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O reconhecimento da supremacia constitucional na atividade hermenêutica tem forçado grandes mudanças em muitos ramos do Direito. No âmbito do Direito civil, impõe-se a necessidade de realizar uma releitura de diversos dos seus institutos à luz da Constituição, buscando a necessária compatibilização entre os textos legais e a principiologia contida no texto constitucional.

No entanto, o direito civil percorreu um longo caminho até alcançar esta concepção constitucionalizada. No caso brasileiro, é possível identificar alguns marcos desta evolução.

Tepedino (2008, p. 2) lembra que as normas do Código Civil de 1916 retratavam a doutrina individualista e voluntarista contida no Código de Napoleão e mantinham sua centralidade no indivíduo. Regulando as relações patrimoniais e pretendendo a normatizar todos os centros de interesse existentes para o indivíduo, o Código Civil costumava ser encarado como a Constituição do direito privado.

Aos poucos, porém, o Código foi abandonando a sua exclusividade na disciplina das relações privadas. As mudanças no

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Teor dos enunciados 446 e 448 da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada em novembro de 2011. Disponível em: <http://www.jf.jus.br/cjf/cej- publ/jornadas-de-direito-civil-enunciados-aprovados/>. Acesso em: 31jan. 2012.

contexto socioeconômico, iniciadas com a industrialização, ampliaram a intervenção do Estado na economia e deram origem a novas demandas e conflitos sociais que precisavam ser contemporizados pela legislação, dando origem a uma série de leis extravagantes (TEPEDINO, 2008, p.4- 5).

Esse processo coincidiu com o surgimento do Estado Social e com a afirmação nas principais Constituições do pós-guerra dos direitos sociais, econômicos e culturais. A incorporação dos denominados direitos de segunda geração estabelece diversos compromissos a serem concretizados pelo legislador ordinário, marcando também limites para a propriedade e para a autonomia privada (TEPEDINO, 2008, p.4-7).

O que se verificou em seguida foi, segundo Tepedino, a emergência de uma “era da descodificação”, com “a substituição do monossistema, representado pelo Código Civil, pelo polissistema, formado pelos estatutos, verdadeiros microssistemas do direito privado” (TEPEDINO, 2008, p. 11).

Diante desta fragmentação, o Código Civil abandonou definitivamente a centralidade que ocupava na seara das relações de direito privado e a unidade do sistema só pôde ser reconstruída, recorrendo-se aos princípios fundamentais da Constituição Federal.

Para Moraes (1993, p. 24), o deslocamento deste pólo para a Constituição foi possível a partir da conscientização acerca da unidade do sistema e da necessidade de se respeitar a hierarquia das fontes normativas.

A certeza de que as normas de direito privado precisam ser interpretadas de acordo com a Constituição inaugura uma nova fase para o direito civil, onde a norma constitucional assume a função de validar a norma jurídica aplicável ao caso concreto e de alterar os institutos tradicionais segundo suas regras e princípios.

No âmbito da responsabilidade civil, é fácil constatar a repotencialização deste instituto, que tem superado grande parte das suas dificuldades contemporâneas pela aplicação direta e imediata das normas constitucionais (MORAES, 2006b, p. 245). Dentre as mudanças mais fundamentais, verifica-se que os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a justiça distributiva têm operado uma verdadeira releitura do instituto.

A Constituição de 1988 alterou de modo substancial o quadro axiológico do nosso ordenamento, instalando o primado da proteção da dignidade da pessoa humana e fazendo prevalecer a ética da

responsabilidade e solidariedade sobre a ética da autonomia e liberdade. Consequentemente, houve mudanças tanto em relação aos valores e sujeitos protegidos quanto no fundamento da responsabilidade civil.

Historicamente, a responsabilidade civil tradicional voltava-se à tutela apenas da propriedade e dos demais direitos subjetivos patrimoniais, mas, a partir da introdução do princípio da dignidade da pessoa humana, passou-se a privilegiar os valores extrapatrimoniais, tutelando-se a dimensão existencial do indivíduo (que é visto ao lado do seu sofrimento, dores e angústias), assim como novos valores relevantes para a coletividade.

Para Morais, a proteção de novos sujeitos também é uma consequência da valorização da dignidade humana. Nas suas palavras:

[...] neste cenário, de um renovado romantismo, passaram a ser tuteladas, com prioridade, as pessoas das crianças, dos adolescentes, dos idosos, dos portadores de deficiências físicas e mentais (hoje chamados de portadores de necessidades especiais) dos consumidores, dos não proprietários, dos contratantes em situação de inferioridade, dos membros da família, das vitimas de acidentes anônimos. (MORAES, 2007, p. 75).

O reconhecimento do princípio da solidariedade social (associado ao princípio da dignidade da pessoa humana), por sua vez, fez com que o fundamento da responsabilidade civil fosse alterado. Com isso, o instituto deixou de deitar as suas bases na moralização das condutas individuais para se assentar na proteção das vítimas contra os danos injustos (MORAES, 2007, p. 14, 29).

A obrigação de reparar desvinculou-se da ideia de ato ilícito e passou a ter como foco o dano provocado (e não a conduta culposa propriamente do agente) e a sua perspectiva foi alterada, saindo da ótica do ofensor para a da vítima. A alteração do fundamento da responsabilidade civil também pode ser atribuída à maior conscientização acerca da injustiça de deixar a vítima em uma posição desfavorável em relação ao dano que suportou e da emergência do risco como novo elemento de imputação de dano.

Com isso, abandonou-se, pela primeira vez, a ideia moral de retribuição (decorrente da culpa), reconhecendo que “a relação é ética e

é estabelecida com a comunidade, com os outros e com o mundo, inclusive com as gerações futuras (eis que a própria humanidade está em perigo)” (MORAES, 2006a, p. 26) e que, mais do que punir eventuais responsáveis, deve-se tentar conter os efeitos negativos originados por certos atos e atividades.

Esse giro conceitual no fundamento da responsabilidade civil fez com que as garantias à integridade psicofísica e material dos indivíduos fossem distribuídas, socializadas e estendidas da maneira mais abrangente possível, alcançando quem quer que estivesse vinculado ao comportamento lesivo.