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A PALAVRA SIMBOLISTA

No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 135-139)

C APÍTULO 5 | A PALAVRA NAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS INTERNACIONAIS

5.2. A PALAVRA SIMBOLISTA

Ao contrário dos Impressionistas, a geração que se lhes seguiu, a dos Simbolistas usa a escrita nas suas telas intencionalmente. As palavras não integram cenas, antes aparecem como auxiliares úteis ao exercício do anti-naturalismo que caracteriza a sua produção. Assumem a forma de títulos, nem sempre perceptíveis, de evocações enigmáticas ou de signos gráficos sem significado evidente.

Os simbolistas, críticos da cultura de massas, eram receptivos a todas as influências exteriores que questionassem a decadência em que, pensavam, o ocidente caíra. É conhecida a dupla fuga que empreenderam: das metrópoles para o interior rural, ou mesmo em busca de destinos mais longínquos e exóticos, como fez Gauguin, e uma outra (dessa dependente), interior, que procura a ingenuidade primitiva, a recusa da falsidade, nas manifestações de culturas claramente não ocidentais e que se faz, não só no espaço, mas, também, no tempo.

Este aumento do cepticismo para com o poder significante de toda a representação, levou os artistas a recusarem-se em dar às suas obras um sentido claro e explícito. Esta geração distanciou-se da utilização convencional do texto e da imagem. Para os simbolistas, o poema ou o quadro deviam sobretudo evocar um estado de espírito, uma atmosfera poética e fazer entrever um mundo quimérico, sinais enigmáticos, simbologias profundas.

A tarefa do artista consistia, para o crítico de arte (simbolista) Aurier, em retirar as coisas tangíveis a fim de deixar aparecer a realidade essencial, mais intensa, unicamente sob a forma de signos. Estes, são as letras de um imenso alfabeto que

apenas o homem de génio sabe soletrar.226

Assim se justifica o fascínio pelo exotismo oriental e a sedução por essa escrita que não se desligara da imagem, como acontecera na arte ocidental, a partir do Renascimento.

Esse interesse pelo longínquo justifica as cópias que Van Gogh fez das estampas japonesas que possuía, introduzindo sempre os sinogramas que as originais apresentavam ou até inventando outros que lá não estavam. O artista utilizava os caracteres orientais para sublinhar a forma ornamental e não naturalista da suas telas.

226 AURIER, G.A. - Le symbolisme en peinture: Paul GAUGUIN Mercure de France. Paris: [s.n.] (Mars 1891). p.160/161 cf. MORLEY, Simon - L’art-les Mots. p.29.

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Era principalmente a dinâmica enigmática desta caligrafia e não a sua legibilidade que lhe interessava. Van Gogh descobriu também que a escrita afirmava a bidimensionalidade da superfície pictórica e registava a espontaneidade do gesto rápido do artista.

Por seu lado, Gauguin, compõe quadros em que as palavras entram na composição de títulos que se deslocaram do caixilho, da parte de trás da tela ou do cartaz, para a obra propriamente dita. Esta presença verbal no interior do espaço do quadro, sublinha, como em Van Gogh, o que já é expresso claramente com o colorido e modelado anti-naturalista, mas serve também para indicar, com o auxílio da renúncia da perspectiva, que o quadro deve ser compreendido como uma construção, uma superfície.

As inscrições devem contaminar as imagens de modo a que o espectador perceba a obra como uma matriz de signos ou de símbolos mais destinados a serem lidos do que vistos. Fazendo parte de um mesmo discurso, palavras e imagens equivalem-se, portanto, participando, em conjunto, no acto de semiose, objectivo principal desta pintura: a produção de significados, em que sempre algo está por algo, para alguém.

Nesse processo Gauguin, respeitando os princípios simbolistas, infligia à relação entre texto e imagem uma indeterminação radical, sabotando o papel de dependência geralmente desempenhado pelas palavras. Num procedimento que se vai radicalizando, o artista acaba por copiar para as suas telas, inscrições primitivas da ilha de Páscoa, enigmas a nível linguístico, ou a transcrever alfabeticamente palavras haitianas. Desse modo quer reforçar o sentimento de alteridade fundamental e atribuir ao assunto do quadro sabores de mistérios insondáveis.

A viagem ao passado, por seu lado, leva os simbolistas a tomarem consciência da existência de uma tradição caligráfica ocidental e de frequentes práticas pictóricas integrando textos no campo da imagem.227

227 O pintor e escritor pré-rafaelita William Morris também estudou a evolução da caligrafia Ocidental e o

início da impressão. Em 1891 criou a Kelmscott Press, uma editora que publicou em estilo ‘gótico’ livros modernos iluminados. Recusando as técnicas de impressão modernas, Morris queria salvar o livro da mediocridade que o ameaçava, tanto no conteúdo como na forma. O seu combate marcou o início de uma renovação do trabalho de edição, que foi acompanhada pelo retorno do interesse dos artistas pela escrita. Ibid. p.29.

