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PARTE I – R EFERENCIAL TEÓRICO

2.1. Concepções acerca da violência

2.1.2 Violência objetiva

A violência objetiva relaciona-se aos sistemas de relações de toda uma sociedade, “cuja falta ou enfraquecimento criam o espaço da violência” (WIEVIORKA, 19997, p. 27). É uma violência sóciossimbólica, moral, que permaneceria mesmo se as violências subjetivas findassem, por se constituir na autorreprodução dos sistemas econômicos e sociais (WIEVIORKA, 1997. DRAWIN, 2001. GALTUNG, 1969 e 1990).

Para Weber (2004) o Estado é uma associação de dominação, única legitimada a exercer a violência no caso do desrespeito a suas normas. Contudo, o declínio da noção do Estado-nação, ocasionado seja pelas lutas de direitos humanos, que interpelam em busca de um Estado multicultural, seja pelo processo de globalização, que ocasiona o crescimento das atividades informais, o fortalecimento do mercado e do trabalho clandestino, faz com que haja o que Wieviorka (1997) chama de “privatização da violência”.

Nesse modelo, a violência é realizada por grupos privados que desenvolvem uma economia própria, ilegal, cujo interesse é justamente manter o Estado afastado, a fim de permitir maior dominação e controle territorial. A violência instrumental, então, surge nesse vazio estatal, constituindo-se em processos difusos que, para Wieviorka (1997), atraem pouca atenção da mídia ou mesmo do Estado, só percebida nas estatísticas.

No Brasil, é possível encontrar esse tipo de violência, tanto na área urbana quanto rural, por meio dos índices de mortes violentas por armas de fogo, por exemplo, tais como indicam Waiselfisz (2014) e seus mapas da violência. Os dados revelam índices tão altos que são comparáveis apenas aos de países em conflitos armados ou em guerras.

Nesse sentido, a violência advém tanto da ausência de segurança pública quanto do acesso escasso a serviços básicos, o que é compartilhado por Sposito (2001), Njaine e Minayo (2003) e Abramovay et al. (2002). Assim, o Estado se afasta (ou sequer se aproxima) e grupos particulares ocupam o que seria monopólio estatal: o espaço do direito à violência diante da confrontação a suas normas.

A ideia de uma privatização da violência não exclui a violência estatal em si ou dentro dos Estados-nações. Os atuais conflitos armados são apenas alguns dos exemplos. Contudo, o Estado também tem sido um dos principais responsáveis pela violência por meio da atuação de seus próprios agentes. Quanto a isso, basta mencionar os casos de tortura

policial ou índices de letalidade e demais violações de direitos das forças policiais internas no Brasil, expressos por Bueno e Lima (2012) e Loche (2010).

O resultado dessa situação é justamente a perpetuação desse sistema em outras esferas, por meio do acirramento do ódio, da perda do medo e da reprodução do modelo. É por isso, que Wieviorka (1997, p. 10) considera o Brasil um país que tolera ou suporta a violência, percebendo-a “quase como inscrita no funcionamento normal da sociedade”.

Mas essa violência também se encontra na própria conjuntura econômico- social baseada na concepção de uma sociedade capitalista. É nesse sentido que Wieviorka (1997) lembra os anos 1950 e 1960, quando vigorava a ideia de democratização e industrialização em direção a um progresso permanente, que permitisse o acesso a bens de consumo a todos. A ideia passada é que esse sistema se traduziria em regressão da violência.

É o american way of life que não se reproduz, na verdade, para todos, mas só existe a partir da opressão de muitos, submetidos, esse sim, à precarização do trabalho e ao esgarçamento das relações sociais. Como resultado:

[...] a raiva e o ódio dos jovens exprimem-se certamente tendo por trás um cenário marcado por dificuldades sociais, mas correspondem acima de tudo a sentimentos fortes de injustiça e de não reconhecimento, de discriminação cultural e racial (WIEVIORKA, 1997, p. 22).

