• Nenhum resultado encontrado

PARTE I – R EFERENCIAL TEÓRICO

4.4 A mediação no contexto escolar

As experiências mais antigas de mediação de conflitos no contexto escolar remontam à década de 1970. O primeiro programa noticiado é o Children´s Creative

Response to Conflitc (CCRC), criado em 1972 na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos, a

partir da extensão do projeto de mediação comunitária local, o New York Quaker Project on

Community Conflict (HEREDIA, 2009. JARES, 2002). Apesar disso, tanto Finn (1995)

quanto Sorel (1955) mencionam que a experiência iniciou-se em 1968, a partir da experiência com o treinamento de integrantes de peacekeping (manutenção da paz) da ONU (2014).

Conforme Sorel (1995), a percepção gerada diante da atuação com tropas de manutenção da paz levou a considerar a necessidade de se educar as crianças para valores pacifistas e não violentos. Contudo, havia a percepção de que mesmo os professores e demais educadores não eram preparados para lidar com essa mudança (PRUTZMAN et al, 1978).

O projeto foi direcionado às escolas de ensino fundamental com o objetivo inicial de propagar valores de não-violência e desenvolver habilidades sociais para lidar com conflitos (FIN, 1995. JARES, 2002. PRUTZMAN et al., 1978). De forma estruturada, Heredia apresenta os objetivos da seguinte forma:

a) desenvolver uma comunidade em que as crianças desejem e sejam capazes de uma comunicação aberta; b) ajudar às crianças a desenvolver uma melhor compreensão da natureza dos sentimentos, capacidades e fortalezas humanas; c) ajudar às crianças a compartilhar seus sentimentos e ser conscientes de suas próprias qualidades; d) ajudar a cada criança a desenvolver autoconfiança em suas próprias habilidades e e) pensar criativamente sobre os problemas e começar a prevenir e solucionar os conflitos (HEREDIA, 2009, p. 52)6.

Diante disso, o currículo era organizado em quatro eixos: cooperação, comunicação, resolução de conflitos e afirmação e desenvolvimento de auto-estima, trabalhados tanto junto às crianças quanto aos professores (SOREL, 1995).

A formação dos professores era direcionada a habilidades de metodologias de cooperação bem como para usar e ensinar habilidades de administração de conflitos, a fim de

6 No original: “a) desarrollar una comunidad em la que los niños deseen y sean capaces de uma comunicación abierta, b) ayudar a los niños a desarrollar uma mejor compreensión de la naturaleza de los sentimientos, capacidades y fortalezas humanas, c) ayudar a los niños a compartir sus sentimientos y ser conscientes de sus proprias cualidades, d) ayudar a cada niño a desarrollar autoconfianza em sus próprias

impactar positivamente o ambiente de aprendizado, tanto na sala de aula quanto na escola como um todo (FINN, 1995). Em relação às crianças, eram orientadas a desenvolverem habilidades de comunicação e cooperação, havendo destaque ao desenvolvimento da autoestima (SOREL, 1995. PRUTZMAN et al, 1978).

Essa experiência inicial favoreceu a criação de outros programas, dentre esses, o programa Conflict Resolution Resources for Shool and Youth (CRRSY). Criado em 1976, em São Francisco, também nos Estados Unidos, integra desde 1982 o programa Community

Boards: Building Community Through Conflict Resolution, de mediação comunitária

(HEREDIA, 2009. COMMUNITY BOARDS, 2010).

Esse programa se diferencia do anterior, primeiramente, porque sua atuação se dá a partir da colaboração entre o sistema escolar e os centros de mediação comunitária local, cabendo a esses a formação e o auxílio na implementação do programa nas escolas. Além disso, ele se diferencia do anterior por possuir currículos para todos os níveis educacionais, a partir dos 03 anos de idade (HEREDIA, 2009. COMMUNITY BOARDS, 2010).

Dentro dessa proposta, o objetivo era desenvolver habilidades em administração de conflitos com foco no relacionamento entre pares. Daí seu direcionamento ao treinamento de estudantes como mediadores de conflitos (COMMUNITY BOARDS, 2010. HEREDIA, 2009). É, assim, uma visão mais prática e de curto prazo que o primeiro.

