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3.2 COMPLEXIDADE E PECULIARIDADES DO DANO

3.2.1 Propriedades cumulativas e caráter expansivo no tempo

Um dos graves obstáculos no enfrentamento dos danos ambientais decorre do fato de que os seus efeitos geralmente não são notados de maneira imediata. Normalmente, o dano ambiental não decorre de uma ação localizável em um único ponto temporal, sendo produto de todo um processo de acumulação dilatado no tempo.

Dessa forma, inicialmente marcados por uma invisibilidade, que não é captada pela ciência e pelos sentidos humanos, as ameaças ambientais muitas vezes só são percebidas quando atingem um limite de saturação, que pode demorar décadas para ser alcançado. Além disso, quando este limite é atingido, muitas vezes é tarde demais para adotar medidas que impeçam a concretização destas ameaças.

Compreende-se, assim, que tanto a invisibilidade quanto as propriedades cumulativas desses fenômenos apresentam-se como verdadeiros desafios para a ciência, impondo para a geração do presente o dever de cautela na tomada de decisões que possam resultar em impactos para o meio ambiente.

Nessa perspectiva, importa aprofundar dois institutos relacionados com o tempo e que, em diversos aspectos, desafiam a dogmática tradicional: os chamados danos históricos, que originados no passado, continuam a produzir efeitos no presente e os danos futuros, que, apesar de partirem de um evento realizado no presente podem gerar novos danos ou terem seus efeitos prolongados para o futuro.

a) Os danos ambientais históricos

Compreende-se como danos históricos aqueles danos ambientais que têm origem no passado, num período em que não havia um sistema objetivo de responsabilidade civil por danos ao meio ambiente ou vigoravam padrões de qualidade ambiental permissivos e que continuam a gerar consequências relevantes no presente.

Como observa Catalá (1998, p. 112), esses danos ambientais normalmente são produzidos sob a égide de políticas de desenvolvimento pouco cuidadosas com o meio ambiente, de lacunas legislativas e da falta de conhecimentos científicos acerca do efeito cumulativo das intervenções ambientais. Eles também se caracterizam por decorrerem de uma poluição crônica ou acumulada, cujos efeitos

nocivos prolongam-se no tempo e, a depender de suas características, podem ser classificados como danos permanentes (ou continuados), como danos que continuam no tempo ou como danos progressivos.

Os danos permanentes ou continuados são aqueles originados por uma sucessão de atos, de apenas um ou de vários agentes, praticados em épocas diversas, cujos efeitos perduram no tempo, produzindo um dano cada vez maior (PARKINSON, 2005, p. 206).

Os danos que continuam no tempo, por sua vez, são praticados por um único ato, perfeitamente localizável num ponto temporal, mas cujos efeitos projetam-se no tempo (ITURRASPE, 1999a, p. 82).

Já os danos progressivos são provocados por uma série de atos sucessivos, de uma mesma pessoa ou de pessoa diversa, que promovem um resultado lesivo de nocividade maior que a simples soma dos repetidos agravos, de modo que se torna impossível identificar qual atividade originou o dano concreto (PARKINSON, 2005, p. 206).

A imputação da responsabilidade civil por esses danos é rodeada de dificuldades, que vão desde a discussão em torno da prescritibilidade da pretensão reparatória à identificação dos responsáveis por sua produção. Isso ocorre porque, muitas vezes, a atividade que gerou os danos ambientais históricos foi desenvolvida há muito tempo e, não raro, com obediência às determinações legais e aos padrões de qualidade ambiental vigentes na época.

Por conta do fator temporal, as dificuldades para comprovar o nexo de causalidade entre a atividade lesiva e o resultado danoso são ainda maiores. Além disso, frequentemente, não é possível localizar um responsável por essas lesões ou, quando possível, a propriedade, onde o dano foi produzido, foi transferida para um novo adquirente, que não tem qualquer relação direta com o fato.

Como observa Sendim (1998, p. 39), o dano ambiental histórico traz em seu bojo uma verdadeira tensão entre a dimensão garantística do direito, que protege a confiança e a segurança jurídica, de um lado, e a dimensão público-ingerente das decisões referentes à proteção jurídica do meio ambiente, de outro.

É fácil perceber que essa modalidade de dano traz indagações a respeito da possibilidade de aplicação retroativa da lei para fatos produzidos no passado, quando as consequências eram totalmente imprevisíveis, e para possibilidade de se imputar o dever de reparação ao atual proprietário do lugar, quando este não coincide com o efetivo causador do dano. Essas questões são respondidas de modo diferente pelos Estados.

Dessa forma, enquanto o ordenamento norte-americano delineia um sistema de responsabilidade civil retroativa, que impõe aos responsáveis pelos danos ambientais históricos o dever de descontaminação, ainda quando as atividades lesivas tenham sido desenvolvidas antes da entrada em vigor da legislação ambiental, a maior parte dos Estados que integram a Comunidade Europeia acolhem um limite temporal, normalmente fixado na jurisprudência nacional, condicionando a responsabilização ainda à existência de uma mínima previsibilidade ou à ausência de diligência por parte dos seus causadores (CATALÁ, 199, p. 114-115).

