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2. O percurso pessoal e profissional

2.1. A escolaridade básica e secundária

Tiago não frequentou o jardim de infância, na altura a educação pré-escolar era praticamente inexistente, e começou o seu percurso escolar quando “ia fazer sete anos”. Fez a instrução primária, actual primeiro ciclo do ensino básico, sempre na mesma

escola situada numa zona rural próxima da cidade e foi acompanhado, durante os quatro anos, pela mesma professora que era efectiva nessa escola.

Da escola primária, Tiago guarda boas e más recordações. Como era tido como um bom aluno, por vezes, até ajudava a professora no seu trabalho da aula, acompanhando os alunos mais novos, mas também recorda alguns castigos físicos e ‘reguadas’, bastante habituais nesse tempo, muitos deles sem qualquer critério por parte da professora:

“há sempre boas recordações porque eu era bom aluno e isso permitia- me ter alguns privilégios perante o resto da classe… chegámos a ser quarenta e cinco alunos. Por outro lado, também me atribuía uma alta responsabilidade porque tinha que, muitas vezes, ajudar a professora nas tarefas, de ajudar outras classes, outros anos de escolaridade mais baixos. Em termos de más recordações, talvez a violência… a violência física… os castigos físicos, as reguadas, que eram exercidos pela professora… muitas vezes, injustos, se calhar, frustrações de casa que eram transmitidas na escola” (EntT.102).

Ainda recorda um episódio passado no final do primeiro ano em que ficou muito ofendido com a professora quando recebeu umas reguadas, “das poucas reguadas que a professora me deu” (EntT.105), por não saber quanto era 3x3. Mesmo assim, gostava e respeitava a professora embora também tivesse influência nessa sua atitude o facto de as respectivas famílias se relacionarem e de alguns dos seus familiares efectuarem “trabalhos sazonais” para a família da professora.

Relaciona-se ainda com alguns colegas desse tempo e recorda as longas caminhadas de “dois quilómetros” que fazia em grupo com outras crianças para poder frequentar a escola e que serviram para fortalecer os laços de amizade entre si.

Tiago fez este início de escolaridade sem sobressaltos, sempre com aprovação, considerando-se um aluno aplicado. Para a criação de bons hábitos de estudo, também muito contribuiu o acompanhamento adequado e permanente que tinha por parte das suas duas irmãs mais velhas. Estudava bastante e aprendia bem, mas essa aprendizagem, vendo-a à distância, era muito relativa e o ensino seguido pela professora era muito orientado para “decorar” e muito pouco para compreender aquilo que se decorava:

“aprendia porque estudava e tinha o acompanhamento das minhas irmãs mais velhas que andavam a estudar também. Só que, muitas vezes, aprendia sem saber aquilo que aprendia. Só já no ciclo preparatório é que me apercebi dessa estupidez (…) e me dei conta que, por exemplo, 8x4 era igual a 4x8.” (EntT.106).

Nessa altura, Tiago entendia a Matemática, a que chamava a “Matemática quadrada”, como uma disciplina em que era tudo para decorar, “quer dizer, era aquilo e era aquilo mesmo” (EntT.105) e o seu ensino “era um ensino de tabuada ensinada a marchar, marchávamos à volta da escola a cantar a tabuada” (EntT.106).

Quando acabou os quatro primeiros anos de escolaridade, Tiago rumou à cidade para frequentar o ciclo preparatório, actual segundo ciclo do ensino básico. Começou por sentir algumas diferenças entre o ‘ensino’ a que estava habituado no meio rural e o ‘ensino’ que estava começando a experimentar. Muitos dos seus colegas tinham feito a escola primária nas escolas da cidade que, já na altura, trabalhavam em parceria com a escola de formação de professores recebendo os futuros professores para a realização dos seus estágios, e, por isso, estavam habituados a outros ambientes de trabalho. Apesar disso, acabou por não sentir dificuldades especiais e continuou a ser um dos melhores alunos da sua turma. Mantém ainda relações de amizade com alguns colegas desse tempo.

Os castigos físicos, pelo menos com alguns professores, continuavam e, apesar de habitualmente não ser uma vítima deles, Tiago reconhecia que muitos desses castigos eram perfeitamente injustificados e não eram aplicados “com peso, conta e medida” (EntT.109).