A partir desses dois programas pode-se perceber que a mediação de conflitos no contexto escolar não surge dentro de uma ação pedagógica, interna à lógica escolar, mas do próprio movimento de expansão da mediação de conflitos como prática social. Além disso, ela também coincide com o processo de massificação da escolarização e de instituição da escola dos paradoxos que retira de si as funções educativas.

Dessas experiências é que a mediação de conflitos expandiu-se no contexto escolar. Apesar disso, Slyck e Stern (1991) consideram haver apenas duas categorias desse tipo de programa: uma de longo prazo, mais global, e outra de curto prazo.

A primeira, representada pelo CCRC, tem como objetivo promover melhores cidadãos e um mundo mais harmonioso, em que as relações estariam sujeitas a formas não violentas de resolução de conflitos. A segunda categoria, representada pelo CCRSY, tem uma função mais programática e de curto prazo, de tornar os estudantes mais socialmente engajados e melhorar o clima disciplinar escolar.

Dentro desses dois modelos podem ser desenvolvidos quatro enfoques práticos, conforme expressam Crawford e Bodine (1996).

O primeiro enfoque relaciona-se aos programas simplesmente curriculares, ou seja, aulas ou um curso específico com objetivos de mudar atitudes e comportamentos dos estudantes diante do conflito, tornando suas abordagens mais colaborativas. Dentro desse contexto, o programa pode variar desde a discussão quanto às formas de resolver conflitos ao redor do mundo até o enfoque de desenvolvimento de habilidades práticas, como escuta ativa, comunicação eficaz e técnicas de solução de problemas (HEREDIA, 1999 e 2008. CRAWFORD; BODINE, 1996).

O segundo enfoque trata da mediação de conflitos estrito senso, ou seja, com objetivo de capacitar adultos e (ou) estudantes para se tornarem mediadores. Entre esses, pode haver desde a mediação por pares pelos estudantes, para resolver os conflitos entre colegas, nos pátios, recreios ou salas de aula, bem como a comediação entre professores e alunos para lidar com conflitos entre estudantes e professores, além de programas nos quais os adultos são os mediadores (CRAWFORD; BODINE, 1996. HEREDIA, 1998 e 2008).

O terceiro enfoque se dá dentro da construção de aulas colaborativas. Nele, o objetivo é que toda a metodologia de ensino desenvolva-se a partir do trabalho cooperativo, já mencionado nesta pesquisa. Isso significa que uma educação em resolução pacífica de conflitos é incorporada aos objetivos do currículo e às estratégias de administração de sala de aula, havendo, para isso, a capacitação específica de professores para a atuação dentro desse enfoque (HEREDIA, 1999 e 2008; CRAWFORD; BODINE, 1996).

Por fim, há o enfoque da escola pacífica (peaceable school approach) na qual, os “princípios e processos da resolução de conflitos são aprendidos e utilizados por todos os membros da comunidade escolar: bibliotecários, professores, conselheiros, diretores e pais7” (CRAWFORD; BODINE, 1996, p. 39). É o chamado “enfoque global”, de Heredia (2008), que envolve todos os demais, de forma a influenciar as seguintes áreas escolares: o sistema disciplinar, o currículo, a pedagogia, a cultura, o lugar e a comunidade (HEREDIA, 2008). Essa é a abordagem proposta por Ortega e Del Rey (2002) ao considerarem que ele oferece melhores resultados no sentido de prevenção de violências nas escolas, estando em consonância com a proposta de desenvolvimento de fatores de proteção de Debarbieux (2006), além de ser uma proposta compartilhada por Crawford e Bodine (1996) e Heredia (2008 e 2009).

Em relação ao sistema disciplinar, a mediação interfere ao alterá-lo de um sistema punitivo para de autorregulação e de compreensão das consequências dos atos. Nesse sentido, o processo de mediação pode ser tanto anterior quanto posterior às consequências disciplinares, podendo ainda substituir completamente o modelo punitivo (HEREDIA, 2006).

