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PARTE I – R EFERENCIAL TEÓRICO

1.3.3 A escola dos paradoxos

Fundada sobre si mesma, auto-reprodutora, conservadora, mas que permite a contradição, a sociedade do século XIX gera a sua própria antítese. Isso significa que, ao mesmo tempo em que institucionaliza a escola total, permite o surgimento das pedagogias de emancipação (PAIN, 2010), como as escolas de resistência de Singer (2010) ou ainda, no Brasil, as pedagogias dos “escolanovistas”, de Azevedo (1977) e Teixeira (1956).

Com isso, a escola se transforma na escola das promessas: uma escola pública, de qualidade, para todos, vista como promessa de sucesso profissional e na vida e também uma instituição de transformação da sociedade, enfim, o melhor lugar para as crianças e os adolescentes ficarem (MOSÉ, 2013. PAIN, 2010. TEIXEIRA, 1956. ILLICH, 1985).

Com o pós-guerra, no entanto, surge uma sociedade, que Pain (2010) vai chamar de complementar, em que a vida cotidiana é fragmentada e os conflitos são regulados pela disseminação do controle. Ocorre, então, a massificação escolar: a escolarização obrigatória para os anos secundários que, nos Estados Unidos, deu-se a partir da década de 1950 e, na Inglaterra, na década seguinte (OTTAWAY, 1962. CHIPMAN, 1975).

No Brasil, esse processo ocorre com a Constituição de 1988, com a garantia da universalização do ensino médio gratuito e a instituição da educação básica até os 17 anos (BRASIL, 1988). Contudo, somente em 2009, 97,9% das crianças de 7 a 14 anos de idade passaram a frequentar o ensino fundamental, permanecendo ainda desafio em relação aos adolescentes de 15 a 17 anos, diante da evasão escolar (BRASIL, 2009 e 2011).

No entanto, na sociedade complementar há um engessamento do modelo escolar em um tipo autoritário e consensual, com função de reorganização do pensamento e das pessoas, instituído na França de De Gaulle (PAIN, 2010) e também no Brasil, com o governo militar (MOSÉ, 2013). Tal escola continuará a ser desenvolvida no período de abertura democrática (PAIN, 2010. MOSÉ, 2013), quando a educação se instaura como direito social, mas a escola adota o modelo técnico, fragmentado. E nesse paradoxo:

[...] tudo se promete sem de fato se ter; de quebra, controla-se a execução do que foi imposto. Privilegiam-se certos comportamentos, declarados corretos, sem que sua prática ou a valorização social dela decorrente sejam ressaltadas. Ao contrário, sancionam-se as falhas ou a ausência de sucesso. O fracasso é um erro de seleção de pessoal (PAIN, 2010, p. 10).

As condutas são então prescritas e toda a estrutura é organizada de forma excludente, surgindo comportamentos de proteção e isolamento. Com isso, as relações entre os participantes da escola, isto é, os adultos, as crianças, os adolescentes e o currículo tornam- se cada vez mais conflituosas (PAIN, 2010. MOSÉ, 2013).

Ao mesmo tempo, vigoram as políticas públicas, em especial na América Latina, com ênfase na “política de expansão e aumento dos índices de matrícula e a política do aprimoramento da qualidade e da eficiência” (STEIN ett alli, 2006, p. 219). Situação que Gentili vai chamar de “dinâmica de exclusão includente” (itálico no original):

[…] um processo mediante o qual os mecanismos de exclusão educacional se recriam e assumem novas fisionomias, no contexto de dinâmicas de inclusão e inserção institucional que acabam sendo insuficientes ou, em alguns casos, inócuas para reverter os processos de isolamento, marginalização e negação de direitos que estão envolvidos em todo processo de segregação social, dentro e fora das instituições educacionais (GENTILI, 2009, p. 1061).

