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7 CONDICIONANTES FINANCEIROS AOS INCENTIVOS FISCAIS

7.2 Os Incentivos Fiscais e a Lei de Responsabilidade Fiscal

7.2.1 O conteúdo semântico do termo renúncia

Considerando que nosso método de análise leva em consideração o direito enquanto linguagem e que essa linguagem, enquanto muitas vezes imprecisa, vaga e ambígua, necessita de elucidação quanto ao seu conteúdo semântico, especialmente quando se trata de um trabalho científico, imperioso iniciar nossa análise com a significação do termo renúncia, previsto no artigo 14 da Lei Complementar nº 101/00.

A renúncia de receita, de forma ampla, pode ser considerada o lado avesso da arrecadação tributária realizada pelos entes federados. Ao mesmo tempo, a noção de

incentivo fiscal e renúncia de receita são, nada mais, do que ângulos diferentes de uma mesma realidade.

Considerando que a concessão dos incentivos pelos entes tributantes decorre na diminuição da arrecadação tributária – e aqui tratamos a arrecadação de forma ampla, ainda que a diminuição não seja decorrente de tributo propriamente, mas de todo o rol de obrigações a ele inerentes – e, consequentemente, na “perda” de determinada receita, a Lei de Responsabilidade Fiscal disciplinou, em seu artigo 14, um rol de condições para não autorizar que incentivos fiscais sejam concedidos de forma deliberada.

O referido artigo assim dispõe:

Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:

I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

§ 1o A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito

presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

§ 2o Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de

que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.

§ 3o O disposto neste artigo não se aplica:

I - às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição, na forma do seu § 1º; II - ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança”

A abrangência do mencionado dispositivo leva em consideração dois elementos: i) a existência de tratamento diferenciado e ii) o impacto orçamentário e financeiro que a medida implica.448

Da leitura do mencionado dispositivo legal, verificamos que não há uma proibição quanto à renúncia de receitas, requerendo, apenas, exigências de controle para que elas possam ser operacionalizadas. Ademais, não diz respeito a todo e qualquer tipo de renúncia de receita, mas apenas àquelas que sejam decorrentes da “concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária”.

O problema da renúncia de receitas é justamente o potencial que têm para atingir o princípio federativo, como já tratado nos tópicos pertinentes, especialmente a guerra fiscal. Nesse sentido, observam Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath449, expondo o propósito da lei, entre outros:

Ocorre que tal providência política gerava crescente rivalidade entre Municípios e entre Estados, que renunciavam a parte da receita do ICMS, o que redundava em confrontos inconvenientes. A nova lei veio a dar grande passo na limitação de possíveis conflitos. […] Os incisos I e II do art. 14 são fortes na resistência a que haja renúncia indiscriminada de receita, de forma a evitar a concorrência predatória, bem como a insuficiência de recursos por parte de Municípios ou Estados, de forma a levá-los à impotência para cumprimento de suas obrigações. Na sequência (sic), o que era normal, buscavam recursos nas esferas superiores para nivelar seu orçamento. Era a consagração máxima da incompetência ou da irresponsabilidade na gestão da coisa pública. Agora, para que haja um benefício tributário, é imprescindível que o Executivo diga de onde tirará a compensação para manter o equilíbrio fiscal ou, então, por que meio irá compensar a perda de arrecadação com o incentivo dado.

Pelo art. 14 mencionado, foram delimitados os aspectos necessários para inviabilizar tentativas de instituição de incentivos indevidos, que prejudicam outros entes federados e transferem a eles o ônus da renúncia, uma vez que é na União ou nos Estados que esses entes irão buscar recurso para repasse450.

448 CORREIA NETO, Celso de Barros. O avesso do tributo: incentivos e renúncias fiscais no direito

tributário. 2013. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 205.

449 Manual de direito financeiro. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.

41-42.

450 OLIVEIRA, Régis Fernandes de; HORVATH, Estevão. Manual de direito financeiro. 4. ed. rev.,

atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 43.

Nesse contexto, afirma Robson Maia Lins451:

Pois bem, quando os Estados e o Distrito Federal firmam Convênio autorizando que cada um deles estabeleçam isenção, por meio de legislação interna, em relação a determinada operação, pode ocorrer que determinado Estado que criou, efetivamente, a isenção ingresse em situação fiscal deficitária, ferindo a Lei de Responsabilidade Fiscal, que também é Lei Complementar Nacional (LC nº 101/2000) e deve necessariamente ser considerada na interpretação da Lei Complementar nº 24/75. Enquanto isso, os outros Estados que também efetivaram a isenção podem não estar com suas metas fiscais comprometidas, não tendo o menor interesse em revogar o Convênio/Confaz. Nesse caso, o Estado deficitário, sabendo da impossibilidade de revogar o Convênio/Confaz, revoga a legislação interna que efetivou a isenção prevista (e não criada!) no Convênio/Confaz. Os outros Estados e o Distrito Federal, contudo, podem perfeitamente continuar com suas legislações estaduais concessivas de isenção, porquanto o fundamento de validade (o Convênio/Confaz) continua válido e vigente. Se, por hipótese, tempos depois, interesse ao Estado que revogou a isenção voltar ao estágio isencional anterior, bastaria produzir norma interna reinstituindo-a. Ora, diante desse quadro, é mais do que razoável que um Convênio autorizando concessão de isenção tributária, o que implica redução de receitas, tenha sua aplicabilidade afastada por Lei Estadual, propiciando, assim, o acomodamento das pessoas políticas de direito constitucional no que pertine o cumprimento dos ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Consoante o parágrafo 1º do artigo 14, os incentivos fiscais de natureza tributária que exigem controle compreendem a anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter geral, alteração de alíquota e modificação da base de cálculo que importe em torná-lo menos oneroso e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

