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PARTE III – A NÁLISE DOS D ADOS E C ONCLUSÃO

6.1 A primeira impressão

A escola está situada numa área residencial de casas, em sua maioria, térreas, de um pavimento, com telhados cinza, sem muitas árvores, circundada por um muro alto, com pichações, seguido por arames farpados. À primeira vista, parecia escura, com concreto de mais, árvores de menos, gramas por aparar. O local onde os profissionais estacionavam seus carros tinha um aspecto de ter sido improvisado: havia poças de lama, em consequência das chuvas então recentes e tufos de grama espalhados com resto de cascalho. Visualmente, assemelhava-se a muitas outras escolas, tanto públicas quanto privadas, que se veem pelo Distrito Federal. Nada despertava estranhamento.

Do lado de dentro ela não parecia tão escura. Havia um grande pátio aberto, circundado pela construção escolar. Pelo lado que eu entrei, pelo estacionamento dos professores, à esquerda havia uma construção, um bloco único, destinada à sala para os funcionários terceirizados, o Serviço de Orientação Educacional, a cantina e o refeitório. À frente uma quadra de esportes coberta, ao lado de uma construção direcionada à sala de atividades e de reforço, bem como às atividades da educação integral. À direita estavam as salas administrativas, tais como sala dos professores, a sala de atendimento psicológico, a copa, a direção, a coordenação e a secretaria.

O prédio principal de salas de aulas, de dois pavimentos, ficava perpendicular às salas administrativas e de frente à construção destinada à cantina e ao refeitório. No pátio aberto, de cimento, havia algumas árvores e bancos, nos quais parte das entrevistas ocorreu, e um canteiro meio abandonado quando cheguei, mas que, ao final do ano, havia sido transformado num espaço bem cuidado pela turma de Jardinagem.

Nesse ponto, é preciso lembrar, conforme expresso no capítulo cinco, que parte dos alunos integra a educação integral, possuindo atividades extras, entre as quais jardinagem. A turma fez ao longo do ano dois canteiros, um que não cheguei a conhecer, e outro que fica em frente às salas administrativas. Mais uma vez, parecia uma escola como tantas outras.

Ainda assim, eu estava ansiosa. Não sabia o que poderia encontrar. Conhecia a escola e a região pelos documentos oficiais e havia lido sobre violência no contexto escolar. Por ser a primeira visita, perdi-me pelo caminho e cheguei já no intervalo das aulas. Os estudantes espalhavam-se pelo pátio, alguns sentados no chão, outros andando ou correndo de um lado para o outro. Alguns pareciam ensaiar uma dança. Era grande a escola, eram muitos os estudantes e era alto o barulho. No entanto, fui me adaptando: havia cada vez menos estranhamento.

Já dentro da escola, do meu lado esquerdo, dois meninos “brincavam de brigar” sob o olhar da responsável pela portaria. Eu logo pensei: “ai, ai, isso não vai acabar bem...”. Na porta da diretoria, outros três brincavam de “se puxarem”: um ficava dentro da sala e puxava um segundo aluno para entrar nessa sala. O terceiro, do lado de fora, empurrava. O aluno, então, acabava entrando, para logo em seguida sair correndo. Mas aí tudo recomeçava.

Fiquei olhando para eles, observando a cena, em frente da porta. Acho que vi o movimento de ida e vinda umas três vezes, até que perguntaram se eu queria entrar. Disse que sim e eles me deram passagem, indo para outro lugar. Entrei, apresentei-me à pessoa presente e fui convidada a aguardar: a pessoa com quem eu deveria conversar não estava no momento.

Enquanto eu aguardava, Sheila, profissional da escola, entrou e se sentou numa mesa. Do lado de fora, passou outra mulher, Michele, também profissional. Sheila, então, levantou-se rapidamente da mesa e saiu correndo da sala, puxando Michele pela roupa e gritando, com o dedo em riste: “Vou reprovar você! Vou dar uma suspensão de três dias!”. Levei um grande susto com os gritos que, então, só aumentou: Sheila começou a tirar o casaco da outra, em fúria. Michele respondia também gritando: “Você é que vai ser repreendida!”. E continuaram, uma gritando com a outra, e também rindo, numa cena que, para mim, visitante de primeira viagem, era confusa e assustadora.

Tudo isso continuou até que Sheila conseguiu tirar o casaco de Michele e dirigiu-se, fazendo cara de brava, à Fernanda, outra profissional, recém ingressa na sala: “Olha que absurdo, Fernanda! Ela sabia que eu vinha com esta roupa hoje e veio com uma igual de propósito!”. Sim, elas estavam com roupas e estilo de sapatos iguais.

Já naquele momento todas apenas riam, sem gritos, e acho que sorri também, dando um suspiro de alívio. Minhas sobrancelhas, até então arqueadas, levantadas, devem ter voltado ao normal, assim como minha respiração, suspensa diante do susto. Tudo não passara de um momento de socialização num dia de trabalho. Uma pausa na rotina escolar. Em breve, tudo ficou calmo e eu então pude me apresentar. Começava assim a meu trabalho de campo.

O motivo desse relato inicial, além de descrever a escola, é mostrar meu estranhamento. Eu já fui estudante e também professora (se bem que apenas em faculdades) e tenho um padrão de relacionamento social. Havia lido e estudado sobre violência no contexto escolar e, naquele momento, o estranhamento estava colocado porque, para mim, aquilo era violência. E é nesse ponto que é preciso considerar: não o era na percepção das pessoas envolvidas. Ao contrário, era uma brincadeira entre amigas, aceita e compartilhada por todas, que foi inicialmente incompreendida por uma estranha, que não conhecia a dinâmica social do lugar e (ou) as pessoas. É aqui que pode se manifestar o ruído na comunicação.

Esse ruído não ocorreu apenas na relação entre mim e a escola ou o projeto. Ele acontece também entre os alunos, os professores e ainda entre os participantes do “Projeto Estudar em Paz”. O que é brincadeira para um, é desrespeito para o outro. O que é diálogo para alguém é apenas um sermão para outros. Democracia para alguns pode ser baderna e confusão. Os estranhamentos também são possíveis dentro do próprio grupo. E brincadeira e violência, conflito e diálogo, conversa e discussão vão se intercalando nas mais diversas percepções apenas com uma coisa em comum: o negativo, o violento, o feio nunca é o Eu, mas sempre o Outro.

Daí a sutileza e a necessária delicadeza nesse trabalho de tentar não apresentar, simplesmente, o outro como violento. Não estigmatizar. E sim, buscar entender como uma escola que está inserida num contexto de violências reconhece-se como boa para se estar e trabalhar. Como os seus conflitos, vistos como negativos, podem então ser compreendidos como positivos e como, dentro desse contexto, insere-se o “Projeto Estudar em Paz”.