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.

42 Estas convenções foram ratificadas pelo Brasil, respectivamente, pelos Decretos Legislativos nº 02, de fevereiro de 1994 e 01, de 29 de fevereiro de 1994. Cf. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental e princípio da precaução. Disponível em: <http://www.merconet.com.br/direito/2direito22.htm>. Acesso em: 19 ago. 2003.

pode ser sentido a partir da constatação de que setenta e seis atos jurídicos contêm referências expressas a esse princípio e outros duzentos e vinte e cinco fazem menção a ele (ARAGÃO, 2008, p. 10).

No entanto, apesar deste notável reconhecimento, percebe-se que a precaução aplica-se, cada vez mais, a contextos muito diversos e que há enormes diferenças na conceituação do princípio.

Por isso, é relevante identificar os principais elementos, que informam o seu conceito. Segundo Nogueira (2001), sua definição envolve, basicamente, três elementos: a ameaça de dano, a ausência de certeza científica e a adoção de medidas precaucionais.

Para que a situação geradora da aplicação do princípio da precaução esteja configurada é necessário que haja sérias suposições de que determinada atividade ou substância causará impactos sobre a saúde humana ou sobre o meio ambiente.

Todavia, esta hipótese não precisa estar comprovada cientificamente, ou seja, não é necessário que haja provas conclusivas do nexo de causalidade entre a atividade ou substância em análise e os possíveis efeitos gerados pela sua operação ou introdução. Também, não é preciso saber, de antemão e de modo preciso, a dimensão espacial ou temporal da ameaça, as populações que serão afetadas ou o seu grau de reversibilidade.

Neste ponto, pode-se identificar a diferença entre o princípio da precaução e o da prevenção. Apesar de ambos os princípios partirem da constatação de que os danos ambientais são de impossível, improvável ou custosa reparação e atenderem ao velho axioma de que “é melhor prevenir do que remediar”, o princípio da precaução está voltado para as circunstâncias em que há apenas suspeitas de que a atividade ou a substância poderá causar danos ao meio ambiente ou à saúde humana, como ocorre nos casos da poluição acidental nas atividades perigosas. Já o princípio da prevenção aplica-se quando já há a certeza sobre a causa e os efeitos da atividade ou substância e abrange, sobretudo, o seu controle.

Por fim, o último elemento exige a adoção, de maneira imediata, das medidas de prevenção dos riscos, que devem ser previamente identificadas e avaliadas e que podem variar, indo desde meras medidas de controle ou contenção até a suspensão ou proibição da atividade ou substância.

Além desses elementos, que estão presentes em qualquer conceituação do princípio da precaução, verifica-se que instrumentos

como a Declaração do Rio de Janeiro e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança de Clima, acrescentam a tipologia do risco ou da ameaça, que devem ser qualificadas como sérias ou irreversíveis e o custo das medidas precaucionais, que deve ser proporcional à eficácia que pode acarretar.

Quanto à exigência de dano sério ou irreversível, objeta-se que ela não leva em consideração aquelas degradações que, embora relativamente pequenas, apresentam efeitos cumulativos e que, por isso, quando somadas, podem acarretar danos de enormes proporções, como é o caso da emissão de dióxido de carbono na atmosfera.

Com relação à proporcionalidade entre os custos e benefícios das medidas de prevenção, verifica-se que ela se destina, sobretudo, aos países em desenvolvimento, que frequentemente não tem condições financeiras para arcar com as medidas de prevenção de danos. Neste sentido, é válida a lição de Machado, que afirma que “o custo excessivo deve ser ponderado de acordo com a realidade econômica de cada país, pois a responsabilidade ambiental é comum a todos os países, mas diferenciada” (MACHADO, 2001, p. 59-60).

Em outra senda, como percebe Aragão (2008, p. 10), existem muitas tentativas de diluição do princípio da precaução no princípio da prevenção e até mesmo de sua supressão em razão da sua definição ser vaga e com elementos conflitantes.