Mais uma vez, isso não significa que haja uma relação direta entre aspectos econômico-sociais e violência. Apenas que, se de um lado elas podem criar frustrações que alimentam violências diversas, entre elas as coletivas ou racistas (WIEVIORKA, 1997), podem também naturalizar as desigualdades sociais, estabelecendo, mais uma vez, cidadãos de segunda categoria (GALTUNG, 1990) que, frente a uma realidade de necessidade consumista, passam a estar dispostos a alcançar seus objetivos por quaisquer meios.

Diante de tais colocações questiona-se se a ausência do Estado não seria ela própria violência (e não apenas sua causadora). Esse é um questionamento feito por Freire (1987; 2001) para quem a violência real é justamente a que estabelece situações de miséria e opressão. E é diante desse questionamento que surge a constituição da violência estrutural.

A partir de Weber (2004) encontra-se um delineamento da violência estrutural, sendo a que nasce diante da perda da legitimidade do Estado. É a ausência da autoridade, legal ou racional, o que se consubstancia nos abusos do poder. Não se relaciona ao monopólio legítimo da força porque, nesse caso, a legitimidade se assenta na constituição de um Estado de Direito, ou seja, baseado em leis criadas dentro de um processo democrática e a que o próprio Estado deve obediência. É, ao contrário, a perda da legitimidade dessa força que leva

Esse tipo de violência é relacionado também às estruturas organizadas e institucionalizadas da sociedade, conforme Minayo (1994, p. 08):

Aquela que oferece um marco à violência do comportamento e se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte.

Já Galtung (1969 e 1990) trabalha um conceito de violência estrutural não apenas como um marco à violência subjetiva, mas um processo de construção da realidade. Para ele é a violência estrutural que fornece os argumentos que justificam o status quo.

Enquanto a violência subjetiva, que Galtung (1969 e 1990) vai chamar de direta, relaciona-se a eventos específicos, a uma ruptura ou choque, a violência estrutural passa a sensação de normalidade, de estabilidade, na qual as mudanças parecem ocorrer de forma lenta, dentro de um processo histórico.

Isso porque a violência estrutural, tanto na esfera estatal quanto social ou individual, é a situação naturalizada pela sociedade, relacionada à exploração da violência direta. Os problemas sociais da cidade e casos de desnutrição são alguns dos exemplos de violências estruturais que acabam estabelecendo cidadãos de segunda categoria, grupos específicos e estratificados e relações desiguais de poder e autoridade (GALTUNG, 1990).

Há então uma relação de continuidade entre a violência objetiva e a subjetiva de forma que uma espelha a outra, tanto no campo individual quanto social, estatal ou supranacional, de forma que considerar apenas uma delas é ignorar suas causas.

Mas se a violência é algo cultural, construído historicamente e os mecanismos de sua criação surgem da cultura humana ou de seus aspectos simbólicos, está-se diante da violência simbólica (BOURDIEU, 1989. BOURDIEU; PASSERON, 1975).

Violência simbólica é o poder utilizado de forma a assegurar a dominação do grupo dominante sobre um grupo dominado. Ela é simbólica porque é constituída das artes, da religião e da própria linguagem, ou seja, os aspectos simbólicos da existência humana, que formam e constroem a própria realidade em que vivemos. É o que se refere à “história oficial”, ao padrão, ao senso comum, ao que é considerado belo e bom pela sociedade. Constitui-se violência porque tais padrões definidos são arbitrários e a imposição é dada sem motivo, apenas pelo fato de que se transmuta na cultura do dominante (BOURDIEU, 1989. BOURDIEU; PASSERON, 1975). Ela é permanente porque se dá na interiorização dos valores culturais e encontra entre os dominados os seus sustentáculos.

Há uma relação entre as violências direta (subjetiva), cultural e estrutural (objetiva). De acordo com Pureza (2011, p. 14) a primeira aparece como um fato ao passo que a estrutural é um processo e a cultural é uma imanência, “uma invariância, uma permanência”. Galtung (1990) considera que a violência cultural atua no sentido de promover a violência direta bem como justificar violência estrutural.

No contexto escolar, todas essas violências se encontram, havendo a necessidade de sua configuração nesse locus de atuação.