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PARTE I – R EFERENCIAL TEÓRICO

4.3 A mediação social

A expressão “mediação social” é, assim como a própria mediação, polissêmica. Pontes (1997), por exemplo, vai considerar que ela é uma categoria do método dialético, dentro da teoria marxista, relacionada ao processo de conhecimento e intervenção do assistente social. Com isso, ela organiza a metodologia de intervenção do profissional e auxilia na inserção social de usuários nos serviços públicos.

No entanto, o conceito aqui adotado não possui tal conotação. Ele se relaciona à mediação de conflitos, já conceituada, contudo dentro de uma acepção específica, a partir de agora melhor explicitada. Nesse sentido, cabe já esclarecer que tal mediação pode ser chamada de popular ou comunitária.

A mediação popular, conforme Veloso, Amorim e Leonelli (2009), é uma terminologia adotada pela ONG “Juspopuli Escritório de Direitos Humanos”, da Bahia, e está relacionada a uma mediação comunitária, em bairros populares, que atende pessoas carentes e sem acesso ao Poder Judiciário. A opção pelo uso da palavra popular ao invés de comunitário representa uma ação política, pois:

[...] sugere dupla interpretação: por um lado, pelo que se liga às opressões que retiram das pessoas a cidadania; do outro lado, a concepção se vincula a uma postura política de resistência das pessoas a essa ordem excludente (VELOSO, AMORIM e LEONELLI, 2009, p. 69).

Assim, o uso de tal expressão serve para diferenciar de uma mediação centrada apenas nas relações entre vizinhos e na prevenção de processos judiciais, priorizando seu objetivo de transformação social.

Já o termo “comunitária” pode servir a ações de pacificação ou de emancipação, conforme a experiência norte-americana. Em contrapartida, a experiência europeia, em especial nos países de línguas latinas, passaram a utilizar o termo “social” ao lidar com conflitos inter-culturais, inter-raciais, escolares, públicos ou ambientais (SOUZA, 2003. OLIVEIRA; GALEGO, 2005). Em outras palavras, a mediação social relaciona-se à:

[...] perspectiva de estender o campo e o uso da mediação para além da busca de acordos mutuamente satisfatórios entre disputantes, dirigindo-se à prevenção de conflitos, à promoção da saúde do tecido social e à convivência positiva, pressupondo o mundo como multicultural e multifacetado (SOUZA, 2003, p. 93).

Além disso, a partir da Conferência de Creteil (2000), na França, o termo social passou a ser oficialmente utilizado em oposição a uma mediação que Marcus (2003) chama de “tradicional”, a fim de enfatizar o empoderamento individual na manutenção da harmonia social e na prevenção da criminalidade. Assim, a opção pelo termo mediação social, no

presente trabalho, enfatiza sua relação com processos de transformação social, conforme previsto em seu conceito.

Dentro dessa concepção, o mediador social possui atribuições específicas que vão além das funções de mediador de conflitos uma vez que ele deve atuar sempre na identificação de grupos vulneráveis facilitando o seu acesso aos serviços públicos e a conscientização de seus direitos (FRANCE, 2011; 2008; 2009). Além disso, diante de conflitos sociais, ele tem ainda a atribuição de organizar reuniões com moradores ou instituições a fim de permitir a livre expressão, rastrear ou reduzir expectativas, compreender restrições e propostas para melhorar a vida cotidiana (FRANCE, 2009; 2011).

Contudo, sua atuação não pode ser solitária, pois muitos dos conflitos por ele enfrentados exigem a atuação de terceiros. Diante disso, o mediador social tem como função atuar junto a uma rede social e de proteção, acessando-a quando necessário, inclusive para garantir a continuidade dos serviços (FRANCE, 2009). Isso não significa que ele possa substituir os profissionais dos serviços sociais, ou seja, psicólogos, assistentes sociais ou educadores especializados, mas, ao contrário, provocar a atuação desses profissionais (FRANCE, 2011).

Dessa forma, em consonância com SIX (2001), a mediação social é uma ação política, relacionada, portanto, à democracia e à cidadania.

