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A PALAVRA SURREALISTA

No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 166-176)

C APÍTULO 5 | A PALAVRA NAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS INTERNACIONAIS

5.7. A PALAVRA SURREALISTA

O Surrealismo, tal como o Futurismo, começa por ser um movimento de raiz literária. André Breton, poeta e ensaísta, seu impulsionador e teórico, interessava-se principalmente pela linguagem verbal, mas o seu pensamento veio a influenciar profundamente o mundo das artes plásticas.

Breton era conhecedor da obra de Freud, a qual legitimava cientificamente o que considerava ser o estado opressivo da condição humana — o condicionamento e repressão social dos impulsos primários e, por isso, mais verdadeiros.

A parte recalcada da experiência, posta em evidência pela psicanálise (susceptível de impedir uma vida social normal) era precisamente aquela que os surrealistas queriam explorar. Não no sentido clínico da normalização comportamental pretendido pela psiquiatria, mas, pelo contrário, como possibilidade de libertação individual. Breton defendia a necessidade de se adoptar uma forma de vida mais espontânea, atenta ao desejo e às necessidades do corpo, que permitisse a uma consciência emancipada rejeitar as limitações éticas e religiosas da cultura burguesa, para poder viver em plena harmonia com os seus instintos.

A psicanálise demonstrava, também, que o corpo condicionava a linguagem, a qual dependia da força irracional dos instintos ficando sujeita ao controlo da consciência e da razão: a psicanálise iluminava a influência da imaginação sobre a linguagem. Por isso considerava premente requestionar o seu uso propondo-se criar “palavras sem rugas” (mots sans rides), palavras em perfeita adequação com a sua época.290 Referindo-se à verdadeira alquimia do verbo defendida por Rimbaud, Breton via na associação de vogais e cores do poema de Rimbaud um início de libertação:

[…] de forma consciente e aceitando suportar as consequências, [tinha]-se afasta[do] a palavra do

seu dever de significar.291

290 BRETON, Andre - Les mots sans rides. Littérature, Paris: [s.n.] nº7 (nova série) (Dezembro 1922). Reimpressão em BRETON, A. - Les Pas perdus (1924). Paris: Gallimard, 1990. ISBN-13: 978- 2070720491. p.131/134.

291 de façon consciente et en acceptant d’en supporter les conséquences, on [avait] détourn[é] le

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Para Breton, a palavra estava, enfim prestes a desabrochar. Para isso, afirmava ser necessário:

1º considerar a palavra em si mesma; 2º […] estudar tão de perto quanto possível as reacções de umas palavras sobre as outras. Apenas por este preço se podia esperar atribuir à palavra o seu pleno destino, o que […] devia fazer dar um grande passo ao conhecimento, e dessa forma exaltar a vida.

292

Graças ao trabalho do poeta moderno, dizia Breton, as palavras finalmente fazem

amor.293

No primeiro Manifesto do Surrealismo, Breton revelava os procedimentos que era preciso ter para atingir esta dimensão erótica e libertadora da linguagem. A nova literatura assentaria naquilo a que ele chamava de automatismo psíquico, uma técnica aplicável a todas as actividades criativas e destinada a exprimir, seja verbalmente, seja

por escrito, seja de qualquer outra forma, o funcionamento real do pensamento.294

Oposta à depuração do racionalismo no sentido entendido pelos construtivistas, Breton afirmava que as artes deviam assentar sobre o que dita o pensamento na

ausência de todo o controlo exercido pela razão, fora de toda a preocupação estética

ou moral.295 Mas o objectivo não era voltar ao non-sense dada.

Breton interessava-se, sobretudo, pela palavra como vector de sentido (por muito estranho que ele pudesse ser) e não como forma visual. Ele dava prioridade não ao

significante, mas ao significado e à dimensão erótica que ele conferia à língua, sendo,

antes de mais, um meio de expressão do desejo, de uma transparência absoluta. Os dois termos que definiam o surrealismo eram pensamento e poesia, com a respectiva extensão ao maravilhoso, e a supremacia destes dois conceitos levava os surrealistas a conceber a obra de arte total como a reunião e todos os seus aspectos num signo sintético incarnando um pensamento.296

292 1º considérer le mot en soi ; 2º […] étudier d’aussi près que possible les réactions des mots les uns sur

les autres. Ce n’est qu’à ce prix qu’on pouvait espérer rendre au langage sa destination pleine, ce qui […] devait faire faire un grand pas à la connaissance, exalter d’autant la vie. Ibid. p.131.

