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PARTE I – R EFERENCIAL TEÓRICO

3.3 Transformação dos conflitos na escola

3.4.1 Educação para os direitos humanos (EDH)

Ao se falar de educação para os direitos humanos (EDH), dois conceitos aparecem: educação e direitos humanos. Sobre o primeiro, tratou-se no primeiro capítulo deste trabalho, restando, com isso, trabalhar o segundo na presente seção.

A expressão “direitos humanos” relaciona-se a um locus específico: uma construção de lutas a partir de valores ocidentais que culminaram na instituição de normas de direito internacional (GALTUNG, 1998).

O problema nessa conceituação advém de se considerar direitos humanos como universais, uma das principais características colocadas por seus defensores. Isso porque conceber direitos humanos nascidos de valores e lutas ocidentais como direitos humanos universais seria o mesmo que aceitar a história ocidental como história universal ou a cultura ocidental como cultura universal (GALTUNG, 1990). Diante da hegemonia ocidental sobre os demais povos, presente nas formas de imperialismo, inclusive o moral, tal universalidade pode legitimar a violência cultural, conforme expresso por Galtung (1990 e 1998) e Hernàndez-Truyol e Gleason (2002).

Além disso, Jelin (2007, p. 161) menciona que a Declaração Universal de Direitos Humanos traz uma noção de que os direitos humanos seriam “individualistas e ocidentais, e que o desejo de estendê-los ao mundo todo era um ato de poder imperialista, discriminatório e etnocêntrico”. Sendo assim, tal visão também poderia:

[...] justificar as violações de direitos, sob a proteção do relativismo cultural e com uma insistência na soberania nacional e na autodeterminação, tudo o que poderia levar a uma rejeição das intervenções humanitárias e do monitoramento e controles internacionais (JELIN, 2007, p. 161).

Diante disso é que os direitos humanos devem ser dissociados da normatividade advinda das declarações, dos tratados e das convenções e relacionado aos processos de luta social, tal como defendido por Herrera Flores (2009), existentes em qualquer grupo ou comunidade humana (SEGATO, 2006). Eles saem, assim, de seu aspecto exclusivamente ocidental.

Ao serem processos de luta “por algo” denotam uma realidade considerada injusta por grupos marginalizados que compreendem como dever ético ir além e mudar um costume ou uma tradição (HERRERA FLORES, 2009.; SEGATO, 2006. HERNANDEZ- TRUYOL; GLEASON, 2002). Por outro lado, manifestam um ideal a ser conquistado, uma luta por um projeto político de sociedade.

mais diversas práticas culturais, responsáveis por permitir a revelação dos recursos internos de cada grupo ou comunidade e as soluções pacíficas diante dos conflitos (HERNANDÈS- TRUYOL, GLEASON, 2002). Nesse sentido, eles são o paradigma e o próprio processo da transformação dos conflitos diante da necessidade de atendimento a necessidades humanas.

Contudo, nesse ponto, Candau (2005) e Sacavino (2009) ao discorrerem sobre o desenvolvimento da educação para os direitos humanos (EDH) na América Latina apresentam as dificuldades de sua conceituação diante dos aspectos nela envolvidos: ideologias e pedagogias, concepções de direitos humanos e ainda com relação aos sujeitos relacionados (governos, ONGs ou educadores e acadêmicos). Nesse último caso, cada um deles teria um conceito, tanto de educação, quanto de direitos ou de direitos humanos.

Até mesmo a conceituação de educação em ou para os direitos humanos parece não haver uma unanimidade, a ponto de Sacavino (2009, p. 65) referir-se à “educação em/para os direitos humanos”.

E é justamente diante desse debate que houve a opção, neste trabalho, conforme explicado na introdução, pela ideia de educação para os direitos humanos. Isso porque, considera-se que o que deve ser levado em conta é que toda a prática pedagógica e toda a estrutura escolar devem estar voltadas para a busca de uma vivência numa cultura de direitos humanos, o que exige um:

[...] compromisso ético, social e político capaz de se traduzir em práticas alternativas e transformadoras que se consolidem tanto em normas exteriores e institucionais quanto em convencimento e vivência (CARBONARI, 2007, p. 184).