No caso brasileiro, verifica-se que tanto a doutrina quanto a jurisprudência inclinam-se pela aplicação retroativa aos danos históricos do sistema de responsabilidade civil por danos ao meio ambiente criado pela Lei 6.938/1981.

Considera-se, assim, que, embora os danos históricos tenham se originado no passado, em razão da sua permanência ou continuidade, eles configuram danos atuais, passíveis de responsabilização de acordo com o sistema de responsabilidade civil vigente no presente.

Nesse sentido, Pinho salienta que:

O dano histórico a ser perseguido é o que gerou

comprometimento da capacidade de

autorregeneração do ambiente em do seu poder de resiliência. A lesão, assim, perdura ao longo do tempo, com danos cada vez maiores, acumulados, posto que os danos não são estáticos, havendo agravamento da situação danosa. Assim, o dano histórico com reflexo no presente, é atual, e, se for grave, substancial, ultrapassando o limite de tolerabilidade, configura os nominados danos permanentes, continuados ou progressivos, com lesão permanente, ensejando reparação. (PINHO, 2010, p. 177).

Outro não foi o entendimento da Quarta Vara do Superior Tribunal de Justiça na apreciação do REsp 20645 / SC, relatado pelo Min. Barros Monteiro e julgado em 24/04/2002, que teve a ementa assim redigida:

CIVIL. PRESCRIÇÃO. VIOLAÇÃO

CONTINUADA. INOCORRÊNCIA. A

continuada violação do direito de propriedade dos recorridos por atos sucessivos de poluição praticados pela recorrente importa em que se conte o prazo prescricional do último ato praticado. Recurso não conhecido.49

Tratava-se de uma ação cominatória cumulada com indenização proposta pelos proprietários de um imóvel localizado no Estado de Santa Catarina, contra "Carbonífera Próspera S.A.", sucedida pela "Companhia Siderúrgica Nacional – CSN".

Os autores alegaram que a ré estava realizando atividade de mineração de carvão em sua propriedade, com a construção de benfeitorias, tais como, lavador, silo de carvão, casa de britagem etc. Afirmaram também que para a lavagem do carvão, a carbonífera edificou barragens em seu leito, inundando extensas áreas do seu terreno e que realizava o depósito de rejeitos e efluentes líquidos não tratados no curso d'água, acarretando a poluição das águas por resíduos químicos. Tudo isso estava gerando imensos prejuízos para os proprietários que, não apenas sofreram a destruição de seus imóveis, como a sua desvalorização por conta do problema ambiental.

Em resposta, a Companhia Siderúrgica Nacional arguiu a prescrição da ação, alegando que no momento da propositura da ação, em abril de 1985, já havia decorrido o lapso superior a cinco anos, de acordo com o disposto no art. 178, § 10, inc. IX, do Código Civil.

Ao apreciar o Recurso Especial, o relator, acompanhado pela maioria dos ministros presentes à votação, entendeu configurada a prescrição da pretensão reparatória.

No entanto, em sede de embargos infringentes, prevaleceu o entendimento do Ministro Cesar Asfor Rocha.

49 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa: CIVIL. PRESCRIÇÃO. VIOLAÇÃO CONTINUADA. INOCORRÊNCIA. A continuada violação do direito de propriedade dos recorridos por atos sucessivos de poluição praticados pela recorrente importa em que se conte o prazo prescricional do último ato praticado. Recurso não conhecido. Acórdão em recurso especial n.2.0645 / SC, em face da "Carbonífera Próspera S.A.", sucedida pela "Companhia Siderúrgica Nacional – CSN". Relator: Ministro Barros Monteiro. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=presc ri%E7%E3o+viola%E7%E3o+continuada&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=11>. Acesso em: 20 abr. 2011.

Segundo o ministro, não seria correto considerar a data de construção das barragens e dos aterros como marco inicial para o cômputo da prescrição, pois o pior mal causado pela ré não era o mero transbordo da água, mas a ação continuada, contínua e prolongada de lançar rejeitos e efluentes líquidos não tratados decorrente da sua atividade minerária. Considerou que cada ato desses praticado pela recorrente aumentava a abrangência da área inutilizada e configurava uma nova lesão às propriedades dos recorridos, concluindo que, em razão da continuidade da violação do direito de propriedade dos recorridos por atos sucessivos de poluição praticados pela recorrente, não justificava que se adotasse a construção da barragem como o dies a

quo da contagem do prazo da prescrição, devendo-se considerar, para

tanto, a data do último ato praticado.

Verifica-se que o entendimento majoritário nos embargos infringentes é o mais condizente com as peculiaridades do dano ambiental. De fato, havendo uma continuidade no desenvolvimento do ato lesivo, a contagem do prazo prescricional só pode se iniciar a partir da sua efetiva cessação, sob pena de o ordenamento jurídico ambiental consagrar, por vias transversas, uma espécie de direito adquirido de perpetuar a degradação do meio ambiente.

b) Os danos ambientais futuros

Em razão das propriedades cumulativas e da progressividade do dano ambiental, as agressões ao meio ambiente, muitas vezes, apresentam um caráter elástico, projetando-se para o futuro. Dessa forma, é possível que uma lesão provocada no presente dê origem a danos consecutivos ou evolutivos, como um desdobramento natural do seu percurso causal. Nestes casos, embora esses danos ambientais não estejam completamente materializados no presente, é possível presumir, a partir da situação já existente, que eles devem se concretizar ou se agravar futuramente, como um prolongamento natural da lesão atual.

