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Para a teoria da sociedade de risco, as ciências cumprem um papel paradoxal nas sociedades ocidentais contemporâneas, pois, se por um lado, quando aplicadas à tecnologia, elas se apresentem como uma causa dos riscos modernos, por outro, sabe-se que a identificação e as implicações destes riscos devem ser em parte expressos em termos científicos e que, valendo-se de métodos de produção alternativos ou de tecnologias de limpeza, elas também podem proporcionar uma série de soluções para parte destes riscos (GOLDBLATT, 1996, p. 236).

Neste cenário, como percebe Lenzi (2003, p. 176), os órgãos sensores da ciência são indispensáveis para tornar os perigos visíveis, devendo definir, inclusive, quem está ou não em posição de risco. Além disso, como os novos riscos emergem num contexto de prosperidade, a ciência teórica estimula o crescimento da indústria nuclear, genética e química, é evidente que os riscos de alta consequência relacionam-se com uma das vitórias da sociedade industrial, que é a sua capacidade de a superprodução. Isso reserva para a ciência e a tecnologia um lugar central nas discussões em torno da sociedade de risco (LENZI, 2003, p. 179).

Admitindo que diversas catástrofes encontram-se enraizadas no núcleo de novas tecnologias, pode-se constatar que o desenvolvimento científico não gera, necessariamente, um aumento da segurança e que ele traz, de modo aleatório, soluções para certos problemas e novos perigos para a sociedade. Além disso, evidencia-se que, na medida em que as tecnologias ficam mais potentes, o seu potencial de destruição torna-se cada vez maior.

Ao lado do reconhecimento desta relação paradoxal entre ciência e risco, as construções de Beck também dão destaque à quebra do monopólio das ciências no contexto da sociedade de risco.

Para ele, o risco é definido por meio de um processo de “heterodeterminação oculta”, que considera as pretensões, os interesses e os pontos de vista de diversos atores da modernização e de grupos de afetados e, por isso, nunca são redutíveis a meras afirmações de fato (BECK, 1998, p. 33). Dessa forma, as definições do risco terminam por romper o monopólio da racionalidade das ciências (BECK, 1998, p. 35). De acordo com Hannigan (2009, p. 44), apesar da indispensabilidade da ciência para a superação dos problemas ocasionados pelos novos riscos, ela tem se tornado cada vez menos suficiente para a unidade social de definição da verdade, dando espaço para a emergência de uma nova racionalidade social, que surge enraizada numa crítica do progresso.

Hannigan percebe, então, que novas formas de “alternativas” e defesas da ciência têm se instalado e forçado uma crítica interna das próprias ciências, dando origem a uma variedade de público orientado cientificamente. Ao lado do monopólio das ciências, os monopólios de ação política também estão sendo esfacelados e cedendo espaço para a constituição de processos coletivos de decisões políticas (HANNIGAN, 2009, p. 44).

No mesmo sentido, Gomes (2007, p. 223-224) argumenta que, cada vez mais, a crença na ciência enquanto veículo condutor a uma verdade única tem enfraquecido para ceder espaço a um universo de verdades plurais, todas elas batalhando para alcançar uma precedência sobre as demais. Neste cenário, a ciência passa a ser encarada como “um enunciado de teorias ou uma sucessão de problemas” e constata-se que a evolução do conhecimento também traz consigo uma série de lacunas, fazendo com que os cientistas confrontem frequentemente o desconhecido, ou ainda do não conhecido (GOMES, 2007, p. 223-224).

Por outro lado, a percepção da ausência de controle dos riscos de alta consequência, assim como a análise dos processos de decisão, tem sepultado, de uma vez por todas, os mitos da infalibilidade e da neutralidade científica, abrindo espaço para o reconhecimento e para a valorização de outras racionalidades.

Beck (1998, p. 35) alerta que mesmo quando os cientistas se empenham em empregar uma racionalidade objetiva, não podem escapar do conteúdo político de suas definições. O conteúdo político está presente, por exemplo, quando eles são obrigados a escolher quais danos são considerados aceitáveis e quais são intoleráveis ou quando têm que decidir se assumirão ou não o risco de uma catástrofe ecológica para atender a interesses econômicos.

As constatações de risco levam em consideração não apenas as possibilidades matemáticas como os interesses sociais em jogo e isso ocorre até mesmo nas situações em que a certeza técnica se faz presente (BECK, 1998, p. 35). Desse modo, a ciência tem deixado paulatinamente de fundamentar-se na lógica experimental para “contrair matrimônio” com a economia, a política e a ética (BECK, 1998, p. 35).

Além disso, a pretensão de racionalidade das ciências é contrariada a todo momento, seja quando as projeções de segurança são desafiadas pela ocorrência de acidentes reais, seja pela influência dos interesses sociais, que atuam ao lado das possibilidades matemáticas nas constatações do risco (BECK, 1998, p. 35).

