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2. O percurso pessoal e profissional

2.2. A escolha da profissão e formação inicial

No final dos dois anos do Curso Complementar, apenas não consegue aprovação a Matemática. Para não ficar apenas com o estudo de uma disciplina durante todo o ano lectivo, decide candidatar-se às duas opções de prosseguimento de estudos oferecidas na cidade na década de setenta, o Curso do Magistério Primário e o Curso de Enfermagem, tendo sido seleccionado para a frequência de ambos os cursos. Opta então pelo Curso do Magistério Primário porque “na altura, já tinha consciência que, de certa maneira, ao entrar no Magistério estava a escolher a minha profissão” (EntT.120), a profissão docente.

Determinante nesta sua escolha foi, igualmente, o facto de já ter uma irmã professora e também a quase garantia de uma fácil colocação numa escola que, na altura, se verificava nos concursos dos professores do ensino primário. Esta situação abria, desde logo, uma boa possibilidade para uma desejada autonomia pessoal após a conclusão do curso:

“quando eu entrei [no curso], tinha um emprego garantido. [Isso] também foi um factor bastante determinante, pois era extremamente importante que eu tivesse um curso e que pudesse logo ter uma certa autonomia, todos nós gostamos de ter uma certa autonomia…

autonomia, para além da autonomia familiar ou social, ter uma autonomia económica. Achei que, naquela altura, era uma boa possibilidade” (EntT.121).

Embora ao longo da sua vida profissional já tenha passado por diversas fases, umas mais optimistas do que outras, Tiago acha que acabou por fazer uma boa escolha, pois a actividade docente tem realmente aspectos muito interessantes enquanto profissão e o estatuto remuneratório dos professores, apesar de “não estar muito bem”, é bastante favorável relativamente a outras profissões do sector público.

Tiago começou a frequentar o Curso do Magistério Primário aos dezassete anos, do qual guarda, genericamente, boas recordações. Para isso contribuiu, desde logo, o facto de ter iniciado o curso já com uma idade de um certo amadurecimento pessoal, que lhe permitia ter outra autonomia familiar, e também existir um ambiente escolar muito favorável, pois os restantes colegas tinham igualmente objectivos muito claros sobre o que pretendiam fazer e, salvo poucas excepções, todos eles acabaram por concluir o curso e seguir a profissão docente.

Para “os bons [três] anos que eu passei a todos os níveis” (EntT.123) na escola de formação muito contribuiu o sucesso que ia obtendo nas disciplinas do curso, contribuindo para a sua autoconfiança, e o bom relacionamento que estabeleceu com os colegas, mesmo quando se discutiam aspectos referentes à avaliação:

“havia um bom relacionamento. Tenho as melhores recordações desses três anos que passei lá. Inclusivamente, no último ano, com aquelas guerras de notas e essas coisas, eu nunca me envolvi… hoje sinto um pouco isso, mas nunca fui [de me envolver], não tinha essa preocupação. Acho que tinham estipulado previamente que a média final era de treze e meio, e sabia-se que para haver um quinze tinha de haver um doze. Mas foi algo que nunca me preocupou, nunca tive muita consciência disso” (EntT.124).

Também considera que as disciplinas que eram oferecidas no plano de estudos e a maneira como foram abordadas lhe deram uma boa preparação para enfrentar os desafios da vida profissional. Refere que a circunstância de quase todos os seus professores já terem sido eles próprios professores primários muito contribuiu para que isso acontecesse e pode ajudar a explicar, na sua perspectiva, a boa formação dada e a boa relação que mantinham com os alunos:

“os professores do primeiro ciclo, isto não é só dito por mim mas também por muitos outros colegas em conversas, têm depois uma outra relação com os alunos, sem entrar naquela de tratar os alunos, mesmo adolescentes, como crianças, sem ter que descer a isso, e conseguem ter um bom relacionamento e dar uma boa formação aos seus alunos” (EntT.126).

