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A expressão “risco” apresenta um caráter polissêmico, tendo um conteúdo variável de acordo com o tempo e com a perspectiva em que é analisada. Isso ocorre porque, como destaca Veyret (2007, p. 11), o risco só existe enquanto relacionado com determinado indivíduo, grupo, comunidade ou sociedade, que o apreende através de representações mentais e com ele convive por meio de práticas específicas.

Por isso, o risco e a percepção que dele se tem não podem ser analisados sem que se leve em consideração o contexto histórico que os produziu e, em particular, as relações com o espaço geográfico, os modos de ocupação do território e as relações sociais características da época, do mesmo modo que a prevenção e a proteção contra os riscos não podem ser compreendidas fora de uma dimensão temporal. Assim, ao longo do tempo, a palavra risco teve o seu significado bastante alterado, tendo um uso cada vez mais corriqueiro e aplicável a uma grande variedade de situações.

Provavelmente, a palavra risco derivou de um termo náutico espanhol que significa correr para o perigo ou ir contra uma rocha. Segundo Giddens (1991, p. 31), o risco substitui, em grande parte, o que antes era pensado como fortuna (destino) e torna-se separado das cosmologias.

Embora o seu emprego tenha se vulgarizado a partir da Idade Moderna, os riscos não são uma invenção deste período, pois, como recorda Beck (1998, p. 27), quem se lançou à descoberta de novos países e continentes aceitou os riscos. No entanto, nesta época, os riscos tinham uma dimensão pessoal e o sentido de coragem e aventura não representavam a possibilidade de autodestruição da vida na Terra.

Durante a Idade Média, as referências ao risco encontravam-se relacionadas ao seguro marítimo e designavam as ameaças que poderiam comprometer uma viagem. O risco era encarado como uma possibilidade de perigo objetivo, de origem natural. Conformava uma situação de força maior, como uma tempestade ou outro perigo dos oceanos, que não poderiam ser imputados a alguém e, por isso, excluía a possibilidade de responsabilidade (LUPTON, 1999, p. 5).

Com o surgimento da Modernidade1, iniciada no século XVII e fortalecida ao longo século XVIII, a intensificação da industrialização e dos avanços técnico-científicos deram origem a uma nova compreensão em torno dos riscos.

O século XVII europeu assistiu a uma verdadeira revolução científica, iniciada com as descobertas de Copérnico e de Galileu, que, desafiando as noções reinantes de Ptolomeu e de Aristóteles, demonstraram, respectivamente, que não era o sol que girava em torno da Terra, mas o contrário e que, não só a Terra, mas todo o universo estava em movimento (BAHIA, 2006).

A partir deste momento histórico, o conhecimento objetivo do mundo por meio da exploração científica e do pensamento racional passou a ser entendido como a chave para o progresso humano e da ordem social. O homem moderno também alimentou a crença de que o mundo social e o natural eram regidos por leis imutáveis, que poderiam ser mensuradas, calculadas e preditas (LUPTON, 1999, p. 6).

O controle do homem sobre a natureza transformou-se, assim, no ideal almejado pelos primeiros cientistas modernos, que tinham a sua tarefa moralmente justificada por um prolongado período de pregação cristã (THOMAS, 2001, p. 34-35). Esta busca foi personificada, sobretudo, em autores como Francis Bacon e René Descartes.

Francis Bacon acreditava que o Estado moderno deveria organizar-se como uma república científica, gerida pela associação de sábios filantropos com o fim maior de obter o domínio completo da natureza para benefício do homem (OST, 1995, p. 36).

O propósito de auxiliar o homem no conhecimento e domínio sobre a natureza é também bastante evidenciado na obra de Descartes:

Essas noções me fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos muito úteis para a vida e de achar, em substituição à filosofia especulativa ensinada nas escolas, uma prática pela qual, conhecendo a força e a ação do fogo, da água, do ar, dos astros, do céu e de todos os demais corpos que nos cercam, tão distintamente quanto

1 A Modernidade é definida por Giddens como o “estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência” (GIDDENS, 1991, p. 11).

conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los igualmente a todos os usos para os quais são próprios, e desse modo nos tornar como senhores e possuidores da natureza. (DESCARTES, 2003, p. 60).

Na visão do autor, o seu método seria capaz de originar todas as leis da natureza. Assim, como bem percebe Ost (1995, p. 41), Descartes terminou por ocupar o lugar do Criador e por substituir o caos natural pela matéria mecanizada.

Nos dois séculos seguintes, os recentes Estados europeus modernos se empenharam em controlar suas populações produtivas e em lidar com as mudanças sociais e as insurreições geradas pela urbanização e industrialização em massa, decorrentes da Revolução Industrial. Nesse contexto, fortaleceu-se a idéia de que o cálculo e a ordem racional eram aptos para controlar a desordem. A probabilidade e a estatística desenvolveram-se como instrumentos aptos para calcular a norma e identificar os seus desvios (LUPTON, 1999, p. 6).

Ao longo do século XVIII, o risco adquiriu uma importância cada vez maior para a técnica moderna, passando também por um processo de “científicação”, com o desenvolvimento de novas ideias para o relato matemático da probabilidade. Os avanços técnicos e científicos produziram a crença de que era possível atingir um grau elevado de segurança e a eliminação quase total do risco e da incerteza.