Assim, os danos ambientais futuros podem ser compreendidos como as lesões futuras ocasionadas por uma intervenção ambiental atual ou como as consequências futuras de uma lesão ambiental atual.

A discussão em torno do dano futuro torna-se muito mais complexa diante do dano ambiental coletivo, pois, como observa Steigleder (2004, p. 143), enquanto que, na perspectiva individual, os impactos futuros limitam-se ao tempo de vida da vítima, em sua

dimensão coletiva, os âmbitos espacial e temporal da lesão são bastante ampliados.

O dano futuro não é um instituto novo ou exclusivo do Direito Ambiental. Ele já é reconhecido no Direito Civil há bastante tempo, na figura dos lucros cessantes. No entanto, a doutrina civilista tradicional nunca se preocupou muito com o estudo dos efeitos que determinada ação poderia alcançar no futuro para a imposição de consequências jurídicas (CARVALHO, 2008, p. 125). Pode-se até afirmar que o grande enfoque do Direito sempre esteve no presente. Talvez por isso, a orientação do Direito Civil, em face do dano futuro, sempre foi a de esperar o fim do ciclo de consequência do dano para a busca do seu ressarcimento (o que é impossível no caso dos danos ambientais, pois o fechamento do processo causal pode levar décadas).

Outro cenário, porém, é inaugurado pelo Direito Ambiental, ramo jurídico que nasce preocupado com a proteção do meio ambiente e com a garantia da sadia qualidade de vida, não só para as gerações do presente, como para as que virão e propõe para a humanidade uma nova aliança com futuro.

A preocupação com o futuro passa a ser ainda mais relevante no quadro da Sociedade de Risco atual, marcada, como já aprofundado, pela existência de riscos globais, invisíveis e transtemporais, que surgem como produto da própria radicalização do processo industrial.

Nesse contexto, a valorização do futuro na definição do dano reparável e a criação de processos de tomada de decisão em contextos de risco, antecipando-se à concretização dos danos futuros, passam a ser fundamentais para o enfrentamento destes novos riscos.

No ordenamento jurídico brasileiro, a reparação do dano futuro encontra seu embasamento legal no texto do art. 225 da Constituição Federal, que prevê a proteção e a preservação do meio ambiente como um direito das presentes e das futuras gerações.

Por conta disso, o dano ambiental futuro pode ser compreendido como uma materialização do princípio da equidade intergeracional e dos princípios da precaução e da prevenção (CARVALHO, 2008, p. 125).

Muito embora a doutrina ainda majoritária exija a certeza dos prejuízos como requisito para a reparação do dano ambiental futuro, afastando a possibilidade de reparação de danos meramente eventuais, parece acertada a posição de Carvalho (2008, p. 123), no sentido de que esta exigência é demasiadamente restritiva quando aplicada em matéria jurídico-ambiental.

De fato, em virtude da complexidade, da incerteza e da imprevisibilidade das consequências ambientais, deve-se relativizar a

exigência da certeza da concretização dano futuro e do dogma da segurança jurídica, contentando-se, para a imputação da responsabilidade civil, com a alta probabilidade ou com a probabilidade determinante da sua ocorrência.

Segundo a classificação proposta por Carvalho (2008, p. 129), os danos ambientais futuros dividem-se em danos ambientais futuros propriamente ditos e as consequências futuras de danos ambientais já concretizados.

O dano ambiental futuro propriamente dito caracteriza-se pela existência de alta probabilidade ou de uma probabilidade determinante de ocorrência de lesões ambientais consecutivas, que se manifestam como um desdobramento natural de determinada conduta adotada no presente (CARVALHO, 2008, p. 129).

Já a segunda espécie consiste em danos evolutivos que, em razão do caráter cumulativo e progressivo das perturbações ambientais, materializam-se como resultados futuros de um dano atual (CARVALHO, 2008, p. 129).

O autor lembra que a incerteza científica é elemento constituinte do processo de tomada de decisão em ambas as espécies de dano ambiental futuro e, por essa razão, a sua avaliação só é possível a partir da aplicação do código probabilidade/improbabilidade (CARVALHO, 2008, p. 129).

Dessa forma, além de desencadear ações preventivas, o dano ambiental futuro pode ser incluído na reparação sempre que o juiz possa estimar no plano causal, a partir de um juízo de alta probabilidade científica, a possível ocorrência de um prolongamento ou agravamento futuro de um dano atual ou da produção de um dano novo e distinto, que surja como consequência do mesmo evento que deu origem à lesão atual.

Na determinação dos danos ambientais futuros, a realização de perícias e as técnicas de presunções e indícios jogam um papel primordial na sua identificação, pois é por meio delas que se chega a uma quase certeza, o que é juridicamente suficiente para estabelecer o direito ao ressarcimento.