Assim, todo o processo educativo deve “conscientizar acerca da realidade, identificar as causas dos problemas, procurar modificar atitudes e valores, e trabalhar para mudar situações de conflito e de violações dos direitos humanos” (BRASIL, 2013, p. 15). Ou seja, os processos escolares devem ser pautados na dignidade humana, na justiça e na tomada de decisões éticas. Devem ainda questionar crenças e tradições relacionadas a formas de opressão autoritária, como o racismo, o sexismo, a superioridade cultural, a pobreza e a injustiça social (REARDON, 2007). Petr (1992) e Vasquez (2013) vão lembrar ainda do adultocentrismo, isto é, das práticas de exclusão baseadas nas diferenças geracionais (VASQUES, 2013) ou a percepção dos problemas das crianças e adolescentes exclusivamente sobre o ponto de vista ou perspectiva do adulto (PETR, 1992).

Com relação aos conflitos, isso significa a busca da compreensão de suas causas a fim de se “esclarecer os valores de justiça e igualdade e a aplicação de princípios de justiça” (REARDON, 2007, p. 66) em oposição a simples tentativas de “resolução”.

Em relação ao adultocentrismo, não significa o rompimento da autoridade existente entre adulto e criança e adolescente ou, no contexto escolar, entre profissionais e alunos. Mas a instituição de processos decisórios, de normas ou de formas de resolução de conflito não baseadas exclusivamente na conveniência ou na ideia de supremacia dos adultos. A proposta é que sejam considerados os pontos de vista dos estudantes e as decisões tomadas busquem sempre o seu melhor interesse, num processo de promoção de autonomia e liberdade dos estudantes permeada pela autoridade democrática, no dizer de Freire (1996).

Nesses termos, uma educação pautada exclusivamente no aspecto punitivo (com ameaças, constrangimentos e retirada do amor) e autocrático (resolução vinculativa por um terceiro) mostra-se contrária a uma educação para os direitos humanos.

Aliás, Assis e Vinha (2003), em pesquisa sobre o impacto das formas escolares (autocrática ou democrática) de resolução de conflitos em duas turmas de alunos da terceira série do ensino fundamental, demonstraram que a punição só funciona quando a criança tem medo do adulto e, mesmo assim, resolvem apenas temporariamente, pois não trabalham as causas nem possuem ação direcionada ao futuro. Além disso, quando não há medo, punições são inócuas no sentido educativo e, pior, podem causar raiva provocam sensação de injustiça.

Em outros termos, a EDH tenciona formar sujeitos de direito, favorecer processos de empoderamento e educar para o “nunca mais” (CANDAU, 2005, p. 405).

Sujeito de direitos na dogmática jurídica é qualquer pessoa que possui direitos e obrigações prescritas dentro do ordenamento jurídico. Contudo, Santos (2006), a partir de uma crítica ao direito e aos direitos humanos, considera que, para ser sujeito de direitos é necessário envolver-se nos processos e lutas históricas, caso contrário se está diante de um objeto de direitos. Sujeito de direitos é, assim, aquele que se coloca no mundo, que possui consciência de seus direitos (CARBONARI, 2007. CANDAU). Para Jelin (2007) sujeito de direitos é também aquele que possui solidariedade ou a responsabilidade “retrospectiva”, isto é, um agir guiado pela consciência pessoal, pela sensação do justo e do ético.

O segundo elemento de uma EDH relaciona-se aos processos de empoderamento de grupos historicamente oprimidos “favorecendo sua organização e participação ativa na sociedade civil” (CANDAU, 2005, p. 405). Em outras palavras, diante de situações de conflito ou violência, deve-se favorecer a organização e a luta por direitos de tais grupos bem como se deve auxiliá-los na busca por espaços de discussão. No contexto escolar, conforme Reardon (2007) seu objetivo deve ser o de permitir a convivência e a existência plural, principalmente diante do conflito

Por fim, o último eixo da EDH refere-se ao educar para o “nunca mais”. A ideia presente é que violações de direitos humanos não devem ser esquecidas. Ao contrário, deve-se “resgatar a memória histórica, romper a cultura do silêncio e da impunidade” ainda presente na atualidade (CANDAU, 2005, p. 405). Sob tal perspectiva, a EDH deve direcionar- se à divulgação de fatos históricos que implicaram violações de direitos humanos, transmitindo às novas gerações valores que permitam a conscientização.