Gostou muito e compreendeu bem a professora de Matemática destes dois anos, “se calhar a melhor professora de Matemática em toda a minha vida” (EntT.107), apesar de também o fazer decorar os assuntos, tarefa que detestava e detesta fazer. Mas reconhece que isso lhe deu “uma ajuda preciosa”, já que a metodologia mais aberta utilizada pela professora, que também tinha sido professora primária, lhe permitia obter boas classificações e compreender melhor alguns conceitos que já tinha estudado:

“sempre ajudava a tirar boas notas. Ajudava-me a tirar boas notas e ajudava-me a… lá está, talvez a compreender alguns conceitos matemáticos que tinha memorizado. Quer dizer, as coisas estavam a funcionar ao contrário. Em vez de compreender primeiro para memorizar

depois, eu tinha memorizado e só depois é que compreendia. É evidente, que nessa altura eu trazia determinados conceitos memorizados e não compreendidos” (EntT.108).

Começa então a aperceber-se que, na Matemática, mais importante que memorizar os assuntos é, de facto, compreendê-los. Recorda que nesse tempo se estava a iniciar o tratamento da Matemática Moderna no contexto escolar, com uma ênfase muito grande no estudo da teoria de conjuntos, e que “era uma fase nova para todos” (EntT.108), inclusivamente para os professores, pois também eles próprios estavam num processo de aprendizagem. Mesmo assim, não teve problemas especiais para apreender esses conhecimentos dado que “tinha sido sempre muito bom a Matemática”.

A opção pela Escola Comercial e Industrial, “os pobres iam para a Escola Industrial e os menos pobres iam para o Liceu”, (EntT.110) e a frequência do Curso Geral de Administração e Comércio, uma possível correspondência ao actual terceiro ciclo do ensino básico, “não foi bem uma opção, foi talvez mais uma decisão da família… pelo menos, levaram-me a pensar que talvez fosse a melhor solução”. Esta opção teve que ver, em boa medida, com a sua proveniência familiar “porque as propinas eram mais baixas” do que no Liceu e também porque as suas irmãs já frequentavam essa escola. A aprovação nesse curso abria igualmente boas perspectivas de um futuro emprego num banco ou num escritório e evitava, assim, as ocupações mais orientadas para o trabalho manual:

“na altura achei que era, e diziam-me, que era o curso que tinha mais saída… já que no Curso Geral de Electromecânica não se passava de um mecânico, que no Curso de Electricidade não se passava de um electricista. No Curso Geral de Administração e Comércio pensava-se na expectativa de trabalhar num banco ou num escritório, quer dizer, os meus pais achavam que seria um trabalho mais limpo” (EntT.110).

Quando chegou à nova escola verificou que a turma a que ia pertencer era formada por alunos repetentes e com muitos problemas de comportamento e de integração, sendo pois “uma turma que estava estigmatizada, era posta um pouco à margem” (EntT.111). Embora o contexto não fosse muito animador, a verdade é que foi muito bem aceite na turma e acabou por se relacionar bem com todos os colegas apesar de serem mais velhos e de terem um historial de repetências, de pouco trabalho, “o problema também era futebol a mais”, e de graves problemas de comportamento.

Gostou da escola, das instalações, mas não gostava da maneira como era dirigida com toda “aquela diferenciação entre rapazes e raparigas, rapazes para um lado e raparigas para outro… aquela rigidez que aconteceu até Abril de 1974” (EntT.112). Também não era do seu agrado um certo clima de “policiamento” mantido pelos contínuos com as consequentes idas ao director da escola que resultavam em multas, castigos e chamadas dos encarregados de educação à escola.

Mesmo assim, Tiago frequentou o curso com interesse e com gosto. Ainda tem presente a “simpatia, uma forma muito meiga de lidar com os alunos, mesmo com alunos difíceis… dar a volta, dar a volta a esses alunos difíceis, de alguns professores que eu tive, nomeadamente, o meu professor de Contabilidade” (EntT.113). No entanto, outros professores, onde inclui os seus professores de Matemática, “infelizmente, lamento ter de dizer isto”, também o marcaram pela negativa devido à sua fraca capacidade pedagógica e à falta de conhecimentos científicos para preparar os alunos para a vida activa.

