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PARTE III – A NÁLISE DOS D ADOS E C ONCLUSÃO

6.6 Uma escola que vigia, conversa e pune

Na escola pesquisada, foram identificadas formas de gestão dos conflitos tanto preventiva (intervalo monitorado) quanto repressiva (tentativas de conversa e diálogo, punição e à recorrência ao batalhão escolar). Além dessas, o “Projeto Estudar em Paz” atuou também de forma preventiva, com os estudantes que participaram do curso de formação em mediação social quanto a posteriori, com o conflito instalado.

Considerando que o batalhão escolar é um terceiro e que as violências duras são vistas como externas ao contexto escolar (DEBARBIEUX, 2006. CHARLOT, 2002), nesta seção o foco principal serão as ações empreendidas pela própria escola para lidar com a sua realidade. Para tanto, procurou-se compreender no que consiste e como acontecem o intervalo monitorado, as conversas, os diálogos e as punições, quando ocorrem, quem as realiza e em face de quem.

6.6.1 A vigilância

O intervalo monitorado consiste na presença de uma dupla de professores que circulam pela escola, junto aos estudantes, durante o intervalo entre aulas. É feito por escalas e foi mencionado pelos profissionais da escola como um aspecto positivo do lugar:

A gente circula junto com os alunos pra ver a questão de não ter briga, ou, às vezes, ficar observando o andamento daqueles alunos (Elisabete. Profissional da escola).

Os professores ficam circulando na hora do recreio, observando, vendo os meninos (Mariana. Profissional da escola).

Na questão da disciplina, a gente faz escalas dos professores no intervalo pra vigiar, pra não dar problemas no intervalo (Aparecida. Profissional da escola).

Assim, a função principal do intervalo monitorado é observar e vigiar os estudantes, para “não dar problemas”, ou seja, evitar brigas. Há, assim, uma tentativa institucional de tornar o poder mais fluido, sutil, saindo da esfera eminentemente punitiva para a vigilância permitindo maior controle sobre as ações dos indivíduos sob o poder institucional (FOCAULT, 1984. 1999).

As brigas diminuíram, conforme visto no decorrer deste trabalho. Contudo, como também já visto, cada ação de controle cria outras ações de resistência, tão ou mais fluidas e sutis quanto o modelo estabelecido. Ou seja, evitam-se as brigas intramuros, mas não as ações sutis, como a exclusão e o bullying, nem as brigas extramuros. A possibilidade de uma melhoria no relacionamento entre profissional e estudante também não ocorre com o intervalo monitorado, o que poderia se dar diante da maior proximidade entre esses atores escolares em um ambiente mais descontraído, como o pátio e o recreio, de maneira que os conflitos continuam por atrapalhar a aula ou causar as guerras de comida. Daí a necessidade da escola usar ações repressivas.

6.6.2 A repressão

Para os entrevistados, antes de ser uma escola que pune, a escola pesquisada é uma escola que conversa. Isso pode ser percebido pela fala de Marisa, profissional da escola, ao considerar que um ponto crítico da escola seriam as agressões verbais entre alunas e alunos, as brigas de estudantes, e diz que para lidar com a situação:

A direção conversa, a gente conversa, eu converso [...] Diálogo aqui é muito comum.

Esse mesmo pensamento pode ser observado nas falas de Meire, profissional da escola, quando fala que, diante de um conflito envolvendo estudantes, a escola “conversa com eles [os estudantes]”. Mas tal conversa não é apenas com os estudantes, também se dá com a família e com os professores diante do mau comportamento de estudantes:

[...] a escola sempre está procurando chamar, cuidar, mandar bilhete, avisos pra comparecer aqui, quando o aluno está dando problema. Liga pros pais, muitas vezes até do telefone pessoal, pros pais dos alunos poderem vir aqui pra conversar sobre o filho dele (Paulo. Profissional da escola).

[...] a gente sempre trabalhou dessa forma, sempre conversando com os alunos, chamando a família [para conversar] (Meire. Profissional da escola).

Quando a gente tem um desentendimento a gente chama o professor, o aluno, o pai e a gente conversa (Luciana. Profissional da escola).

A partir desses relatos, pode-se considerar que a escola pesquisada busca ser um local dialógico, no dizer de Paulo Freire. Ela acredita que busca encontrar formas de lidar com a pluralidade, ampliando os espaços de discussão, lidando com seus conflitos de uma forma plural, na base do diálogo, o que traz como consequência uma democratização do espaço público (LEFORT, 1991. RANCIÈRE, 1996). Isso é tão forte na percepção da escola pesqusiada que a própria Meire considera que, diante da atuação do “Projeto Estudar em Paz”, eles também sempre fizeram mediação. O que esse projeto fez foi dar nome a esse diálogo.

Contudo, a conversa é considerada pouco eficaz, tanto por profissionais da escola quanto por estudantes. Assim é que Teresa considera que “conversa, chama a atenção, manda para a direção, mas não resolve. Eles [os estudantes] não ouvem. É tudo desvairado!”. Mesmo numa situação envolvendo consumo de drogas, Luciana informa que a escola conversa com os estudantes sobre os efeitos negativos “mas eles não têm discernimento de saber o quanto isso é ruim”. Um dos motivos para isso pode ser a forma como essa conversa ocorre:

A conversa já é na briga, já é na hora do nervoso, quando já está todo mundo exaltado quando vai ver (Aparecida. Profissional da escola).

Em outras palavras, não há aspecto democrático e dialógico inicialmente imaginado. Na realidade, alguns relatos dessa conversa, presenciados no trabalho de campo, podem demonstrar como se dá o desenvolvimento desse processo. No caso já enunciado de briga entre dois meninos, porque um havia passado a mão nas nádegas do outro, a profissional da escola que os atendeu já começou falando, quando viu o primeiro chorando:

- O que você está fazendo aqui?! Sai, sai, sai, sai! Sai já daqui!