Tal eixo não se relaciona apenas aos grandes fatos históricos, mas também às violências e incivilidades no contexto escolar. Sua expressão se dá no reconhecimento da existência desses fatos, na tentativa de rompimento com a cultura do silêncio e da impunidade dentro da instituição e no estabelecimento de processos que permitam a conscientização dos envolvidos acerca da gravidade dos acontecimentos. A educação para o “nunca mais” deve ser, assim, voltada a novas formas de relacionamento e de compreensão do outro.

Desenvolver uma educação contrária à impunidade, não significa, porém, a ênfase no aspecto punitivo, sob o risco de se incidir em escalada. Nem mesmo a completa ausência de sanções. Mas a busca de conscientizações e de formas de compensação, expressas em campanhas de prevenção e em ações pautadas na busca do diálogo.

Nesse sentido, a EDH implica a criação de processos e de procedimentos, de

locus de atuação que permitam o acolhimento, o respeito e a dignidade do outro, bem como a

intransigência com processos, posturas ou construções que, mesmo sob o argumento de “culturais”, favoreçam a naturalização da violência (REARDON, 2007).

Entre tais processos, procedimentos ou locus de atuação, pode se encontrar a mediação de conflitos. Ela deve permitir, assim, a formação de sujeitos de direito, buscar o fortalecimento dos grupos oprimidos e permitir a conscientização para o “nunca mais” a partir de um processo que seja condizendo com seu fim, ou seja, no qual o processo seja ele mesmo baseado na dignidade humana.

Essas questões serão melhores compreendias a partir do próximo capítulo, que tratará sobre a mediação de conflitos.

4 MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

A palavra mediar vem do latim, mediare, que significa mear, ficar no meio de, estar no meio, dividir ao meio. Ou seja, qualquer relação de intermediação traduz-se em mediação. Daí poder-se compreender que um corretor de imóveis é um mediador entre comprador e vendedor, o professor é o mediador entre o estudante e a aprendizagem, o padre é um mediador entre Deus e seus crentes. Para Muszkat (2005, p. 12), qualquer “mãe de família ou profissional que trabalhe com pessoas – como um professor ou advogado – dirá, com segurança, que medeia desde sempre”.

Não são essas as concepções adotadas no presente trabalho. A mediação, aqui, tem sua relação direta com o conflito e com uma práxis específica e estruturada, sendo um processo no qual um terceiro colabora com as partes diante de uma situação conflituosa. Por isso os termos mediação e mediação de conflitos são aqui indistintamente aplicados, ou seja, significam a mesma coisa.

Muszkat define mediação como episteme (saber resultante de outros saberes que fornece instrumental para uma prática) na qual um o mediador busca:

[...] acordos entre pessoas em litígio por meio da transformação da dinâmica adversarial, comum, no tratamento de conflitos, para uma dinâmica cooperativa, improvável nesse contexto (MUSZKAT, 2005, p. 13, grifo no original).

Sales (2003 e 2007) a conceitua como um procedimento pacífico por meio do qual um terceiro de fora do conflito age para encorajar e facilitar a resolução de um conflito. Já para Bush e Folger (2005, p. 135) é um “processo informal no qual um terceiro neutro sem poder de impor uma resolução ajuda partes em disputa a tentar alcançar uma solução mutualmente aceitável”1. Warat (2004, p. 75), por fim, compreende-a como “procedimento indisciplinado de auto-ecocomposição assistida (ou terceirizada) dos vínculos conflitivos com o outro em suas diversas modalidades”.

Diante desses conceitos, é possível considerar a mediação um processo, que pode ser mais ou menos estruturado, mas sempre voluntário, no qual um mediador, um terceiro sem poder de decisão e sem interesse direto na causa em questão, auxilia partes em conflito a decidirem elas próprias sobre uma solução mutualmente satisfatória.

Nesse sentido, a mediação não é algo novo, mas uma prática social tradicional que se tornou uma praxis e um saber profissional. Para compreender isso, é necessário observar alguns aspectos históricos.