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O significante-mercadoria e a reificação do laço social

Todo um universo subjetivo e, logo, discursivo, é construído pela negação do tempo de trabalho social pelo valor de troca da mercadoria. Contudo, a dialética da mercadoria em Marx vai além: “Quando no início desse capítulo [...] havíamos dito: A mercadoria é valor de uso e valor de troca, isso era, a rigor, falso. A mercadoria é valor de uso ou objeto de uso e “valor”” (Marx, 1988, p, 62). O que Marx quer fazer evidente, nesse momento de sua análise da forma mercadoria, é que o valor de troca também sucumbe à dialética, sendo contido e negado pelo significante “valor”.

Esse movimento se dá, pois, apagadas as condições sociais, à mercadoria não cabe outra coisa que não a troca. O ato de trocar, aparece simplesmente como confirmador de uma característica própria da mercadoria. No modo de produção capitalista, a mercadoria é o valor. O que mais representa a riqueza das nações senão seus produtos nacionais brutos, a “imensa coleção de mercadorias” (Marx, 1988, p. 45) que compõem a riqueza simplesmente quando produzidas, não quando efetivamente trocadas?

Com efeito, a propriedade de “ser equivalente” aparece como pertencente à mercadoria mesmo antes da sua relação de troca, como se essa valia estivesse no mesmo nível

200 A autonomização da mercadoria é tão fundamental para o capitalismo que Marx inicia O capital exatamente

por aí: pela análise da forma mercadoria. Como destaca Campregher (1993, p. 73), por assim fazer, Marx incorre (ou confirma), inicialmente, o efeito subjetivo de fazer do trabalho um simples mediador entre sujeito e objeto, uma vez que tanto a mercadoria como o valor aparecem de forma externada.

de suas propriedades físicas201. “A autonomia do sistema de diferenças necessariamente produz a aparência de que o valor é uma qualidade positiva das coisas e que independe dos sujeitos, ou melhor, elas mesmas são os próprios sujeitos” (Tomšič, 2015, p. 36)202. A lógica de

significação da mercadoria fica, então, assim estabelecida:

Esquema 4.11

O Esquema 4.11, acima, ilustra a lei de organização da ordem simbólica (S), a partir da assunção da mercadoria como significante mestre. Percebamos que o Saber demandado para dar sentido à mercadoria concebe o valor, qual definido por Marx, pela contenção e negação do valor de troca, dando privilégio simbólico àquele significante. O sujeito que é efeito desse discurso, assim, tem toda teia simbólica de determinação do laço social – de novo e mais intensamente - desmentida pelo movimento de contenção e negação dos conteúdos significantes da mercadoria, movimento esse que culmina, até aqui, na forma valor.

Fazer a mercadoria um valor imediato e fazer o vínculo social funcionar em torno dessa abstração, só podem se dar pela constituição de um espaço de sentido que renegue a anterioridade da troca na realização do valor mercadológico. E a negação dessa anterioridade da troca, por sua vez, deve conformar uma ordem simbólica que oculta a relação eventual de dois donos de mercadorias, evidenciando que “não é a troca que regula a grandeza de valor, 201 Žižek (1996, p. 14)

202 “The autonomy of the system of differences necessarily produces the appearance that value is a positive

mas, ao contrário, é a grandeza de valor que regula as relações de troca” (Marx, 1988, p. 65). Reparem que esse movimento implica na elevação da mercadoria ao lugar de unidade básica de valor e, logo, de medida de avaliação social.

Vejamos isso da seguinte forma. Toda mercadoria é um efeito de sentido vazio, negativo. Isso porque, à mercadoria só resta ser trocada por outra mercadoria, de modo que ela, antes da troca, já carrega, invariavelmente, a potência de ser outra. A gravidade dessa condição, no entanto, é evidenciada quando localizamos essa potência negativa da mercadoria no processo de reprodução social. Se aceitarmos o que foi aqui defendido - que no capitalismo os sujeitos só realizam sua condição mais original, a de trabalhadores, após a realização do fruto de seu trabalho -, podemos afirmar que os sujeitos poderão definir sua existência somente a partir das relações de troca que as mercadorias alcançarem realizar.