Quanto ao currículo, o enfoque global o influencia ao incorporar os conceitos e as habilidades de resolução de conflitos, seja como um curso específico, seja pela incorporação em temas transversais. Ao mesmo tempo, ele influencia a pedagogia ao incentivar o uso de ferramentas colaborativas no ensino em sala de aula (HEREDIA, 2008).

É importante que haja a institucionalização de métodos de resolução pacífica de conflitos em todo o sistema escolar, influenciando a atuação de todos os atores da comunidade escolar. Isso porque, conforme Heredia (2008), os adultos também possuem pouca preparação, treinamento ou disposição para lidar de maneira cooperativa diante dos conflitos. Se não há a institucionalização, não há consequências reais, porque não há efetiva transformação das relações sociais.

Nesse contexto, é preciso compreender ainda que muitos dos conflitos que envolvem a escola originam-se fora dela. Daí a importância do envolvimento de outros membros da comunidade: corpo policial, religioso, associações comunitárias, entre outros (HEREDIA, 2008). Por isso a importância da inserção da escola na própria comunidade.

A partir desses enfoques é que a mediação de conflitos no contexto escolar expandiu-se por diversos países, integrando a mediação social. Dentro do contexto social, a mediação na escola passou a ter como objetivo principal o fortalecimento dos laços entre escola, comunidade e família, principalmente aquela em situação de vulnerabilidade, evitando a evasão escolar e promovendo a participação na escola. Isso sem esquecer a atuação em prol da melhoria das relações internas na escola como um todo (FRANCE, 2011). Para tanto, ela envolve quatro eixos.

O primeiro refere-se ao mediador dos conflitos entre usuários e o serviço público, sendo uma atuação junto às administrações escolares centrais (ministérios, departamentos, secretarias, divisões, conforme o termo aplicado). O segundo trata da relação entre a escola e a família, com a finalidade de aproximar essas duas instituições. No terceiro atua o mediador de desempenho acadêmico (médiateur de réussite scolaire), com o objetivo de acompanhar o desenvolvimento dos estudantes e permitir intervenções rápidas em caso de queda de rendimento. No quarto e último eixo atua o mediador escolar, para gerir os conflitos no ambiente escolar (FRANCE, 2011. SIX, 2001 e 2005).

Isso não significa que, na mediação social, haja a obrigatoriedade de que cada eixo seja atribuído a um mediador diferente, mas que os programas existentes devem abarcar tais eixos.

No Brasil, a primeira experiência de mediação escolar foi o programa “Escola de Mediadores”, em 2001, em escolas públicas no Rio de Janeiro, realizado em parceria pelas ONGs Viva Rio, Balcão de Direitos, Mediare e o Instituto NOOS (SALES 2007. CARTILHA DE MEDIADORES, 2002). Também aqui a experiência nasce de instituições externas à escola, vinculadas à mediação de conflitos, em especial a mediação comunitária e direcionada à atuação frente a violências ou como forma de prevenção, sendo seu objetivo:

ensinar (transmitir) algumas habilidades aos jovens para negociar os conflitos inevitáveis que ocorrerão nos diversos contextos de suas vidas de forma mais colaborativa, propiciando uma mudança de postura frente às controvérsias (CARTILHA DE MEDIADORES, 2002, p. 06).

A finalidade do programa era a formação cidadã de alunos e o incentivo ao surgimento de uma mentalidade colaborativa e não violenta na resolução de conflitos. Para tanto, ele teria trabalhado com vários atores da comunidade: professores, estudantes, família, concluindo com a formação de uma equipe de jovens mediadores para atuar no dia a dia escolar.

Após esse programa, diversas outras experiências surgiram no Brasil, entre elas o Projeto de Extensão e Ação Contínua (PEAC) “Estudar em Paz: mediação de conflitos no contexto escolar”, do Núcleo de Estudos para a Paz (NEP) da Universidade de Brasília (UnB), que será apresentado no capítulo a seguir.

PARTE II -