No curso, a Matemática que estudou era, como seria de esperar, bastante orientada para a Contabilidade. Como era diferente e “divergia muito” da Matemática estudada no Liceu, aliado ao facto dos seus professores terem pouca competência profissional, considerou, posteriormente, ter seguido o caminho errado quando transitou para o Liceu ao escolher a disciplina de Matemática no Curso Complementar, actual ensino secundário:

“só que eu não tive professores interessantes [e] acho que não me prepararam e depois segui o caminho errado de ter ido para o Liceu. (…) porque eu sempre gostei muito da Matemática, embora, infelizmente, nos três anos do Curso Geral de Administração e Comércio, não tivesse tido professores à altura na Matemática e isto não era porque ‘eras tu que eras mau aluno’, não era o melhor mas era um bom aluno” (EntT.114, 119).

Entretanto, em 1974, no final do terceiro ano do curso, acontece o 25 de Abril, que se revelou uma data fundamental e decisiva para Tiago que a considera “um marco, tinha quinze anos, esse ano foi um marco extremamente importante na minha vida porque se tinha dado o 25 de Abril” (EntT.115). Este acontecimento político e social, tal como produziu profundas alterações em todos os domínios da vida portuguesa,

também constituiu um ponto de viragem na vida de Tiago e originou uma mudança de orientação nos seus objectivos educacionais e profissionais:

“eu acho que a minha escolaridade foi um pouco aos sobressaltos. Quer dizer, eu acho que eu não tinha objectivo, eu não tinha um objectivo, embora, por exemplo, o meu pai tivesse um objectivo, ele tinha como objectivo que eu entrasse num banco. Ele achava que era um emprego decente. E inclusivamente, se não se tem dado o 25 de Abril, eu tinha entrado para um banco… entrava, porque já tinha um emprego garantido, se acabasse o quinto ano. Portanto, em 1974, se não se tem dado o 25 de Abril, eu tinha entrado para o banco como marçano até aos dezassete anos… eu tinha quinze… e depois a partir dos dezassete anos entrava para o quadro. (…) O meu objectivo de vida, quer dizer, o meu objectivo em princípio era ser contabilista” (EntT.119).

Concluído, com sucesso, o Curso Geral de Administração e Comércio, decide então transferir-se para o liceu da cidade para frequentar o Curso Complementar de Economia dando assim continuidade à sua área de estudos anterior.

Tiago viveu intensamente esses momentos pós-25 de Abril, momentos de recuperação da liberdade e dos direitos cívicos. Também na instituição escolar se reflectia este tempo de mudança em que, por exemplo, a experimentação pedagógica estava na ordem do dia:

“esse ano de 1974/75 foi o melhor ano em termos pedagógicos [que tive enquanto aluno]. Os professores não tinham preparação para trabalharmos dessa forma. Não tinham preparação pedagógica, aquilo era quase, quase improviso. Só que o termo ‘liberdade’ era apregoado a toda a hora. E muitas vezes eram os próprios professores que tinham vontade de fazer esse tipo de trabalho, porque era aquilo que eles pensavam e gostavam de ter feito quando tiraram o [seu] curso” (EntT.116).

Claro que também recorda alguns percalços devido à agitação social e política, pois “nesses tempos, balançou-se bastante, principalmente no sexto ano, actual décimo ano, que foi um ano complicado, porque havia os saneamentos… estivemos um mês sem aulas” (EntT.115). Igualmente foi uma época de grandes reformulações legislativas que “na qualidade de estudantes, penso que essas alterações legislativas não nos diziam muito [mas] nós ouvíamos os próprios professores a queixarem-se de uma certa ‘anarquia’… umas vezes, era o vazio legislativo, outras vezes eram umas leis que se sobrepunham a outras” (EntT.116). No entanto, apesar deste contexto muito especial,

Tiago refere que a sucessão desses acontecimentos não interferiu negativamente no desenrolar da sua escolaridade.

Ainda se inscreveu em Matemática, que era um das disciplinas constante do plano de estudos do Curso Complementar de Economia, sabendo que “na Matemática, eu não vinha bem preparado, não vinha preparado para estar e para integrar o sexto ano do Liceu e, por isso, tive muita, muita, muita dificuldade a nível da Matemática” (EntT.116). Embora tivesse tido aprovação no sexto ano, já não a conseguiu ter no sétimo ano, pois “começaram as derivadas e coisas assim… e não consegui. Fui três vezes a exame e não consegui fazer” (EntT.117). Reconhecendo a extrema dificuldade para obter um resultado positivo, decidiu substituir a Matemática por uma outra disciplina e acabou por concluir o Curso Complementar quando já se encontrava a frequentar a Escola do Magistério Primário.