293 Ibid. p.134.

294 exprimer, soit verbalement, soit par écrit, soit de toute autre manière, le fonctionnement réel de la

pensée. é- Manifeste du surréalisme (1924). in Ibid. p.83

295 BRETON, A. – Manifestos do Surrealismo. Lisboa: Edições Salamandra, 1993. ISBN 972-689-075-6. p.45.

296 Este ponto é desenvolvido em WELCHMAN, J.C.. - Invisible Colours: A Visual History of Titles. New Haven e Londres: Yale University Press, 1997. p.240.

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Breton associava de forma enigmática imagens, objectos e palavras naquilo a que ele chamava os seus poemas-objectos.297 Para a elaboração destes poemas, ele fixava diversos objectos e textos sobre vários suportes, procurando criar através dessas justaposições a experiência do maravilhoso.

Para ele, num quadro, as palavras deviam ser os vectores de um sentido verbal e não meramente componentes visuais. Por isso, na arte que propunha, o título tinha um papel essencial, por vezes colocado no interior da obra, por vezes na margem e, mais tradicionalmente, no verso do suporte. Esta colocação do título torna o espectador num duplo leitor: percepciona a imagem e lê o texto. A supressão da distinção entre o local de representação e o local de escrita estabelece, já o vimos, novos tipos de interacção entre texto e imagem, implicando um tipo de colaboração na qual o texto serve, de alguma forma, de ancoragem à imagem. Entretanto, os surrealistas empenharam-se em distender esta ligação ou mesmo a quebrá-la.

Um lugar central é devolvido às palavras, sob a forma de títulos ou de legendas, nas obras do artista suíço Paul Klee. Para ele, o papel do artista consistia em conceber toda uma variedade de signos pictóricos que, pelas suas características, dessem à obra uma dimensão fantástica. Por vezes Klee associa signos simbólicos e signos indexicais, integrando-os numa atmosfera intangível. As palavras inscritas nestas paisagens são o mais possível pessoais e misteriosas. Assim, dois tipos de linguagem, a visual e a verbal, agem em paralelo. Sem nunca se encontrarem, exercem uma sobre a outra uma espécie de atracção.

Uma das formas recorrentes é a da legenda. Manuscrita, respeitando religiosamente as linhas que o próprio pintor traçou. Palavras disciplinadas, de aluno aplicado. Palavras que querem ser lidas. Palavras que precisam ser lidas.

Normalmente por baixo do desenho, aí onde é esperado encontrar o comentário, às vezes subindo para o topo do trabalho, mas sempre em espaço distinto. Respeitando a fronteira entre pictórico e verbal.

Este tipo de texto, composto com minúcia, cria um campo discursivo alusivo, uma vez que mistura informações prosaicas — a data da obra e a assinatura do artista — com palavras ou frases enigmáticas, sem relação imediata com a obra, e isto, sem que, no plano puramente formal, deixe de parecer o título.

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Mas este diálogo em aparente contradição, entre o visual e o verbal, é suposto produzir, a pouco e pouco, frutos, porque dá à obra aquilo que Klee entendia ser um sentido mágico, que não pode ser procedente de um ou do outro dos níveis de leitura, não dependendo totalmente nem do nível do campo perceptivo nem do campo conceptual, o diálogo alimenta-se, assim, das duas dimensões.

Normalmente os títulos de Klee não são descritivos, respeitando o espírito surrealista. Constituem-se como expressões de estados de espírito. É como se o pintor aplicasse à arte de nomear o princípio que aplicava à arte de pintar — não é necessário

mostrar o visível mas tornar visível.298

Outra tendência é a integração da palavra na composição. A palavra como elemento por excelência da organização pictórica.299

Assim, em Klee, os signos invadem o espaço das figuras e comportam-se como imagens e as imagens assumem grafias e organizações de palavras.