Assim, não se trata de toda e qualquer “renúncia de receita”, mas tão somente daquelas renúncias relacionadas aos incentivos enumerados no § 1º do artigo 14, que acabamos de mencionar.

Dentro da classificação que propusemos no presente trabalho, entendemos que o § 1º, do artigo 14 da LRF incluiu incentivos tanto de natureza tributária, em que é afetada a regra-matriz de incidência com real impacto no montante arrecadado a título de tributo, quando incentivos de natureza nitidamente financeira, como é o caso da anistia, remissão e subsídio.

451 A revogação de isenção de ICMS e a desnecessidade de Convênio/Confaz. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 106, jul. 2004, p. 89, grifos do autor.

É claro que, dentro do propósito estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, há a necessidade de estabelecer os requisitos para que uma eventual renúncia de receita não venha a comprometer o alcance da previsão orçamentária. No entanto, considerando a classificação apresentada no presente trabalho, se fôssemos considerar apenas os incentivos fiscais, não deveriam ser submetidos ao artigo 14 da LRF a remissão, a anistia e os subsídios.

Além disso, o conteúdo de renúncia utilizado pelo referido dispositivo legal causa certa confusão quanto ao emprego desse termo.

A renúncia, consoante definição bastante empregada no Direito Privado, pode ser definida como “ato por via do qual a parte se desposa, por sua exclusiva declaração de vontade, de direito ou vantagem que lhe pertence”.452 Assim, tomando-se por base este conceito de renúncia, fica evidente a confusão que poderá causar com o instituto da remissão, que, conforme já mencionamos, significa perdão, indulgência ou indulto que extingue a obrigação tributária com base em lei autorizativa, dada a indisponibilidade dos bens públicos, cujo direito subjetivo do credor de exigir a prestação desaparece, causando, também, o desaparecimento do dever jurídico do devedor.

Tanto a renúncia como a remissão podem trazer o mesmo conteúdo, é dizer, pressupõem a existência de um vínculo obrigacional que se extingue, por decisão do credor da obrigação, sem que a prestação seja concretizada.

No entanto, há que se elucidar e deixar evidente que, em se tratando de renúncia, essa relação ou vínculo obrigacional não é verificada, especialmente porque, em se tratando de renúncia fiscal, nem sempre existirá uma prévia relação de cunho obrigacional tributário de que abrirá mão o legislador.

As hipóteses em que essa relação obrigacional é preexistente ao ato da renúncia diz respeito, ao nosso ver, apenas aos casos de remissão e anistia. Assim, a renúncia, no sentido semântico adequado, apenas poderia atingir estes dois últimos casos.

Logo, há um evidente paradoxo: na classificação que apresentamos, apenas os incentivos fiscais é que poderiam ser objeto da limitação do artigo 14, sendo que os financeiros, como anistia e remissão não deveriam fazer parte desse rol. Por outro lado, analisando o aspecto semântico do termo renúncia, apenas remissão e anistia é que poderiam ser alvo específico do artigo 14.

452 RAO, Vicente. Ato Jurídico: Nocão. Pressupostos. Elementos essenciais e acidentais: o problema do

conflito entre os elementos volitivos e a declaração. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1981, p. 425.

Sabemos que os instrumentos legislativos muitas vezes vêm dotados de imprecisão quanto aos termos utilizados, dada a ausência de uniformidade dos membros que compõem o Poder Legislativo, em quaisquer de suas esferas, assim é que, afastando-se da questão semântica das expressões incentivos fiscais e renúncia, ponderamos, dentro do campo pragmático, que a renúncia de receita, em questão, tem a ver com renúncias relacionadas diretamente ao crédito tributário. Assim, restariam afastadas as espécies de remissão e anistia.

José Souto Maior Borges, após afirmar que o artigo 14 em comento institui normas gerais de direito tributário453, conceitua a renúncia de receita tributária como renúncia de crédito tributário, em razão do que os incentivos da Lei de Responsabilidade Fiscal mencionados no artigo 14 são tributários e atingem a relação tributária454. Todavia, inclui entre os incentivos fiscais figuras455 com que não concordamos, como visto no Capítulo 5.