Nas situações concretas, torna-se cada vez mais difícil calcular a dimensão e identificar os responsáveis pelos danos, pois, de acordo com Beck:

[...] quanto mais se estabelecem os níveis aceitáveis, maior o número de chaminés e canos através dos quais se emitem contaminantes e toxinas, menor é a “probabilidade residual” de que

possa fazer-se responsável um culpado dos catarros e das tosses, é dizer, tanta menor contaminação se produz. (BECK, 2002, p. 84, tradução nossa)10.

Para Beck, a consequência mais grave é que as investigações levam em consideração as substâncias nocivas individualmente, sem considerar a sua concentração e a sua interação com outras substâncias dentro do organismo humano. Ele destaca que os seres humanos não vivem apenas de medicamentos, eles também respiram, bebem e ingerem alimentos. Sem a análise das diversas interações e das propriedades cumulativas destas substâncias, as “ausências de perigo” seguem somando-se de maneira perigosa (BECK, 1998, p. 32).

A respeito do papel da tecnologia e das ciências naturais na sociedade de risco, Beck destaca que o que interessa não é apenas o debate em torno de uma “renovação ética da investigação”, como também sua lógica e unidade de culpáveis e expertos das ciências da engenharia na tecnocracia dos perigos (BECK, 2002, p. 91).

Beck ressalta ainda que, em questão de perigos ninguém é experto. Isso ocorre porque as predições de perigo envolvem uma dupla ambiguidade. Primeiro, pressupõe uma aceitação social, que não podem produzir (BECK, 2002, p. 91-92). Em segundo lugar, constata que o conhecimento novo pode converter-se da normalidade ao perigo do dia para a noite. São os exemplos do buraco na camada de ozônio e da energia nuclear (BECK, 2002, p. 92).

Contudo, Beck verifica que o inverso também ocorre, pois o perigo acentuado deixa o monopólio da interpretação de seus causadores, chegando ao público em geral, que passa a empregar seus termos técnicos, como se soubessem os seus significados (BECK, 2002, p. 92). Eis a contradição, pois:

10 Lê-se no original: “[...] la discusión sobre las sustancias nocivas que tiene lugar con las categorias de las ciencias naturales se mueve entre la inferencia errônea de daños biologicos a daños sociales y uma consideración de la naturaleza y del médio ambiente que excluye el daño selectivo a las personas y los significados sociales y culturales que van unidos a ello. Al mismo tiempo, no se toma en conta que las mismas sustancias nocivas pueden tener un significado completamente diferente para personas diferentes de acuerdo con la edad, el sexo, los hábitos alimenticios, el tipo de trabajo, la información, la educación etc” (BECK, 2002, p. 32).

Por um lado, as ciências da engenharia se refutam involuntariamente com seu diagnóstico contraditório sobre os riscos. Por outro, seguem administrando o privilégio que se lhes tem outorgado desde outrora, o direito de responder, conforme seus próprios estandares internos, a pergunta social global eminentemente política: quanta segurança é suficiente segurança? (BECK, 2002, p. 92, tradução nossa)11.

No entanto, para o autor, esse monopólio dos cientistas e dos engenheiros sobre o diagnóstico dos perigos está sendo questionado em face do que ele chama de crise de realidade das ciências naturais e da engenharia em sua relação com os detalhes dos perigos que elas produzem (BECK, 2002, p. 93-94). Esta crise ficou evidente para o grande público com o acidente nuclear de Chernobyl, onde se pôde perceber a distinção entre a segurança provável, a única possível de determinação pela ciência e pela engenharia, e a segurança efetiva (BECK, 2002, p. 94).

Essa crise de realidade ocorre porque o bom funcionamento de uma técnica não implica no seu completo domínio, sendo frequente a ocorrência de disfunções a longo prazo (como exemplificam o caso da vaca louca e da mudança do clima) e o aumento dos conhecimentos científicos também não reduz necessariamente o nível de incertezas, até porque todo novo conhecimento traz, em seu bojo, novas incertezas (HERMITTE, 2005, p. 15).

Outra dificuldade apresentada por Beck (2002, p. 95) diz respeito à impossibilidade das ameaças produzidas pelos chamados perigos de alta consequência serem testadas num tubo de ensaio, verificando-se, na prática, uma verdadeira abolição do limite entre o laboratório e a sociedade.

Essa realidade também é percebida por Giddens (1991, p.130), que ressalta o caráter contrafactual destas ameaças, que são controversas em termos de qualquer avaliação de probabilidade estrita. De acordo com ele, embora eventos como o bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki possam dar alguma pista do que pode acontecer, esses riscos são necessariamente irreais, na medida em que só é possível ter uma

11 Lê-se no original: “Por un lado, las ciencias de la ingenieria se autorrefutan involuntariamente con su diagnostico contradictorio de los riesgos. Por otro, siguen administrando el privilegio que se les ha outorgado desde antaño, el derecho a responder, conforme sus propios estándares internos, la pregunta social global eminentemente política: ?cuánta seguridad es suficiente seguridad?” (BECK, 2002, p. 92)

clara demonstração dos seus efeitos, com a sua concretização (GIDDENS, 1991, 135-136).

1.7. SUPERAÇÃO DOS ENTRAVES GERADOS PELA SOCIEDADE