Segundo esta concepção, o conhecimento deveria necessariamente desembocar no completo domínio dos fenômenos naturais, atribuindo-se à geologia, à matemática e à física a tarefa de prever e prevenir as ameaças (VEYRET, 2007, p. 10-11).

Durante o século XIX, a sua noção foi ampliada para alcançar não apenas a natureza, como os seres humanos, seu comportamento, liberdade e suas relações sociais. Desenvolveu-se também a ideia de que o risco poderia ser, ao mesmo tempo, bom e mau. É dessa forma, por exemplo, que o risco é concebido pelo sistema de seguros, que associa as ideias de chance ou probabilidade, de um lado, e de perda e dano, de outro (LUPTON, 1999, p. 7).

Com todas essas mudanças, a concepção moderna de risco inaugurou outra visão do mundo e suas contingências. As ameaças não previstas passaram a ser encaradas como decorrentes da atuação humana e não mais como manifestações de significados ocultos da natureza ou de intenções inefáveis da divindade e o cosmos indeterminado passa a

ser concebido como controlável, por meio do mito da calculabilidade (LUPTON, 1999, p. 7).

Dessa forma, pode-se dizer que a modernidade caracterizou-se, dentre outros elementos, pelo primado da razão, pela elaboração de explicações generalistas e pela crença absoluta na infalibilidade da ciência (BELLO FILHO, 2007, p. 76).

Essas ideias, no entanto, são alteradas com o advento da pós- modernidade.

Segundo Bittar (2009, p. 105-106), a pós-modernidade refere-se ao período de transição iniciado no final do século XX, que tem como marca principal a superação dos paradigmas erigidos ao longo da modernidade, gerando para muitas pessoas o senso de que vivem em novos tempos (LUPTON, 1999, p. 11). Esta fase da humanidade decorre da própria crise da modernidade e da necessidade de revisá-la.

Constata-se, assim, que a modernidade não cumpriu as suas promessas e que, ao contrário do que se previa, deu origem a um mundo caótico, do ponto de vista da concretização global da igualdade, e obscuro, quanto à garantia da infalibilidade da ciência, deixando como principais legados a pobreza, a falibilidade, a desigualdade e um estilo de vida prejudicial tanto para os homens quanto para o planeta (BELLO FILHO, 2007, p. 77).

Para Giddens (1991, p. 12), essa desorientação pode ser expressa pela sensação frequente de que não é possível alcançar um conhecimento sistemático sobre a organização social e de que existe um universo de eventos que não podem ser plenamente conhecidos, pois escapam a qualquer forma de controle. Para o autor, o mundo moderno é repleto de perigos e essa percepção tem contribuído para a perda da crença no progresso e, por consequência, para a dissolução de narrativas da história.

Na mesma linha, Veyret (2007, p. 11) entende que, contemporaneamente, o risco aparenta estar em toda parte e o sentimento geral de insegurança é ampliado com o próprio progresso da segurança e com o desenvolvimento das ciências e de técnicas cada vez mais sofisticadas. Com isso, o termo “risco” passa a ser empregado apenas para relatar acontecimentos indesejados e ruins (LUPTON, 1999, p.8).

As alterações promovidas pela pós-modernidade alcançam as mais variadas dimensões da experiência contemporânea de mundo, interferindo tanto nos valores, quanto nos hábitos, nas ações grupais, nas

necessidades coletivas, nas concepções e regras sociais e nos modos de organização institucional e, como todo processo histórico, não se materializam do dia para noite, expandindo-se paulatinamente.

Por isso, a pós-modernidade pode ser caracterizada não apenas pela incerteza e ambivalência como também pela fragmentação cultural e pela quebra de normas e tradições. Nela, acentua-se o processo de deslocamento espaço-tempo, a rapidez na circulação de sujeitos e objetos e o esvaziamento dos significados estabelecidos para as coisas e relações sociais (GIDDENS, 1992; LUPTON, 1999).

Em tempos recentes, em função da atual constatação da estreita relação entre as decisões humanas e o futuro da humanidade, o risco tem alcançado uma importância ainda mais destacada para a sociedade e o seu emprego faz-se cada vez mais presente na mídia e nos discursos dos especialistas (LUPTON, 1999).

A partir desse breve relato histórico em torno das concepções de risco, pode-se constatar que ao longo dos tempos, ele alcançou grande variedade de sentidos. Apesar disso, três elementos básicos integram e dão unidade a todas as noções de risco: o primeiro deles é o fato de constituir um acontecimento futuro com aptidão para produzir determinado resultado, o segundo é a incerteza científica e, por fim, exige-se que este acontecimento futuro e incerto produza algum impacto sobre valores humanos, apresentando, assim, certa relevância (LOPEZ, 2010; FERREIRA, 2010).

Muito embora esses elementos auxiliem a compreensão do risco, entende-se, atualmente, que a adoção de uma conceituação única e específica para o termo seria inconveniente, pois além de ser incapaz de alcançar os diversos significados que o risco apresenta em função do tempo e do contexto em que está inserido, poder-se-ia simplificar demasiadamente um conceito que é complexo por natureza (FERREIRA, 2010, p. 14).