E assim, enquanto a sociedade luta por maior democratização, há a negação dessa mesma democratização às mais diversas instituições, entre elas a escola (GENTILI, 1998). O argumento central é a necessidade de se trabalhar a “qualidade” na educação em detrimento de outros aspectos, em busca de uma escola que permita a vida na “sociedade do conhecimento” (GENTILI, 2003, p. 257). Com isso, os fundamentos da escola permanecem:

[os adultos] exercem um conjunto de pressões que atendem mais aos interesses da organização social do que aos interesses destes [alunos], e estes regem a seu modo, procurando dar expressão a sua sociabilidade própria. Estabelece-se deste modo uma dupla corrente de sociabilidade: a que envolve o ajustamento do imaturo aos padrões do adulto, e a que exprime as necessidades e tendências. Na confluência de ambas situa-se a prática pedagógica, tanto mais satisfatória quanto melhor conseguir atenuar a tensão das duas correntes (CANDIDO, 1977, p. 110).

Para Karl Mannheim e William Stewart (1977), os alunos são submetidos ao professor a fim de receberem informações (“o que não significa que aprendam” – MANNHEIM; STWART, 1977, p. 133) e serem vigiados e corrigidos, ao passo que o professor é um líder institucional, com conhecimento e com “a responsabilidade para planejar como comunicá-lo a um grupo de crianças que podem não desejar aprender o que ele apresenta” (MANNHEIM; STUART, 1977, p. 135). O resultado é uma escola direcionada apenas a sua preservação:

[...] as ações que se desenvolvem se restringirão meramente à preservação da escola enquanto organização, levando professores e direção a abdicar de tarefas próprias do educador, pensadas como alguém que se ocupa de fornecer, além do conhecimento técnico e científico, os valores universais do ser humano (SILVA, 2010, s.p).

Isso significa que os aspectos morais, relacionados à socialização, são restritos à disciplina e ao respeito ao regulamento e somente na medida em que sejam úteis à preservação do estabelecimento. Caso um comportamento ou ação não se enquadrem, eles

não são pensados na escola. Daí, por exemplo, trabalhos sobre o bullying, conforme se verá adiante, enfocarem apenas o comportamento individual dos alunos, esquecendo-se a organização escolar e o imaginário por trás das ações cotidianas (SILVA, 2010).

Enquanto isso, Shipman (1975), Arendt (2013) e Freire (1996) lembram que a educação se tornou uma ação política, o que significa que qualquer mudança pretendida na sociedade passa a significar uma mudança pretendida na própria escola e em seu currículo, questão que se torna mais acirrada a partir das grandes guerras do século XX e da busca por bases para a solidariedade e a democracia (ARENDT, 1999).

É, então, que a educação para os direitos humanos surge na escola como uma forma de promover a dignidade humana, a igualdade de direitos, o reconhecimento e a valorização das diversidades e a democracia (BRASIL, 2007).

Assim, quanto mais a sociedade questiona a si mesma, mais a escola sofre mudanças curriculares, mais é questionada e mais se acirram as relações internas (SHIPMAM, 1975) criando espaço para mudanças no conteúdo do currículo. Contudo, ao se mudar o currículo oficial não se mudam os fundamentos da escola, as condições para o seu funcionamento adequado: a disciplina e a autoridade, seu currículo oculto como instituição direcionada à perpetuação da desigualdade e de adaptação ao sistema capitalista permanecem.

Como resultado, conflitos, dissensos e contestações, não resolvidos pela autoridade ou pelo poder disciplinar, mas pela coação, violência ou ameaça (ARENDT, 2004 e 2005) instalam um ciclo vicioso que gera uma explosão de conflituosidade. Essa, por sua vez, ao não ser enfrentada devidamente, dá origem às mais diversas violências. É nesse ponto, então, que trabalhar a relação entre conflito, violência e escola tornou-se uma questão central

2 VIOLÊNCIA

Quando falamos de violência, podemos falar do uso excessivo da força, da ação direcionada a destruir algo. Esse é o sentido etimológico do latim violentia, impetuosidade, violentus, o que age pela força e violare, tratar com brutalidade, desonrar, ultrajar, violar. Assim, a violência relaciona-se à destruição, a “uma ação que deteriora ou destrói aquilo a que se aplica” (BLACKBURN, 1997, p. 405).

