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A extrafiscalidade e o objetivo dos incentivos fiscais na Constituição

2 INCENTIVOS FISCAIS E O SISTEMA CONSTITUCIONAL

2.4 A extrafiscalidade e o objetivo dos incentivos fiscais na Constituição

Muitos estudos colocam a extrafiscalidade como o fundamento de validade por excelência dos incentivos fiscais. Assim, segundo essa visão, os incentivos fiscais teriam seu berço na natureza extrafiscal de alguns tributos.

Alguns autores consideram a extrafiscalidade, basicamente, como medidas fiscais de incentivo ou de desestímulo a determinados comportamentos. Misabel Derzi37 afirma que "a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido ao legislador tributário a faculdade de estimular ou desestimular comportamentos, por meio de uma tributação progressiva ou regressiva, ou da concessão de benefícios e incentivos fiscais". Casalta Nabais38identifica extrafiscalidade nas normas tributárias que têm o "intuito de actuar directamente sobre os comportamentos económicos e sociais de seus destinatários".

Segundo Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath39, a extrafiscalidade: […] ocorre quando a legislação de um tributo é elaborada com providências no sentido de prestigiar certas situações (ou, ao contrário, desprestigiar outras), tidas como social, política ou

37 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Edição atualizada por Misabel Abreu Machado

Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 233.

38 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão do

estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 629.

39 OLIVEIRA, Régis Fernandes de; HORVATH, Estevão. Manual de direito financeiro. 4. ed. rev.,

atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 59.

economicamente valiosas, às quais o legislador dispensa tratamento mais confortável ou menos gravoso (ou, em outras situações, mais gravoso). Em suma, utiliza-se do tributo com fins diversos dos meramente arrecadatórios.

Assim, as diversas conceituações para a extrafiscalidade verificam que este instituto, além de provocar estímulos ou desestímulos a comportamentos, agrega ao conceito toda modalidade que tenha por objetivo a “mera arrecadação de tributos”.

Nessa linha, Ricardo Lobo Torres sustenta:

A extrafiscalidade, como forma de intervenção estatal na economia, apresenta uma dupla configuração: de um lado, a extrafiscalidade se deixa absorver pela fiscalidade, constituindo a dimensão finalista do tributo; de outro, permanece como categoria autônoma de ingressos públicos, a gerar prestações não tributárias40.

Dentro da nossa concepção, embora possamos encontrar tributos que se revelam mais propensos à arrecadação, outros se mostram mais voltados a finalidades extrafiscais, de modo que salienta Paulo de Barros Carvalho41 não haver entidade tributária dita pura, isto é, que concretize apenas a fiscalidade ou a extrafiscalidade, porque ambos os vieses coexistem em harmonia num mesmo tributo, com predominância de um sobre o outro.

Ainda que tenhamos esta opinião, podemos traçar uma distinção entre as finalidades fiscais, que podem ser identificadas como aquelas destinadas a simples arrecadação para o custeio da Administração Pública, das extrafiscais, que podem ser utilizadas como instrumentos para direcionar as condutas dos contribuintes para aquilo que for conveniente ao interesse público. Dentro da extrafiscalidade, duas posturas são determinantes: ou se eleva a carga tributária para desestimular uma determinada conduta (exemplificamos, nesse aspecto, a utilização da progressividade do IPTU) ou ocorre a diminuição ou supressão de tributo a pagar para estimular condutas. Neste caso, estaremos diante da extrafiscalidade para a concessão dos incentivos.

Assim é que os valores do sistema jurídico identificados durante o processo interpretativo42 são implantados, no campo tributário, por meio das regras de caráter

40 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2001,

p. 167.

41 CARVALHO, Paulo de Barros; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Guerra fiscal: reflexões sobre a

concessão de benefícios no âmbito do ICMS. São Paulo: Noeses, 2012, p. 37.

42 “Os problemas aqui mencionados, é verdade, extrapolam os limites da especulação jurídica. Formam,

no entanto, um substrato axiológico que, por tão próximo, não se pode ignorar. A contingência de carecerem de positivação explícita não deve conduzir-nos ao absurdo de negá-los, mesmo porque

extrafiscal, que não se relacionam às finalidades arrecadatórias. Nesse contexto, Paulo de Barros Carvalho43 aponta as isençõ

es como fortes instrumentos de extrafiscalidade:

Dosando equilibradamente a carga tributária, a autoridade legislativa enfrenta as situações mais agudas, onde vicissitudes da natureza ou problemas econômicos e sociais fizeram quase que desaparecer a capacidade contributiva de certo segmento geográfico ou social. A par disso, fomenta as grandes iniciativas de interesse público e incrementa a produção, o comércio e o consumo, manejando de modo adequado o recurso jurídico das isenções.