Neste sentindo é a opinião de Gomes, para quem: “em face da incerteza quanto ao grau de incerteza necessário para acionar a precaução, esta acaba por não ganhar autonomia em face da prevenção” (GOMES, 2007, p. 286).

Todavia, a maior parte da doutrina reconhece as singularidades dos dois princípios, destacando que enquanto o princípio da precaução volta-se à gestão de riscos ainda hipotéticos (atuação proativa), a prevenção centra-se no controle de riscos já comprovados cientificamente (atuação reativa).

Diante das grandes dificuldades enfrentadas pelas sociedades pós-industriais para lidarem com os riscos de catástrofes que não obedecem a limites de tempo e de espaço e que frequentemente são irreversíveis, assim como da incapacidade da ciência para determinar, com precisão, os efeitos da atuação humana sobre o meio ambiente, pode-se compreender a importância do princípio da precaução, poderosa ferramenta, capaz de evitar sérios danos à saúde e ao meio ambiente e

que constitui, no âmbito brasileiro, um princípio normativo que pode ser suscitado judicialmente. 43

Quanto à sua natureza, Aragão (2008, p. 16) considera a precaução como um princípio de justiça em sentido clássico, pois ele visa a proteger a parte mais frágil da relação, que normalmente não tem meios de proteger a si própria, responsabilizando quem tem o poder e o dever de controlar os riscos.

A precaução, como bem salienta Machado, não tem por finalidade imobilizar as atividades humanas, mas sua finalidade se inclina “à durabilidade da sadia qualidade de vida das gerações humanas e à continuidade da natureza existente no planeta” (MACHADO, 2004, p. 56).

Na feliz afirmação de Treich e Gremq (apud MACHADO, 2004, p. 58), o princípio da precaução pretende gerir a espera da informação, impondo medidas acautelatórias, enquanto as comprovações científicas não vêm.

Para Sands (2004, p. 37), um enfoque inovador do princípio da precaução determina a inversão do ônus da prova e exige que as pessoas que desejem realizar atividades provem que ela não gerará danos para o meio ambiente.

No mesmo sentido, Benjamin (1998, p. 18) destaca que o princípio da precaução inaugura uma nova fase para o Direito Ambiental, onde não mais se impõe aos afetados comprovar os efeitos negativos de empreendimentos, cabendo aos potenciais degradadores o ônus de comprovar a inofensividade da atividade pretendida.

No campo da responsabilidade civil ambiental, Mirra destaca a função do princípio na substituição do juízo de certeza pela probabilidade. De acordo com o autor:

[...] ao estabelecer que diante do perigo de danos graves ou irreversíveis a ausência de certeza científica absoluta não deve ser utilizada como razão para postergar a adoção de medidas eficazes para impedir a degradação do meio ambiente, o

43 Como lembra Solange Teles da Silva (2004, p.82-83): “Em realidade, o princípio da precaução emerge do disposto no artigo 225 do texto constitucional de 1988, impondo aos operadores do direito a busca de respostas ao imperativo de segurança reforçada e a regulamentação das dúvidas nascidas da ciência, para que se possa garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tanto às presentes quanto às futuras gerações”.

que o princípio 15 da Declaração do Rio de 92 na realidade fez foi substituir, de uma vez por todas, para a identificação e correção de uma atividade degradadora do meio ambiente, e de uma degradação ambiental considerada em sentido amplo, o critério de certeza pelo critério de probabilidade (MIRRA, 2001, p. 99).

Ao lado do princípio da prevenção, a precaução também é responsável pela modificação na própria compreensão da reação ao dano ambiental, que passa, cada vez mais, a se vincular à adoção de meio de medidas que impeçam ou que cessem a degradação.

Transforma-se, assim, o sistema da responsabilidade civil, tradicionalmente individualista e sancionador, num verdadeiro mecanismo de controle social, que confere total primazia à tutela preventiva.