Max Ernst, na continuidade de Chirico e Klee explorara, também, as possibilidades que poderiam oferecer os títulos bizarros, não descritivos, portanto, não esclarecedores do sentido da obra. Eles deveriam antes originar de forma insensível, enigmática, os estados psicológicos que suscitam todas as situações perturbadoras e misteriosas, provocar processos inconscientes e era neste objectivo que Ernst via as potencialidades da imagem associada ao registo verbal. Embora por vezes inscrevesse os títulos nas costas do quadro, muitas vezes, como Klee, escrevia linhas de texto em torno da representação ou colocava o título no interior do espaço pictórico. A relação estabelecida por Ernst entre texto e imagem pode ser entendida como uma alusão aos manuscritos iluminados e também às convenções usadas nas publicações técnicas e

298 A propósito é o próprio pintor que esclarece: Não creio que os títulos dos meus quadros sejam

exactamente os que as pessoas gostariam que fossem, mas, como para mim a pintura é em si uma coisa primordial, e como as minhas legendas ilustram a minha pintura, e esta, por consequência, não ilustra um texto previamente concebido, pode acontecer que as pessoas vejam nos meus quadros alguma coisa que eu não vejo de modo nenhum. in READ, Herbert - A Filosofia da Arte Moderna.

Lisboa: Ulisseia, 1986. p.197

299 É aqui que, segundo Foucault, o pintor consegue quebrar uma das leis da associação de texto e imagem: a hierarquia de um ou de outro, pois acontece ao texto de um livro ser apenas um

comentário da imagem, e o percurso sucessivo, pelas palavras, das suas formas simultâneas; e acontece ao quadro ser dominado por um texto, do qual ele efectua, plasticamente, todas as significações. Mas pouco importa o sentido da subordinação ou a maneira pela qual ela se prolonga, multiplica e inverte: o essencial é que o signo verbal e a representação visual não são jamais dados de uma só vez. Sempre uma ordem os hierarquiza […] É esse princípio cuja soberania foi abolida por Klee, ao colocar em destaque, num espaço incerto, reversível, flutuante, a justaposição das figuras e sintaxe dos signos. in MORLEY, Simon - L’Art les Mots.

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científicas da época.300 No seu livro-colagem La Femme 100 têtes, executado em 1929, feito a partir de ilustrações de livros e de revistas, Ernst atinge a mais colossal hibridização texto/imagem.

René Magritte procurava, também, forjar uma linguagem composta por signos herméticos ou mágicos, colocando em evidência todos os pressupostos convencionais da linguagem (palavras e imagens).301

A obra de Magritte estabelece um rico inventário das incapacidades da língua para reflectir a realidade e leva-nos a estabelecer um paralelo com o pensamento do filósofo contemporâneo Ludwig Wittgenstein, que afirmava que numerosos problemas filosóficos eram, antes do mais, problemas de linguagem. Wittgenstein sustentava que o elenco das palavras, enquanto código elaborado, não cobria completamente o campo da realidade. Segundo ele, seria necessário admitir a incapacidade delas para abordar algumas questões de valor e de ética, ou ainda do sentido da vida.302

Magritte interessa tanto à Pintura ou às Ciências da Arte como interessa à Linguística. Vai pôr o dedo exactamente na sua questão central: questiona a realidade da imagem, a sua identificação com o objecto, mas fazendo-o através da palavra, questiona igualmente a identidade do signo linguístico, acentua a sua arbitrariedade, ameaça a solidez do edifício da língua.

A propósito da tela Isto não é um cachimbo Foucault sublinha-o, quando afirma:

[…] é uma ausência de espaço, um apagar do “lugar comum” entre os signos da escrita e as linhas da imagem. O “cachimbo” que se encontrava indiviso entre o enunciado que o nomeava e o desenho que devia figurá-lo, esse cachimbo de sombra que cruzava os lineamentos da forma e a fibra das palavras, fugiu definitivamente. […] O desenho, agora solitário, do cachimbo, por mais que se faça tão semelhante quanto pode a essa forma que a palavra “cachimbo” designa ordinariamente; por mais que o texto se desenrole sob o desenho com toda a fidelidade de uma

300 Aragon dizia, a propósito: Le titre, porté pour la première fois au delà [sic] de la description par

Chirico, devenu chez Picabia le terme d’une métaphore, prend avec Max Ernst [sic] les proportions d’un poème. ARAGON, Louis - Exposition de collages, (Introdução ao catálogo da exposição). Paris:

Galerie Goemans, março 1930. p.22. in MORLEY, Simon - L’Art les Mots. Paris. p.85.