Ao afirmar que as regras tributárias de caráter extrafiscal buscam objetivos estranhos aos meramente arrecadatórios e que os incentivos fiscais são importantes instrumentos da extrafiscalidade, Paulo de Barros Carvalho não lhes nega a dignidade tributária44; ao contrário, entende que os incentivos fiscais se caracterizam pelo objetivo principalmente extrafiscal que buscam cumprir, como a diminuição das desigualdades regionais, o estímulo à abertura de vagas para emprego, a captação de investimentos em atividade econômica e empresarial em certas regiões do Brasil, o incentivo às exportações, por exemplo, e outros mais. Com isso, provocam estímulo de cunho econômico.

Para Marcos André Vinhas Catão, a teoria dos incentivos fiscais assenta-se sobre a extrafiscalidade45, a qual diminui a importância arrecadatória da tributação, impondo-lhe finalidades corretivas de situações econômicas, sociais ou políticas não desejadas. Segundo ele, atualmente a extrafiscalidade

[…] se insere como um dos mais importantes meios de consecução dos objetivos sociais e econômicos, na medida em que, agregado à atividade arrecadatória, fiscal, funde-se em um único instrumental, indispensável para o desenvolvimento das sociedades contemporâneas, naquilo que se convencionou denominar de Política Fiscal, terminologia que acende tema de profunda preocupação no cipoal democrático46.

penetram a disciplina normativa e ficam depositados, implicitamente, nos textos do direito posto. O intérprete do produto legislado, ao arrostar as tormentosas questões semânticas que o conhecimento da lei propicia, fatalmente irá deparar-se com resquícios dessa intencionalidade que presidiu a elaboração legal”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2013, p. 604).

43 Ibid., p. 604.

44 CARVALHO, Paulo de Barros; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Guerra fiscal: reflexões sobre a

concessão de benefícios no âmbito do ICMS. São Paulo: Noeses, 2012, p. 38-39.

45 Regime jurídico dos incentivos fiscais. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 4. 46 Ibid., p. 25.

Veja-se que não exclui a importância arrecadatória dos tributos, apenas a desloca para outro degrau de importância. Dado seu caráter não excludente, o autor explica que todas as espécies tributárias podem operar com função extrafiscal e ensejar a concessão de incentivos fiscais, os quais não se restringem, portanto, a alguns tributos que, supostamente, teriam índole extrafiscal47.

Com apoio em Gerd Willi Rothmann48, afirma-se que há três grupos de normas tributárias: a) de finalidade fiscal; b) de finalidade social e extrafiscal ou indutora; e c) de simplificação. As normas de simplificação objetivam facilitar a aplicação das normas tributárias propriamente ditas, ou seja, tornar a aplicação mais praticável, mais econômica, mais exequível.

As normas de finalidade fiscal, por sua vez, são aquelas cujo fim é arrecadar recursos com que o Estado possa suprir as necessidades dos cidadãos, as quais estão em constante aumento. Gerd Willi Rothmann recorda que, para Tipke, as normas tributárias devem render recursos ao Estado sem prejuízo da justiça distributiva aos cidadãos contribuintes, cujos contornos são dados por valores presentes nas normas jurídicas tributárias, especialmente nos princípios constitucionais. O princípio da capacidade contributiva, lastreado que é na igualdade, serve aos impostos fiscais, mas não aos extrafiscais/indutores, exatamente por balizar o que o cidadão pode fazer para o Estado, e não o que este pode fazer para o cidadão individualmente considerado.

Ainda, de acordo com essa visão, as normas tributárias de finalidade social/ extrafiscal/indutora não objetivam imediatamente arrecadar dinheiro para atendimento das necessidades públicas, mas sobretudo concretizar as finalidades que carregam no nome. Em outras palavras, as normas tributárias extrafiscais almejam modificar a conduta intersubjetiva independentemente do rendimento fiscal do seu destinatário. Segundo Tipke, trata-se da dupla finalidade: entregar àqueles que afetam os recursos com ela conseguidos, bem como distribuir esses recursos aos demais destinatários eleitos. Nem por isso deixam de ser normas tributárias: por trabalharem com o poder de tributar, e não o poder de polícia, conservam seu status de tributárias, embora não visem

47 CATÃO, Marcos André Vinhas. Regime jurídico dos incentivos fiscais. Rio de Janeiro: Renovar,

2004, p. 23.

48 ROTHMANN, Gerd Willi. Natureza, finalidade, interpretação e aplicação das normas tributárias

extrafiscais – conceitos de lucro da operação e de resultado operacional – classificação dos aluguéis como receita operacional. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo: Dialética, n. 23, p. 192-206, 2009.

à arrecadação de maneira principal. Se conservam tal dignidade, seguem o mesmo regime das demais normas tributárias.

Gerd Willi Rothmann49 cita, ainda, Joachim Lang, para quem as normas extrafiscais são apenas formalmente tributárias, sendo materialmente pertinentes aos “ramos” com que se relacionam. Isso explicaria a razão de elas não se conformarem ao princípio da capacidade contributiva, aproximando-se do princípio do bem comum, da carência e do mérito. Pelo princípio do bem comum ou da solidariedade, a responsabilidade de cada um pelo chamado bem comum justifica a repartição da carga tributária. O princípio da carência enseja a desoneração fiscal nos casos de incapacidade contributiva, mais específica do que a simples falta geral de capacidade contributiva. O princípio do mérito, por fim, retribui a conduta do cidadão que beneficiou a sociedade em geral, como nos casos de incentivos ambientais.