A coisa aparece como se os sujeitos, vazios de qualquer sentido, carregassem seus receptáculos de potência até o mundo das mercadorias e esperassem, com sua existência em suspenso, o que, dali, lhes restaria. E essa condição é total. Ela se estende para todas as pessoas desse laço social. Todos os carregadores de mercadorias têm em suas mãos essas potências negativas de sentido e, da mesma forma, todo fruto do trabalho é mercadoria no capitalismo.

Assim sendo, se a mercadoria aparece como condição de realização a posteriori, e tudo acaba reduzido a mercadoria, então o efeito de sentido produzido pelas diferenças mercadológicas surge como base para todo o efeito de sentido subsequente. Tudo deve ser representado pela mercadoria, como se ela fosse o significante. É em termos desses significantes-mercadoria que os sujeitos têm determinado as possibilidades de auferir sentido de si, do outro e de tudo mais no capitalismo. Temos, disto, mais uma condição dos sujeitos capitalistas:

Condição 12 – O significante-mercadoria e a reificação do laço social: O sujeito da

economia capitalista aparece como efeito do que uma mercadoria representa para outra mercadoria. Isso porque, no capitalismo, a mercadoria assume o lugar estrutural de valor vazio que aufere significado em sua relação com outras mercadorias. Trata-se, portanto, de

um sujeito reificado e que concebe seu devir a partir de um escorregar simbólico de mercadorias.

No quadro histórico em que as mercadorias se realizam antes dos sujeitos, constrói-se um arranjo simbólico que as posiciona como valores autônomos que parecem estabelecer, elas mesmas, interações sociais. É o “mundo das mercadorias” tantas vezes mencionado por Marx no primeiro capítulo de O capital, ou mesmo o “mercado”, qual entendido pela economia convencional. Nesse mundo, as mercadorias se relacionam como valores potenciais vazios, que estabelecem sentido na equiparação uma com as outras203.

Ocorre que, assim tomada, como um valor autônomo e precursor do sujeito, e como potência de sentido vazio, a mercadoria acaba por funcionar como se fosse significante. Com efeito, ela aparece como representante da materialidade dos significantes no capitalismo. Assim, sujeitos, objetos e terceiros têm seu espaço de sentido atravessado pela mercadorização. O devir do que viria ser o eu, o outro ocorre como um escorregar simbólico de mercadorias, numa reificação muito específica do laço social. A severidade dessa condição, vale dizer, é extremamente aprofundada pelo fato de a própria força de trabalho ser uma mercadoria.

Isso posto, os sujeitos capitalistas são aqueles que são representados de uma mercadoria para outra mercadoria. Quando esse sujeito diz “eu”, quanto diz “tu” ou quando diz “isso”, no capitalismo, há uma condição mercadológica envolvida nessas enunciações. Como vimos, essa condição é uma série de contenções e de negações de significantes, numa dialética que constrói, ex ante, todo o espaço de possibilidade do pensamento.

As marcas dessa forma de reificação não cansam de se fazerem nítidas em nossa sociedade. Elas compreendem o avançar mercadológico totalizante. Tudo, do parto à morte, se torna mercadoria. A arte, os filhos, a vida. E não somente porque as coisas entram em relações de compra e venda, mas, mais do que isso, porque elas assumem, mesmo, um lugar lógico de mercadoria.

E ao dizer que tudo no discurso capitalista tem de assumir o lugar lógico de mercadoria, colocamos em questão diversos elementos narrativos da nossa sociedade atual. Os 203 Essa condição de valor da mercadoria, que concebe o que Marx denomina de “forma de valor total” e de

conceitos de capital humano e empreendedorismo de si; os fundamentos do feminismo liberal e da sustentabilidade como empreendimento, as relações conspícuas nas redes sociais, o

business as usual como lógica da saúde, da educação, do direito penal ou das relações

amorosas. Tudo aponta para esse arranjo simbólico em que os significantes são materialmente conformados como mercadoria.