Tiago considera que os docentes, na sua maioria, eram “professores muito interessantes” (EntT.126). No entanto, de entre todos eles, destaca duas professoras: uma professora de Matemática, porque realmente o ajudou “bastante na área da Matemática e a gostar de Matemática” (EntT.125), e uma professora ligada à área de Metodologias de ensino, a quem reconhecia “uma grande bagagem” em termos pedagógicos e metodológicos e uma grande capacidade de se adaptar às situações, mesmo aos novos tempos políticos, característica que muitos outros professores não conseguiam ter.

Tiago entende que a realização do estágio pedagógico constituiu uma etapa muito importante no seu curso de formação inicial, estando assim de acordo com indicações (Ponte e Oliveira, 2002) que apontam para a importância deste primeiro contacto com a realidade educativa pela sua forte possibilidade formativa e de socialização. Este estágio foi desenvolvido durante o terceiro e último ano do curso numa época de grande experimentação pedagógica influenciada pelas ideias de Freinet, Freire e Montessori, entre outros. No entanto, Tiago considerava muitas dessas ideias um pouco afastadas da realidade do país e do ambiente dos alunos com quem trabalhou e, ainda por cima, em certos aspectos, as práticas habituais das suas professoras cooperantes colidiam declaradamente com esse ideário:

“mas era uma forma de fazer e de utilizar novas experiências. Embora as minhas professoras cooperantes de estágio fossem boas profissionais, eram pessoas um pouco à moda antiga… por exemplo, traziam assobios no bolso para mandar calar os meninos, era uma forma pouco ortodoxa para manter o silêncio” (EntT.127).

Mas, de qualquer maneira, acha que esse trabalho foi bastante proveitoso, havendo “um contributo, principalmente nesta fase, um contributo entre os alunos que estavam a fazer o estágio e os professores cooperantes” (EntT.127) e permitindo aplicar no estágio o que se tinha andado a aprender “nas aulas, nas aulas regulares, principalmente nas aulas de Metodologia”. Havia uma boa interajuda com os restantes

quatro colegas do grupo de estágio na preparação das aulas e na elaboração das planificações, que eram feitas conjuntamente. Também a relação desenvolvida com o orientador foi boa havendo, por parte deste, algum acompanhamento do trabalho que se ia realizando, nomeadamente, “antes de irmos dar aulas, a planificação era sempre vista pelo orientador”.

Esta planificação da actividade lectiva foi, de facto, a maior dificuldade sentida durante a realização do estágio. Pelo contrário, não sentiu e não teve quaisquer dificuldades no relacionamento com os alunos. Tiago considera este aspecto relacional de extrema importância e recorda que, por exemplo, a existência de problemas na relação com os alunos levou alguns dos seus colegas a “desistir do curso porque não se conseguiam relacionar bem na classe, não conseguiam ter mão na turma e houve alguns, não foram muitos, que chegaram à conclusão que não tinham vocação para isso e desistiram” (EntT.128). A este propósito, e comentando as razões que podem conduzir à desistência de um curso de formação de professores, Tiago está convencido que os formadores, na altura, eram “um pouco mais rigorosos nesse aspecto [e] éramos muito mais supervisionados do que são hoje os futuros professores” já que “talvez houvesse outras possibilidades de saída [profissional] que hoje em dia não há” (EntT.128), o que permitia uma maior mobilidade entre os diversos cursos existentes.

Tiago refere que, por vezes, houve falta de ligação entre algumas disciplinas que se estudaram nos dois primeiros anos e as actividades desenvolvidas no estágio, parecendo que se tratava de duas etapas isoladas e independentes. Entende que, para si, foi na área da Matemática onde se conseguiu uma melhor articulação. Apesar das limitações que considerava ter a nível da Matemática, era a disciplina onde a sua prática lectiva funcionava melhor, pois, nas disciplinas relacionadas com a área da Matemática, já tinha tido oportunidade de discutir alguns desses assuntos:

“eram as aulas que me saíam melhor, porque tinha aprendido outras formas de, por exemplo, dar as operações, começar a dar o algoritmo da divisão, o algoritmo da multiplicação. Eu, antes de entrar para a Escola do Magistério, só sabia uma forma de o fazer e ia fazendo, ou seja, fazia o algoritmo da divisão, numa situação normal, como se faz hoje uma divisão. Só que não percebia muito bem aquilo que se fazia. E foram as aulas de Matemática que tive no Magistério que me ajudaram a perceber e depois a ensinar com muito mais facilidade os alunos a aprenderem a dividir. Inclusivamente a utilização das propriedades, tanto da adição

como da subtracção como da multiplicação, que eram assuntos sobre os quais eu nunca tinha feito uma reflexão, mas depois de reflectir sobre essas propriedades, de as aplicar, era muito, foi muito mais fácil depois ensinar as crianças” (EntT.129).