Sua relação com a democracia dá-se porque, ao permitir o diálogo, ela auxilia na convivência com a conflituosidade inerente à vida. Seu processo dialógico, pautado na escuta e na compreensão do outro, permite a realização do que Warat (2004) vai considerar negociação da produção conjunta da diferença, que em outras palavras pode ser compreendida como a vida comum (ARENDT, 2005) ou a partilha do sensível (RANCIÈRE, 1996).

Isso porque no processo de mediação social cada um dos participantes pode falar, ouvir, ser ouvido e se ouvir. Quando isso ocorre, as pessoas podem se colocar no lugar do outro e se permitir o reconhecimento desse outro e de suas diferenças. Com isso, o conflito passa a ser percebido como integrante da vida comum, atuando, então, como motor de transformação das pessoas diante dos conflitos (BUSH; FOLGER, 2005. WARAT, 2004).

Nesse ponto, ao incluir todos e favorecer o diálogo, a mediação social permite a participação dos que tradicionalmente não são ouvidos, de forma que possam ter um espaço de fala e de reivindicação (SIX, 2001. WARAT, 2004). Ademais, dentro de uma vertente social, a mediação permite que conflitos inicialmente compreendidos como apenas interpessoais possam ser vistos a partir de suas reais causas, tornando-se, assim, conflitos

sociais (BUSH e FOLGER, 2005). Quando isso ocorre, a mediação social atua como um espaço de promoção da cidadania.

Cidadania, aqui, não é apenas o vínculo político com um Estado. Ela está relacionada, conforme Six (2001), às “coisas da cidade”, à participação e à atuação no bairro, nas associações, na vida comunitária, e a uma identificação pessoal criada a partir de ligações emocionais com as pessoas, com o lugar, com os costumes, com uma cultura e, mais ainda, com a obrigação de servir à própria comunidade.

Warat (2004, p. 113) compreende a cidadania como uma mudança no modo de conceber a vida cotidiana: não é uma existência de um e de outro, mas um “espaço entre um e o outro”, uma decisão construída com o outro, um espaço construído dentro das relações interpessoais que se constitui na responsabilidade, no cuidado, na solidariedade.

Para Jelin (2007), ela se relaciona a um compromisso com o mundo, a um agir guiado pela consciência pessoal, pela sensação do justo e do ético.

Diante disso, cidadão é o próprio sujeito de direitos da EDH. Daí sua relação com a mediação social. Em outras palavras, o próprio mediador social é cidadão e sujeito de direitos isto é, ele encontra pessoas em conflito, atua de forma ética, favorece os recursos das próprias partes, sem impor, nem sugestionar, mas buscando as causas reais do conflito em questão. Ao perceber um aspecto social, age no sentido de empoderamento das partes para uma atuação conjunta. Além disso, ele é um sujeito de direitos porque tem a responsabilidade de atuar ativamente em sua comunidade, especialmente como ponte para os demais e entre esses e os serviços públicos, seus direitos e suas garantias (SIX, 2001).

Assim, a mediação acaba por se tornar um espaço de reconhecimento, no qual as pessoas podem decidir sobre suas próprias vidas, sem a necessidade de decisões heteronômicas. Isso representa a possibilidade de promoção de autonomia dos sujeitos e dos grupos envolvidos (WARAT, 2004. CASTORIADIS, 1982).

Em suma, pelo processo de mediação social tanto a autonomia, quanto a democracia e a cidadania podem ser desenvolvidas, o que a leva a ser considerada uma proposta pedagógica e cultural, que se propõe “transformadora da sensibilidade individual e coletiva, e que está afetando todos os modos de entender tanto as ações públicas como os vínculos privados, e fundamentalmente, as relações amorosas” (WARAT, 2004, p. 104):

Em termos de autonomia, cidadania, democracia e direitos humanos a mediação pode ser vista como a sua melhor forma de realização. As práticas sociais de mediação configuram-se em um instrumento de exercício da cidadania, na medida em que educam, facilitam e ajudam a produzir diferenças e a realizar tomadas de decisões, sem a intervenção de terceiros que decidem pelos afetados em um conflito. Falar de autonomia, de democracia e de cidadania, em um certo sentido, é ocupar-se

da capacidade das pessoas para se autodeterminarem em relação e com os outros; autodeterminarem-se na produção da diferença (WARAT, 2004, p. 66).

Apesar disso, a atuação da mediação social dentro do contexto escolar pode apresentar-se de forma diferenciada.