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2.6 PRINCÍPIOS INFORMADORES DA RESPONSABILIDADE

2.6.2 Princípio da solidariedade social e da solidariedade diacrônica

A ideia de solidariedade não é uma novidade para o pensamento ocidental. De acordo com José Farias (1998, p. 188), as suas origens vinculam-se ao estoicismo e ao cristianismo primitivo.

Com a Revolução Francesa, a solidariedade ingressou nas declarações de direitos, consagrando o dever de prestar ajuda aos necessitados, por meio de ações de caridade e filantropia, considerada como uma dívida sagrada (FARIAS, J., 1998, p. 188).

Contudo, no fim do século XIX e início do século XX, a noção de solidariedade é reconstruída de forma divorciada das concepções iniciais de caridade e filantropia, traduzindo-se numa “nova maneira de pensar a sociedade por uma política concreta, não somente de um sistema de proteção social, mas também „um fio condutor indispensável à construção e concretização das políticas sociais‟” (FARIAS, J., 1998, p. 190).

A solidariedade, segundo Di Lorenzo (2010, p. 131), não consiste num sentimento, mas na ação concreta em favor do outro. Dessa forma, a solidariedade pode ser compreendida como uma manifestação de justiça, que tem o outro, considerado isoladamente ou como parte de um todo, como objeto.

Para a sua existência, a solidariedade pressupõe a presença da desigualdade, pois a igualdade é o fim da solidariedade, e a desigualdade, o seu objeto (DI LORENZO, 2010, p. 132). Enquanto princípio social, a solidariedade determina a ação de todos em prol do bem comum para que todos realizem a sua dignidade (DI LORENZO, 2010, p. 132).

O surgimento dessa nova concepção de solidariedade coincide, historicamente, com a crise do modelo liberal, gerada pelas mudanças econômicas e sociais a partir da segunda metade do século XIX e com o final da Segunda Guerra Mundial.

A sua construção é impulsionada, em parte, pelas tragédias vivenciadas no período e pelo despertar de um novo tipo de relacionamento entre as pessoas, baseado na solidariedade social. Assim, as constituições que se seguiram ao pós-guerra deixaram de considerar a vontade individual como valor fundamental para enaltecer a pessoa humana e a sua dignidade intrínseca.

Seguindo esse rumo, a Constituição brasileira de 1988 elevou, no art. 3º, inc. I, a solidariedade social à condição de objetivo fundamental da República, acrescentando, em complemento, no inc. III, a finalidade de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.35

35 De acordo com os incs. I e III do art. 3º da Constituição Federal de 1988: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[...]

Com essa previsão, de acordo com Moraes, a Constituição “conclama os Poderes a uma atuação promocional, por meio da concepção de justiça distributiva, voltada para a igualdade substancial, vedados os preconceitos de qualquer espécie" (MORAES, 2007, p. 110). A solidariedade social transforma-se, assim, num dos princípios vetores do nosso ordenamento, que deve ser considerado não apenas no momento da elaboração legislativa e na execução de políticas públicas, como também nos trabalhos de interpretação e de aplicação do Direito.

O reconhecimento do valor normativo do princípio da solidariedade social, como destaca Shreiber (2009, p.216), tem provocado alterações revolucionários em diversos setores do direito privado, temperando sua histórica orientação liberal e individualista.

Algumas das mudanças mais referidas pela doutrina dizem respeito: à renovação do instituto da propriedade pela exigência do cumprimento da sua função social; ao abandono da feição eminentemente voluntarista dos contratos que também passam a incorporar uma função social e à própria transformação na concepção de família, que abandona cada vez mais sua estrutura rígida e hierarquizada para ser compreendida como espaço privilegiado para realização da dignidade dos seus componentes e para a busca da felicidade.

Contudo, é na seara da responsabilidade civil que se tem verificado as mudanças mais intensas, pois além de embasar as hipóteses legais de responsabilidade objetiva, a solidariedade social foi responsável pela alteração do próprio fundamento da responsabilidade, que deixou de se centrar na repressão a condutas negligentes, para atentar para a reparação dos danos.

São manifestações da solidariedade social no campo da responsabilidade civil: ampliação das hipóteses de responsabilidade solidária, a crescente importância atribuída à prevenção e à precaução dos danos e o desenvolvimento dos seguros de responsabilidade civil.

Em outra senda, é importante destacar que a solidariedade alcança uma nova dimensão em face da emergência dos direitos de terceira geração, também conhecidos como direitos da fraternidade.