Esse é o sentido dado por Stoppino (1995) ao considerá-la a intervenção física voluntária de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo com o objetivo de destruir, ofender ou coagir. Nesse sentido, violência é exterior, brutal e fisicamente dolorosa.

Contudo, ao utilizar apenas esses sentidos podemos ser levados a relacionar a violência à criminalidade, estigmatizando certos grupos ou negligenciando certas ações violentas por não serem crimes. Há, é verdade, crimes cujo núcleo central é a violência, como o latrocínio. Contudo, há todo um conjunto de crimes que não faz uso dela (furto, estelionato, receptação, corrupção), outro no qual seu uso pode apenas acirrar as consequências aos agentes, fornecendo uma qualificação ao crime (dano), bem como ações violentas que não se constituem crimes no sentido estrito (atos infracionais, rituais de passagem).

Diante disso, Abramovay e Rua (2002) conceituam violência qualquer agressão, física, moral ou institucional, contra a integridade física ou psíquica de um indivíduo ou grupo. Há, então, uma ampliação do conceito que envolve também outras violências, como a psicológica.

Em Arendt (2004) encontra-se um conceito de violência relacionado a ações instrumentais direcionadas a perpetuar ou estabelecer relações de mando e obediência. Nesse sentido, a violência se consubstancia no aumento da força e do vigor humanos, existente justamente quando a autoridade deixou de existir.

A ideia de violência como ação instrumental também pode ser encontrada em Pasquino (1995) e Jarez (2007). Contudo, para tais autores, ela se desenvolve na negação de quaisquer regras ou mesmo do reconhecimento ao outro.

Galtung (2003, p. 93), ao trabalhar o conceito de não-violência, considera a violência “qualquer coisa que possa impedir a auto-realização individual, não apenas atrasando o progresso de uma pessoa, mas também o mantendo estagnado”.

Com isso, é possível perceber que o conceito de violência pode ter tanto uma acepção ampla como uma acepção restrita, envolvendo apenas a ação física.

Além disso, mesmo numa acepção mais restrita, o que é violência pode variar conforme o lugar ou a classe social. Nesse sentido, por exemplo, Debarbieux (2006) considera que, conforme o país envolvido, violência pode ser desde uma simples contestação até os atos mais criminosos. Por outro lado, o mesmo tipo de comportamento pode ser avaliado, conforme a classe social, como um crime ou ainda um simples ato de incivilidade, ou seja, uma simples “grosseria” (CHARLOT, 2002).

Debarbieux e Blaya (2002) bem como Charlot (2002) acrescentam ao foco a repercussão da violência sobre a vítima. Nesse sentido, ações que podem até ser consideradas banais, em especial dentro de conceitos mais estritos de violência, mas que têm o condão de causar tamanho sofrimento às vítimas, são também violência, pois lhes negar tal atributo significa um ataque à dignidade dessas pessoas, bem como a perpetuação das situações.

Assim, trabalhar uma conceituação de violência mostra-se complexa porque envolve muitas variáveis, além da consideração do período histórico e do seu locus de atuação, não havendo uma teoria única ou completa sobre o tema.

Aliás, Wieviorka (1997) já falou sobre isso quando disse que qualquer ação que signifique a tentativa de se estabelecer uma teoria total da violência só vai alcançar o fracasso. A violência só pode ser compreenda a partir do contexto em que se encontra. Diante disso é que o presente trabalho adota uma conceituação ampla, não a configurando apenas como ação direta, humana, direcionada a outrem, vinculada à criminalidade.

A violência compreendida aqui se relaciona a qualquer ação ou omissão direcionada a destruir ou deteriorar a pessoa, grupo ou objeto a que se destina. Contudo, considerando o tema do presente trabalho, a violência mencionada é a que ocorre no contexto escolar. No entanto, antes de se discutir tal violência é necessário explicitar algumas concepções e classificações mais gerais sobre o tema.