Quando o segundo entrou, ela olhou para o primeiro e disse, sarcasticamente: - Ah, já sei porque você está aqui! Fica, então (Adaptação de anotação de diário de campo referente a 1o de novembro de 2013).

Durante todo o processo de escuta, ela interrompia a fala dos meninos, batia a mão na mesa e falava com o dedo em riste: “Então, você estava mentindo!” ou “Ah, agora eu sei que é você que está mentindo!”. Em qualquer sentido, isso não é um processo de mediação.

Da mesma forma, a conversa diante de um conflito em sala de aula não é um diálogo. Assim, quando Meire, profissional da escola, informa que, num conflito em sala de aula, o professor conversa com toda a turma, no geral, significa que o professor aplica um sermão. De acordo com a fala de Aparecida, também profissional da escola, quando a escola

Denuncia-se à família a situação do ou da estudante e espera-se que ela acate essa informação. Em resposta, a família responde “a escola não tem provas, não tem câmeras para filmar”.

A conversa e o diálogo são partes de uma relação igualitária. Conversa-se e dialoga-se com um igual porque se reconhece o Outro alguém com direito de ser ouvido e de falar. O diálogo, conforme expresso por Paulo Freire, implica ouvir o outro e o que ele tem a dizer. Não apenas ouvir, mas considerar e refletir e, a partir disso, construir algo conjunto, uma relação, uma solução ou uma conclusão. No diálogo há a construção de uma relação democrática porque se reconhece o Outro e o seu direito à fala (RANCIÈRE, 1996; 2004).

A pesquisa verificou que esse não é um procedimento da escola pesquisada. Não há o diálogo. Na realidade, diante do conflito, duas opções surgem, uma como a atuação de Flávio ao dizer “Fico calado, para não apanhar” quando questionado o que ele faz para lidar com as brigas e provocações de colegas, também estudantes. Ou então, como já previsto por Maquiavel (1999), Entelman (2002) e Deustch (2004) e expresso no grupo focal:

Esses conflitos quem acaba mesmo resolvendo são os alunos. Sempre sobra pra gente. E aí vai na porrada mesmo. Vai na porrada! [...] Como a direção não resolve o problema, os alunos vão na porrada mesmo. Aí vai lá fora, aí uns correm, outros apanham, mas aí depois que acontece tira do chão, liga pros pais. (Maria. Grupo focal).

A questão nisso tudo é que surgem sensações de impunidade e de frustração que acirram os sentimentos e fazem os conflitos tornarem-se mais intensos. Resta à escola, então, adotar outras soluções repressivas: a punição, expressa nas advertências, na suspensão e nas transferências. “O que é o máximo que a escola pode fazer?!”, pergunta Aparecida. Restam apenas as punições.

Contudo, a violência e a punição só funcionam quando há o medo (ARENDT, 2013; 2014. ASSIS; VINHA, 2003). Quando elas são usadas com regularidade, perdem a força e se tornam ineficazes. Essa é a percepção dos profissionais da escola acerca do resultado da aplicação das punições:

Os meninos hoje em dia pra eles, eu acho, isso aí já não é mais disciplina. Já é mais uma brincadeira. (Aparecida. Profissional da escola).

Quando dá uma advertência ou uma suspensão, eles acham bom, porque ficam em casa (Cristina. Profissional da escola).

A sensação que cria é de banalização. As punições são excessivamente utilizadas e acabam por não mais surtir efeitos, principalmente quanto a reincidentes. Nesse ponto, cabe esclarecer que a escola pesquisada previa, em seu Regimento Interno, a mediação de conflitos anterior às punições. Não foi possível observar nenhuma mediação, até porque,

ao que tudo indica, não houve implementação dessa parte no regimento. Além disso, é preciso lembrar que o núcleo de mediação não foi efetivamente implantado na escola pesquisada.

Com isso, é assim que a escola lida com estudantes que cometem infrações:

Um menino teria xingado umas meninas de “sapatão”. Eu só ouvia Luzia gritando, xingando (eu estava do outro lado do pátio e fui me aproximando), que não aceitaria esse tipo de coisa, que ele era um idiota, que ele não valia nada, que ela estava cansada de lidar com ele. O menino foi suspenso por três dias, mas em todo esse processo em nenhum momento houve uma explicação ou fala dele. Ele até tentava se justificar e falar, mas Luzia gritava falando para ele calar a boca (Adaptação de anotação de diário de campo referente a 5 de novembro de 2013).

Hoje, depois do recreio e de conversar com alunos ouvi Luzia gritando com uns meninos: _ Ai que ódio! Olha o que vocês fizeram! (Adaptação de anotação de diário de campo referente a 19 de novembro de 2013).

Essas situações revelam um quadro de violência psicológica (ESCARLATO; SILVA, 2011. NASCIMENTO, 2001) aliado a uma sensação de banalização da punição, criando raiva e escalada da violência.

Isso não significa uma posição determinista. Um aluno que foi punido, que se envolveu numa briga, que se deparou com um profissional que um dia gritou com ele, não necessariamente é um aluno que vá passar por processos de escalada de violência na resolução de seus conflitos ou depredar a escola. O que os resultados desta pesquisa sugerem é que a escola pesquisada não consegue sair de um ciclo vicioso de violências cotidianas diante da complexidade dos conflitos que a integram. Isso se dá nas escolas de uma maneira geral, o que poderia ser motivo para justificar a implantação e implementação de um projeto de mediação de conflitos.