Com relação a esses direitos, Portanova (2002, p.686) destaca que não é possível assinalar um marco exato para a sua emergência, em virtude da sua característica difusa, complexa e, por vezes, paradoxal. Contudo, contribuem para o seu surgimento fatores como o impacto da tecnologia sobre a natureza, o estado crônico de beligerância e o processo de descolonização acelerado depois do segundo pós-guerra.

Esses direitos têm como nota distintiva o fato de se desprenderem da figura do homem – indivíduo e de se voltarem para defesa de grupos

humanos ou da própria humanidade. Apresentam, assim, caráter difuso ou coletivo e uma titularidade muitas vezes indeterminável. Exemplificam esta categoria, os direitos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida, o direito ao desenvolvimento, o direito à paz e o direito de autodeterminação dos povos.

Moraes (2010, p. 255) constata que nesses direitos aflora uma concepção de solidariedade que é resultante de um anseio típico do século XX, quando o homem se deparou, pela primeira vez, com a hipótese de destruição do planeta e de esgotamento dos recursos naturais. Trata-se da percepção de que todos estão a bordo do mesmo barco e de que, para enfrentar os novos problemas, precisavam ser solidários uns com os outros.

Para além da solidariedade entre os membros da mesma geração, as novas ameaças também despertam o surgimento de um novo dever, que é o da solidariedade diacrônica com as gerações futuras, assegurando a existência de uma equidade intergeracional.

Segundo Weiss (1992b), a ideia central da equidade intergeracional é a de que, como membros da presente geração, temos o direito de nos beneficiar do planeta e o dever de preservá-lo para as futuras gerações. Assim, pode-se dizer que não há fundamentos para se beneficiar uma geração em prejuízo da outra e que todas as gerações possuem o mesmo direito de acesso aos recursos do planeta.

Contudo, por se tratar de um conceito genérico e bastante abstrato, Weiss (1992a, 1992b) propõe duas estratégias para se definir os titulares e o conteúdo dos direitos e das obrigações inerentes à equidade intergeracional. Primeiro, deve-se enxergar a comunidade humana como uma associação entre todas as gerações. Em seguida, deve-se estabelecer que a sociedade humana tem o dever de proteger o bem-estar de todas as gerações, mantendo o sistema de suporte à vida do planeta, os processos ecológicos e as condições ambientais necessárias para um meio ambiente decente e saudável.

Essa nova acepção da solidariedade está prevista no art. 225 da Constituição Federal de 1988, quando o texto constitucional dispõe que o dever de proteger e de preservar o meio ambiente impõe-se em face dos interesses das presentes e futuras gerações, e já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em dois importantes julgados.

Em uma passagem da ementa do acórdão do mandado de segurança n. 22.164-SP, o Tribunal assim de pronunciou:

A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado - direito de terceira geração - princípio da solidariedade. - o direito a integridade do meio ambiente - típico direito de terceira geração - constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. Considerações doutrinárias36.

Mais recentemente, ao enfrentar a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3540-DF, o STF aceitou a existência de uma precedência do direito à preservação do meio ambiente, reafirmando-o nesta decisão como direito fundamental decorrente da solidariedade entre as gerações. Eis um trecho da ementa:

36 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão em mandado de segurança n. 22.164-SP. Relator: Ministro Celso de Mello. Disponível em <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudenci a/listarJurisprudencia.asp?s1=direito+ao+ambiente&pagina=5&base=baseAcordaos>.Acesso em: 30 abr. 2008.

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina37.

Evidente que a Constituição Federal de 1988 agasalhou, como princípios orientadores do ordenamento jurídico brasileiro, as duas dimensões da solidariedade: a solidariedade social e a solidariedade diacrônica com as futuras gerações.

Essa previsão, certamente, ainda forçará uma série de releituras em diversos institutos jurídicos, cabendo ao jurista observá-los nas construções legislativas, no desenvolvimento e aplicação de políticas públicas e na interpretação dos textos normativos.

No campo ambiental, pode-se adiantar que os princípios da solidariedade social e da solidariedade diacrônica com as futuras gerações impõem mudanças essenciais na responsabilidade civil, que, além de voltar as suas atenções para o dano e para a necessidade da sua reparação in natura, passa a destacar a importância da adoção de medidas preventivas e precaucionais, flexibiliza os critérios da certeza e da pessoalidade para a reparação de danos, além de pôr em xeque a aplicação de certos institutos como o da prescrição da pretensão reparatória. Todas essas adaptações justificam-se pela necessidade de se garantir a equidade entre as diversas gerações que se sucedem no tempo.

37 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão em medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade n. 3540-DF. Relator: Ministro Celso de Mello. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 01 maio 2008.