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2. O percurso pessoal e profissional

2.3. O início da profissão

Por isso, o início da carreira docente, no final da década de setenta, foi bastante complicado a diversos níveis. Primeiro porque Tiago começou a trabalhar numa escola de uma vila da Região Autónoma dos Açores a que correspondia uma realidade completamente diferente daquela a que estava habituado desde sempre e que “comparando com Bragança, é outro mundo, quer dizer, é outro mundo, mas muito mais atrasado. Podia ser um outro mundo mais evoluído, mas naquele caso era muito mais atrasado” (EntT.132). Depois porque também não estava habituado ao padrão social fomentado pelas professoras da escola que eram vistas como “a classe de elite na vila e tinham de ter um comportamento social, familiar e profissional exemplar”,

assumindo quase a forma de um “sacerdócio”, e cuja postura lhe levantou problemas de relacionamento com as colegas:

“eu comparava aquilo ao sacerdócio, a um [estatuto de] padre. Eu não estava, nem de longe nem de perto, habituado a esse tipo de relacionamento, e foi um choque, foi um choque com os colegas, que originou um mau relacionamento. Foi um choque com os colegas por questões metodológicas e por questões de relacionamento, da forma como me relacionava com os miúdos. Eu fui chamado à atenção porque no intervalo ia jogar a bola com os miúdos para o recreio, porque as minhas colegas achavam que eu estava a rebaixar a profissão e a minha posição como professor. Isso chocava-me muito” (EntT.132).

Igualmente, a turma do primeiro ano de escolaridade que lhe foi destinada também era um grupo de alunos muito complicados e com graves problemas de absentismo. Eram alunos já com alguma idade, variando entre os nove e os catorze anos, pouco interessados em estudar e em aprender e, consequentemente, constituíam uma classe indisciplinada que provocava muitos desacatos na escola e na própria vila. Mesmo os pais e as autoridades policiais não os acompanhavam adequadamente e não lhe davam o apoio desejado e necessário, o que o levou, a partir de uma dada altura, a deixar de “fazer queixinhas” e a tentar resolver ele próprio as situações que iam surgindo. Curiosamente, constatou que essa sua atitude de maior firmeza foi o ponto de viragem determinante na melhoria da relação com os alunos e no exercício da sua autoridade como professor:

“os miúdos compreenderam [isso] e então aí respeitavam-me. Eu exercia um poder como poder afectivo, que era um poder mais eficaz do que o poder da autoridade policial. (…) Eu consegui, pelo menos, que esses alunos me respeitassem, não só pelo facto de ser professor, mas também como um amigo. (…) E os miúdos compreenderam que o meu papel de professor era um bocadinho diferente. É um dos aspectos positivos que eu guardo desse ano” (EntT.133).

Tiago entende que “se não houver afecto, não se consegue disciplina” (EntT.136) e foi, principalmente através de um relacionamento mais próximo e do convívio que fazia com os alunos, que a ordem e a disciplina na sala de aula foram conseguidas. Como consequência, o ambiente de trabalho melhorou e o abstencionismo praticamente acabou, “acabei por cativar os alunos a irem à escola”.

Por tudo isso, Tiago recorda que “esse ano foi muito difícil a nível profissional, mas compensador pelos resultados, não tanto pelo aproveitamento escolar dos alunos, mas por aquilo que eu consegui fazer com eles” (EntT.133).

Tiago tentou aplicar os conhecimentos que havia aprendido na escola de formação, mas depressa notou que tinha necessidade de os adequar à realidade em que trabalhava. Nomeadamente, começou a reconhecer a importância de atender à cultura e ao ambiente diário dos alunos. A este propósito, gosta de relatar um episódio que lhe permitiu constatar, desde logo, que o professor tem de saber adaptar-se à cultura dos seus alunos, “temos de ser nós a entrar na cultura deles”, para conseguir melhores resultados:

“eu estava a trabalhar com uma realidade completamente diferente. Tenho uma pequena história [em Língua Portuguesa] que costumo contar, já a contei muitas vezes. Uma vez, isto logo nos primeiros dias, ia dar a letra P. Eu desenho um pato, escrevo a palavra ‘pato’, separada pelas duas sílabas, faço aquele placard normal e conto-lhes a história do pato… preparação psico-pedagógica logo no início da aula. Contei a história e aquela rapaziada toda a olhar para mim. ‘Então gostaram da história?’, ‘gostámos’. Toda a gente gostou da história. Eram capazes de recontar a história. Depois eu mostrei-lhes o desenho do pato e eles riram-se, riram-se muito, ‘mas não está assim tão mal feito…’. Mas os alunos continuavam a rir-se muito e então de que era?. ‘Oh, senhor professor, isso não é um pato, isso é um marrequinho!’. Era um marrequinho, para eles era um marrequinho. É por isso que eu digo muitas vezes que temos que compreender a realidade dos nossos alunos” (EntT.135).

Na actividade lectiva, a sua primeira preocupação foi preparar diariamente o plano de aula e desenvolvê-lo como o fazia no estágio. Mas depressa Tiago foi abandonando essa estratégia dos planos escritos diários, pois verificou que os seus dezasseis alunos se encontravam em níveis de desenvolvimento bastante diferentes nas diversas áreas curriculares. Constatou que teria de recorrer a um ensino mais individualizado e proceder a uma avaliação diária, mesmo não a registando por escrito, da progressão da aprendizagem de cada um dos alunos, começando a estar mais atento às suas dificuldades:

“[os alunos tinham algumas dificuldades] no Estudo do Meio ou até mesmo a Matemática, mas as maiores dificuldades que eles revelavam era em Língua Portuguesa. A nível da Matemática eles até tinham um

bom desenvolvimento de cálculo mental, porque já negociavam peixe, bananas, eles já negociavam coisas que a terra lhes dava. Portanto, eles já tinham um determinado grau e alguma maturidade para fazer um raciocínio e [utilizar o] cálculo mental. E isso contribuía para que na aula de Matemática, desde que bem estruturada e bem pensada, os alunos conseguiam apreender todas as competências que se lhes propunham. A nível da Língua Portuguesa é que foi a maior dificuldade” (EntT.134).

De uma maneira geral, na Matemática, os alunos não apresentavam grandes dificuldades ou atitudes de rejeição, revelando até um cálculo mental bastante bem desenvolvido. Esta situação acontecia apesar de não recorrer muito a materiais didácticos, como as barras Cuisenaire ou outro “material concretizável”, dado que a escola estava muito mal equipada nesse aspecto, ou de, por vezes, ele próprio lhes apresentar tarefas pouco adequadas, como pedir para efectuar uma multiplicação com quatro algarismos no multiplicando e dois algarismos no multiplicador sem eles terem noção disso, como hoje reconhece Tiago, mas “isso é uma coisa que eu também fui aprendendo ao longo da vida” (EntT.138). Outras coisas que também foi aprendendo desde esses contactos iniciais com a realidade escolar prendem-se com a (re)interpretação pessoal das teorias educativas e com a “compreensão” da criança:

“[aprendi] muita coisa… principalmente, o compreender a criança. Porque uma coisa é a gente estudar as teorias de Piaget, e outra é chegarmos à conclusão que Piaget dizia que as crianças eram capazes de fazer isto e afinal não são capazes. Depois entramos num dilema… então a falha é nossa ou é de Piaget, ou então sou eu que não estou a perceber… isto é mesmo assim. A Psicologia, como a Filosofia, também não é quadrada. Não pode ser encaixilhada, quer dizer, tem de ser aberta. E então fui compreendendo melhor a criança, muito melhor” (EntT.139).