301 É o próprio pintor que o esclarece: Pode-se criar entre as palavras e os objectos novas relações e precisar algumas características da língua e dos objectos, geralmente ignoradas na vida quotidiana. Ou ainda: Às vezes um objecto substitui uma imagem. Uma palavra pode tomar o lugar de um

objecto na realidade. Uma imagem pode tomar o lugar de uma palavra numa composição. Num

quadro as palavras são da mesma substância que as imagens. Vê-se de outro modo as imagens e as palavras, num quadro. citado por FOUCAULT, Michel - As Palavras e as Coisas, Lisboa: Edições 70, 1998. ISBN 972-44-0531-1. p.50.

302 WITTGENSTEIN, L. - Tractatus Lógico-Philosophicus, trad. G.-G. Granger. London: Paperback, ISBN 0-415-25408-6. 2001. Pode encontrar-se uma análise da relação existente entre a obra de Magritte e as teorias de Wittgenstein in GABLIK, S. - Magritte, trad. E de Knop-Kornelis. Paris: Draeger, 1978. p.122-124.

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legenda num livro erudito: entre eles só pode passar a formulação do divórcio, o enunciado que conteste ao mesmo tempo o nome do desenho e a referência do desenho.

Em nenhum lado há cachimbo.303

Dito de outra forma: o nome não é o nomeado, assim como o desenho não será o desenhado. E é a presença dos dois sistemas que, no aparente absurdo, faz surgir essa evidência.

Tal é o mecanismo seguido por Magritte noutros trabalhos. Talvez o mais conhecido seja a Chave dos Sonhos em que o “ovo” se chama “acácia” ou o “copo” “tempestade”.

A arbitrariedade dos signos linguísticos é, assim, exposta.304 Não se pode fumar

nem a imagem de um cachimbo, nem a palavra ‘cachimbo’. Além disso, a representação de um cachimbo corresponde a convenções que variam não só de uma cultura para outra, mas também ao longo do tempo. Libertar a palavra e a imagem da realidade devia criar uma abertura epistemológica na qual se poderia lançar a luz do “maravilhoso”. Mas esta abertura podia revelar-se como sendo um abismo no qual toda a ideia de sentido e de função se podia obscurecer. Magritte mostra as recaídas da crise moderna da linguagem, em toda a sua ambiguidade: por um lado ele celebra a emancipação da linguagem, desembaraçada dos laços impostos pelo uso convencional das palavras, mas denuncia ao mesmo tempo a angústia existencial que provoca a perda desses laços. Se as palavras e as imagens são culpadas de traição, em quem ou em quê se pode ainda ter confiança?

Claro que não podemos alienar a preocupação surrealista de raiz psicanalista que nos transporta para o imaginário, o subconsciente, o sonho, a poética.305

303 FOUCAULT, Michel - As Palavras e as Coisas. Lisboa: Edições 70, 1998. ISBN 972-44-0531-1. p. 33/34.

304 Um objecto nunca tem a mesma função que o seu nome ou que a sua imagem, ou ainda, um objecto

não tem de tal forma a ver com o seu nome, que não se lhe possa encontrar um outro que melhor lhe assente, MAGRITTE, René - Les mots et les images, Revolução Surrealista. [S.l.]: [s.n.].

nº12, (1929). cit. in MORLEY, Simon - L’Art les Mots. p.86.

305 A propósito do “poético”, Barthes afirma: o “poético” não é nenhuma impressão vaga, nenhuma

espécie de valor indefinível, ao qual nos referíssemos comodamente por subtracção do “prosaico”. O “poético” é a capacidade simbólica de uma forma; esta capacidade não tem valor senão permitir à forma “partir” em muitas direcções e manifestar assim em potência o caminhar infinito do símbolo, do qual nunca se pode fazer um significado último e que é em suma sempre o significante de um outro significante (sendo por isso que o verdadeiro antónimo do poético não é o prosaico mas o estériotipado). in BARTHES, Roland - O Óbvio e o Obtuso. p.107/108.

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Em Magritte esse território também se conquista, em pintura, com a ajuda da palavra:

Os títulos são escolhidos de tal maneira que impedem de situar os meus quadros numa região familiar que o automatismo do pensamento não deixaria de suscitar a fim de se subtrair à inquietação.306

Os textos de Magritte são também indicadores de um “mecanismo” usual na obra do autor: o da substituição.

Com efeito é frequente a substituição de uma imagem pela sua nomeação, assim como numa frase uma imagem pode ocupar o lugar de uma palavra.