Apesar disso, Tiago ia sentindo dificuldades com alguns temas matemáticos, “principalmente com a numeração e com a própria compreensão da estrutura do espaço e da volumetria e, portanto, com aspectos relacionados com os sólidos geométricos” (EntT.130), para além das possíveis maneiras de os ensinar aos alunos. Neste campo, as dificuldades ainda aumentaram um pouco devido a uma alteração dos planos curriculares no primeiro ciclo onde foram introduzidas uma série de inovações “que punha qualquer professor, mesmo os meus professores, assim um pouco ‘à nora’, sem saber como fazer”. Como resultado, algumas dessas inovações foram quase imediatamente abolidas que, na opinião de Tiago, nuns casos com razão, noutros nem tanto como, por exemplo, o estudo das bases dos sistemas de numeração diferentes de dez:

“(…) concretamente, as bases, trabalhar com bases diferentes da base 10, que na altura nos deu uma dor de cabeça, porque nunca tínhamos trabalhado com uma base diferente da base 10. Nós começámos então a trabalhar esse tipo de bases, penso que começámos com a mais difícil, isto na minha opinião, que era a base 2. Trabalhámos com a base 2 com os alunos do primeiro ano no terceiro período, porque o programa dizia ‘trabalhar com base 2, base 3, base 4, base 5, etc.’. Então os nossos professores, os nossos orientadores, seguiam aquilo um pouco à risca. E eu tive que dar a base 2. Arranjou-se o material e acho que foi um sucesso… foi um sucesso, porque depois foi extremamente fácil dar as outras bases. Talvez a base 2 fosse, para mim, a mais difícil de ensinar, mas para os miúdos era a melhor para eles compreenderem. Portanto foi uma das inovações que, na altura, foi introduzida no programa mas que só esteve em vigor quando eu comecei a trabalhar, pois no segundo ano foi logo abolida desses currículos” (EntT.130).

Tiago faz uma avaliação bastante positiva do curso de formação inicial que frequentou, achando que contribuiu de uma forma extremamente significativa para o desenvolvimento posterior da sua profissão. Esta sua opinião está em consonância com a investigação sobre o impacto e a importância da formação inicial no desenvolvimento da profissão docente (Oliveira, 2004).

No entanto, reconhece igualmente que sofreu uma grande desilusão quando começou a trabalhar após a conclusão do curso, o que acompanha também indicações que apontam para algum desencanto no primeiro choque com a realidade escolar (Huberman, 1995). De facto, o ambiente que viveu durante o estágio, com a ajuda e colaboração dos outros colegas e dos professores na preparação e desenvolvimento do trabalho, foi completamente diferente daquele que encontrou nas suas primeiras experiências de ensino em que teve que resolver sozinho as situações e em que tudo parecia incerto e imprevisível:

“senti-me desiludido porque, para já, quando eu fazia o estágio, eu tinha lá os meus colegas e tinha a professora com quem criei relações de amizade, de afectividade e de confiança. Quando se começa, a própria presença dos colegas na sala de aula contribui para uma maior segurança e até de um autocontrolo dos alunos. Quando uma pessoa sai, como eu saí, para uma terra em que até o vocabulário era diferente (…) e fui apanhar uma turma extremamente heterogénea, desde aqueles que já sabiam ler alguma coisa até aqueles que não sabiam pegar no lápis, aí é que se sente a dificuldade de ter que arranjar soluções. Enquanto que no estágio se levava tudo preparado, e era raríssimo que houvesse uma situação de imprevisto, quando se vai para o terreno, principalmente no início, é uma situação de completo imprevisto… são imprevistos em cima de imprevistos. E uma pessoa tem dificuldades… depois é quase a lei do ‘desenrasca’…” (EntT.131).