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Os Simbolistas reencontram, interessam-se e recuperaram a associação de texto e imagem da arte da Idade Média, o que é sobretudo evidente nos Nabis e Pré- Rafaelitas.228

A questão do sentido tornou-se, como vimos, secundária, mesmo na literatura e na poesia. A imprecisão da música e a ambiguidade da imagem visual, aliás, pareciam ao poeta melhores modelos do que a clareza e precisão da linguagem verbal.

As Correspondances de Baudelaire229 seriam a referência para os simbolistas. A nova poesia devia deixar os textos tomar forma espontaneamente sob o efeito de uma espécie de alquimia do verbo, como afirmava Rimbaud em 1873.230

A obra de Stéphane Mallarmé é a que melhor encarna os objectivos profundos do simbolismo na literatura. Um dos seus poemas teve a maior das consequências. Um

Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso231 põe a claro a dimensão visual do signo

verbal, levando-nos a tomar consciência da natureza concreta, material das letras e das palavras, chamando a atenção para a forma dos caracteres (a fonte utilizada na versão de 1914 era a Didot), mas também põe em evidência, explorando-o plasticamente, o espaço branco da página.

A Mallarmé interessava principalmente a forma da linguagem, procurando dotá-la de um espaço autónomo situado para lá da pobreza do quotidiano.

O fenómeno da sinestesia ocupava um lugar central nesta nova concepção e os simbolistas procuravam apagar as diferenças entre as diversas técnicas artísticas de um ponto de vista sensorial. A sinestesia podia tomar diversas formas, como por exemplo, a de uma interpretação imagista do alfabeto.

Em 1871, Rimbaud divertia-se em Voyelles a encontrar ligações sinestésicas entre as letras, as cores e as diversas sensações:

228 A influência desta arte do passado nasceu na Inglaterra. ‘Proserpina’, obra do pintor e poeta pré- rafaelita Dante Gabriel Rossetti, mostra a repercussão deste novo medievalismo na pintura de cavalete: o pergaminho iluminado representado no quadro contém um poema de Rossetti, em italiano, cuja tradução em inglês foi inscrita na moldura. Ibid. p.29.

229 Assenta na ideia básica do Simbolismo de que o Homem passa na vida como numa floresta de símbolos.

230 RIMBAUD, Artur - Oeuvres complètes. Paris:La Plêiade, 1954. p.252.

231 Publicado pela primeira vez em 1897, mas apenas em 1914 sob a sua surpreendente forma tipográfica.

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A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul: vogais.232

Por seu lado, Mallarmé afirmava num ensaio consagrado à língua inglesa, que a letra “J”, por exemplo, tinha uma tendência a exprimir [...] uma qualquer acção viva, directa e que a letra “K” evocava a ideia de nodosidade ou de junta.233

A colaboração entre os poetas e artistas plásticos fez aparecer um género híbrido, o livro de artista, que servia de quadro para um diálogo equilibrado entre poesia e pintura. Neste tipo de obra, a imagem não se destinava apenas a ilustrar o texto; ela realçava, antes, o elemento verbal, a que era equiparada. Odilon Redon, por exemplo, criou imagens para obras de poetas como Mallarmé que tinham o efeito de anti- ilustrações porque, não estando ancoradas ao texto, não lhe podiam aclarar o sentido e exprimiam, antes, num outro campo da criação, ideias igualmente inacessíveis.

Os seus títulos eram sempre cuidadosamente escolhidos mas fantásticos. Declarava também que um título não se justificava se não fosse vago e tendesse, mesmo, para ser equívoco. Dizia igualmente que os seus desenhos inspiravam mas não davam definições, não determinam nada e que, como a música, nos deviam transportar para o mundo ambíguo do indeterminado.234

Os pintores, no entanto, tiveram mais oportunidade de explorar a utilização da linguagem verbal desligada das suas funções e do seu contexto habitual, uma vez que a tela é um espaço mais aberto que o livro, onde a palavra se encontra naturalmente deslocada.

Os simbolistas, no limite, pretenderam desenvolver a simbiose entre os diferentes géneros artísticos, o que, se por um lado permitiu que cada um se apropriasse de características do outro, ampliando a área específica de expressão, por outro originou o conceito de obra de arte total que, articulando-os criava essa nova entidade.

232 RIMBAUD, Artur - œuvres complètes. Nº6. p.105.

233 MALLARME, Stéphane - Les mots anglais, Paris: [s.n.], 1877. p.91/100.

234 REDON, Odilon - texto citado por Octave Mirbeau in MIRBEAU, O. - L’art et la nature, Le Gaulois. Paris: [s.n.]. (26 avril 1886). cf. MORLEY, Simon - L’art-les Mots. p.32.

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