É exemplo disso uma das intervenções deste autor na revista Révolution Surréaliste em que na frase «eu não vejo a mulher nua escondida na floresta» a palavra «mulher» é substituída pela representação de um nu feminino. Assim, precisamente o que é impossível ver (num hipotético real) é a única coisa realmente vista no texto.

Deste modo, Magritte faz-nos sentir que palavra e imagem podem ser da mesma

substância. Pelo menos enquanto ambas se mostram portadoras de conceitos,

enquanto chaves do imaginário.

Estaremos, neste caso no âmbito daquilo a que Barthes chama intertexto:307 trata- se da circulação do pintor entre dois textos, o da pintura e o da escrita.

Embora de forma completamente diferente da que tinha sido feita até então pelas vanguardas, alguns artistas surrealistas usaram também a palavra pelo seu aspecto visual, como é o caso de Joan Miró. Este artista, por exemplo, adopta uma forma de inscrição mais espontânea e mais visual. Entre 1924 e 1927 aperfeiçoou aquilo que constitui uma outra forma de arte-escrita surealista, o “quadro-poema”. Nestas obras, a caligrafia confunde-se com a pintura, sendo a mesma “touche” usada para formar tanto desenhos abstractos como palavras legíveis.

Em Miró não existe uma distinção nítida entre texto e imagem, que era habitual nos outros surrealistas, a qual passa a dar lugar a uma utilização mais enfática da escrita, entendida como uma espécie de linguagem plástica rítmica. Como se pode ver no quadro de Miró Ceci est la couleur de mes rêves, os textos desdobram-se pela superfície da tela sem seguirem as regras de paginação tradicionais e afirmando-se, antes de tudo, como fenómenos visuais. A preferência do artista por um cursivo

306 MAGRITTE, René - Les mots et les images, Revolução Surrealista nº12, 1929. in MORLEY, Simon –

L’Art les Mots. p.86.

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decorativo, que se impõe aos olhos, lembra o organicismo da Arte Nova. A procura de uma linguagem mágica, constituída por símbolos, leva o artista a descuidar a legibilidade do signo verbal convencional em benefício de um código pessoal, mais hermético.

Miró dizia, a propósito, que ele criava palavras e imagens com a mesma espontaneidade, num estado de alucinação308. O sentido destas frases escritas na pintura, como que se formando espontaneamente e assemelhando-se a fragmentos de sonhos, revela uma espécie de obsessão por tudo o que é sensual e erótico.

Na sua obra, o “automatismo psíquico” assume uma dimensão dinâmica e física. Se para Breton o importante era o conteúdo da linguagem, tinha também consciência do valor que o processo desencadeado pela escrita automática alcançava. Neste sentido, o fluir da escrita ou do desenho espontâneo tendia menos para uma descrição literária do que para uma colocação em evidência dos ritmos do corpo, gerados no seu conjunto, pelo desejo. Para ele, ainda, esta “unidade rítmica” revelava uma

ausência de contradição, a mobilidade dos investimentos emotivos devidos ao recalcamento, a intemporalidade e a substituição da realidade exterior pela realidade psíquica, submetida ao único princípio do prazer309.” Por outras palavras, o automatismo era também para Breton a via real que conduzia aos processus inconscientes e podia dar testemunho de “tudo o que o poeta ou o pintor esconde […] de emocional.310

André Masson vai desenvolver, ainda, um outro tipo de exercício em que a escrita e o desenho eram indissociáveis: o artista não tentava transcrever a linguagem falada, o signo convencional ou a imagem; esperava em contrapartida, produzir signos tangíveis da presença do corpo e das suas pulsões não reprimidas, através dos traços feitos pelo movimento da mão enquanto percorria a superfície do papel ou da tela. Era essa a forma pela qual Masson alcançava uma forma de arte directamente demonstrativa (e não representativa), ancorada no desejo.

Os resultados obtidos não se assemelham a uma “escrita” no sentido usual do termo. Não pretendia que as marcas deixadas sobre o papel ou a tela tivessem carácter verbal mas sim, que fossem o registo directo de um ritmo corporal. Como o carácter improvisado do trabalho efectuado não permitia ao artista entregar-se a uma

308 état d’hallucination. in MIRÓ, J. – Minotaure. [S.l.]: [s.n.], nº3-4 (1933). p.18. in MORLEY, Simon –

L’Art les Mots.

309 absence de contradiction, la mobilité des investissements émotifs dus au refoulement, l’intemporalité

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