Na visão desse autor, nem todos os princípios constitucionais tributários se aplicam às normas tributárias extrafiscais, por exemplo, o princípio da capacidade contributiva, da anterioridade, da uniformidade geográfica, entre outros. Mas, por outro lado, elas são conformes aos princípios da estrita legalidade, irretroatividade e igualdade. E, dada a relação que estabelecem com outros “ramos” do direito (Direito Econômico e Social), devem observar princípios peculiares destes, operando, enfim, harmonia entre as questões econômicas e sociais e as tributárias, a exemplo do que se infere do artigo 151, I, da Constituição Federal.

Diante desse quadro, inegável que a interpretação das normas tributárias extrafiscais não pode prescindir da análise de sua finalidade, que revela, em última análise, os valores que justificam sua aplicação e, através desta, buscados.

Betina Treiger Grupenmacher, na sua visão instrumental dos incentivos fiscais, reconhece a idoneidade dessas figuras nas finalidades que buscam, como a redistribuição da carga tributária, o desenvolvimento econômico e social, a promoção do bem estar da família e a preservação do meio ambiente e respectivas riquezas. As reduções na carga tributária revelam objetivos importantes economicamente por desempenharem uma função regulatória da economia, já que são meios de concretização

49 ROTHMANN, Gerd Willi. Natureza, finalidade, interpretação e aplicação das normas tributárias

extrafiscais – conceitos de lucro da operação e de resultado operacional – classificação dos aluguéis como receita operacional. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo: Dialética, n. 23, p. 192-206, 2009.

de direitos e garantias individuais ao lado da própria liberdade de atividade econômica (artigos 5º, XIII, e 170, ambos da Constituição Federal). Ademais, independentemente da forma como se apresentam (isenções, crédito presumido, redução de base de cálculo, alíquota zero), incentivos e benefícios fiscais, enquanto instrumentos de desoneração tributária são providências extrafiscais de exceção que afetam a arrecadação e o orçamento50.

Roque Antônio Carrazza51 considera os incentivos fiscais tema afeto à extrafiscalidade, a qual opera não só através de estímulos, mas também de desestímulos fiscais, com vistas a que os contribuintes deixem de realizar condutas inadequadas sob o ponto de vista político, econômico ou social, muito embora sejam permitidas por lei. Como exemplo, cita o estabelecimento de alíquotas elevadas para importação de produtos supérfluos.

Para Alberto Xavier52, muitos incentivos fiscais podem ser considerados desconformes ao ordenamento pelo ângulo da capacidade contributiva exclusivamente; contudo, como toda análise parcial, peca por desconsiderar os demais objetivos jurídicos de caráter econômico e social contemplados no mesmo ordenamento:

Subordina-se aqui a ideia de aptidão para contribuir à aptidão para realizar outros fins do Estado. À justiça fiscal, entendida em sentido estático, sobrepõe-se um conceito mais lato e dinâmico de justiça, relacionado com o crescimento económico e a justiça social. Como tais fins são objectivamente fundamentados não pode fala-se em privilégio fiscal; e como tais fins são objeto de preceitos constitucionais com o mesmo grau hierárquico dos que definem o princípio da igualdade, não pode sustentar-se a inconstitucionalidade das normas que, criando isenções extrafiscais, lhes tenham reconhecido prevalência.

Os incentivos fiscais, para nós, são normas jurídicas que atuam como fortes instrumentos de extrafiscalidade, uma vez que o Estado poderá legislar sobre situações para fomentar iniciativas de interesse público para incremento da produção de alguns setores da economia, promovendo o desenvolvimento regional (e nacional), especialmente se esse mecanismo for objeto de um manejo adequado pelo ente político.

50 GRUPENMACHER, Betina Treiger. Das exonerações tributárias. Incentivos e benefícios fiscais. In.:

______; CAVALCANTE, Denise Lucena; RIBEIRO, Maria de Fátima; QUEIROZ, Mary Elbe. Novos horizontes da tributação: um diálogo luso-brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012, p. 10-13, 43. 51 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 27. ed., revista, ampliada

e atualizada até a Emenda Constitucional n. 67/2010. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 93-94.

52 XAVIER, Alberto. Manual de direito fiscal I. Lisboa: Manuais da Faculdade de Direito de Lisboa,

1974, p. 286.

A extrafiscalidade, então, traduz para os incentivos fiscais uma postura de estímulo, que orientará a interpretação da norma jurídica de incentivo fiscal, uma vez que esta penetra (ainda que sem positivação explicita) no texto normativo e ali se deposita, implicitamente, sendo que, na construção do sentido do produto legislado, fatalmente se notará tal intenção do legislador.