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Não à toa tomaremos a mercadoria como significante que, em sua demanda de sentido, deflagra a lógica do discurso capitalista e a subjetivação que ele obriga. Essa decisão, na verdade, parece-nos ter sido tomada, antes, pelo próprio Marx, que inicia sua investigação do capitalismo, em O capital, pela análise, justamente da forma mercadoria. A mercadoria aparece ali como algo que demanda significação. Afinal, a resposta do “o que é mercadoria” 185 Há duas versões preliminares do texto subsequente. A primeira dela foi esboçada em Silva, D. (2015), onde

fazemos duas leituras da lógica de significantes da mercadoria, a primeira delas pela dialética marxiana e a segunda incluindo considerações psicanalíticas (também lacanianas) a esse movimento dialético. Uma segunda versão, que além de preliminar é também bastante reduzida, consta em Silva, D (2019). O interessante dessa última versão é que ali colocamos mais enfoque psicanalítico em nossa leitura vis-à-vis o enfoque de Economia Política.

não se mostra uma resposta simples. Para dar conta dessa tarefa, o que Marx empreende é uma verdadeira perscrutação da materialidade da mercadoria, é a localização histórica dessa forma elementar. Segundo Tomšič (2015, p. 9)186:

A dialética do Capital suficientemente mostra que o caráter revolucionário da crítica não está na promessa de uma determinada visão de mundo, mas no seu método, na análise das relações estruturais que sustentam a aparente universalidade da forma mercadoria e o fantasmático vitalismo das abstrações capitalistas.

Para, desde já, aproximar a lógica da investigação marxiana da lógica proposta nesse trabalho, podemos questionar: que cadeias de significantes que intuitivamente usaríamos para dar sentido à mercadoria? De forma representativa, poderíamos fazer os seguintes significantes como centrais para tanto:

Esquema 4.4

mercadoria {bem, utilidade, compra, venda, consumo, gozo}

De alguma forma, a cadeia de significação acima cumpre sua função. Todavia, Marx não fornece uma resposta simplesmente intuitiva à questão de o que é mercadoria. Antes, o método de Marx o leva a ampliar a pergunta para algo da seguinte forma: e antes de tudo, o que é mercadoria? A resposta que advém daí é a de que

A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estomago ou da fantasia, não altera nada na coisa (Marx, 1988, p. 45).

Percebamos que esse “antes de tudo” de Marx, é lógico, não histórico. A condição de ser um objeto de propriedades passíveis de satisfazerem necessidades humanas é uma condição física do que virá a ser mercadoria, sejam quais forem as propriedades e a origem das necessidades. A condição histórica da mercadoria ocorre quando uma determinada organização social passa a prover, de uma forma específica, essas “coisas” que nos abastecem e nos 186 “The dialectics of Marx's Capital sufficiently shows that the revolutionary character of critique is not in the

promise of such a worldview but in its method, in the analysis of structural relations that sustain the apparent universality of commodity form and the fantasmatic vitalism of capitalist abstractions.”

reproduzem enquanto pessoas. Então, na análise da forma mercadoria, temos de assumir que ela deve valer para o uso, isso é, ter valor de uso. Assim, o sentido da mercadoria, fica inicialmente estabelecido em termos lógicos, por:

Esquema 4.5

mercadoria {valor de uso}

Sobre o valor de uso, é importante denotarmos algumas condições: primeiro, trata- se de uma característica qualitativa e, segundo, esse valor se realiza no ato humano de usufruir. A primeira característica do valor de uso implica dizer que ele não expressa uma medida de valia, isto é, valor de uso ser qualitativo significa que, nesse sentido, mercadoria é binária: ela tem ou não valor de uso. Valor de uso poderia ser chamado, sem maiores prejuízos, de

serventia. A segunda característica, por sua vez, representa o devir implicado nesse valor de

uso, ou seja, de que esse valor se realiza quando historicamente se estabelece um usufruto à “coisa”, quando ela é atrelada a alguma necessidade, seja a mais básica (a do estômago) ou a mais abstrata (a da fantasia).

Ocorre que, em sua forma social, a mercadoria não é somente valor de uso. Isso porque, um bem ser mercadoria significa que ele porta aquelas condições historicamente determinadas: ele é produzido por trabalhadores que, por não possuírem meios de produção, se submetem ao trabalho assalariado e mais e mais dividido. Os bens produzidos por esse arranjo social não se destinam diretamente ao uso do trabalhador. Eles se destinam à troca e, logo, devem conter algo que valha para tanto: devem ter valor de troca. Portanto, a mercadoria, em sua lógica, significa:

Esquema 4.6

mercadoria {valor de uso ; valor de troca}

Caracterizemos, então, o valor de troca: Primeiro, e de maneira importante, o valor de troca não é um atributo físico do bem, mas uma condição lógica e social da mercadoria.

Enquanto valor de troca, a mercadoria é concebida em um arranjo subjetivo de sociabilidade. Uma mercadoria terá valor de troca na medida em que, nas mãos daquele que a porta, ela carregar a potencialidade de ser desejada por terceiros. Isso é, somente sob condição de o outro desejar um bem é que esse bem pode ser valor de troca e, logo, se fazer, de fato, mercadoria. Nesses termos, a troca de mercadorias compreende o desejo mútuo e contíguo pelo objeto alheio, de modo que a troca se realiza nessa coincidência social. Enquanto fruto do trabalho, a mercadoria ata a lida de um aos desejos do outro.

Em segundo lugar, o valor de troca é uma condição quantitativa. Ela compreende os termos pelos quais os bens são trocados: “1 quarter de trigo, por exemplo, troca-se por x de graxa de sapato, ou por y de seda, ou por z de ouro, etc.” (Marx, 1988, p. 46). A mercadoria ser um valor de troca, então, significa que ela estabelece uma relação quantitativa entre os bens; em que um se distingue para, socialmente, manifestar o valor do outro.

Tendo caracterizado elementarmente o valor de troca enquanto significante da mercadoria, temos de nos perguntar: como o valor de uso e o valor de troca interagem no sentido da mercadoria? Para responder essa questão, propomos, primeiro, analisar a ordem em que elas aparecem nas relações sociais e, em seguida, perscrutar o caráter da diferença entre essas formas.

Quanto a ordem de determinação entre valor de uso e valor de troca, percebamos que a essência do fruto do trabalho é o de ser, antes de mais nada, valor de uso. Ocorre que na organização social capitalista os bens são produzidos para serem mercadorias e, logo, para que sejam trocados. Significa dizer que o valor de troca se realiza antes do valor de uso de um bem, fazendo com que a mercadoria, em sua aparência, signifique, primeiro um valor de troca e, depois, um valor de uso. Em termos lógicos, nossa cadeia de significação deve, então, ser assim ordenada: primeiro valor de troca, depois valor de uso.

Esquema 4.7

mercadoria {valor de troca ; valor de uso}

Ocorre que essa ordem é simbólica, não concreta. Pois, como vimos, um bem tem sua condição de serventia determinada por seus atributos físicos. A condição de uso antecede,

em essência, a de troca, embora não seja assim que essas características apareçam em uma sociedade produtora de mercadorias.

Mas esse ordenamento não é simplesmente o arranjo simbólico de significantes independentes. Na verdade, o valor de uso é a base e a possibilidade do valor de troca. Ou seja, um bem só pode ter valor de troca se possuir valor de uso a outra pessoa. Sem que possua alguma serventia, não há como a troca se realizar. Nesse sentido, o valor de troca contém o valor de uso, de modo que a lógica de significação da mercadoria é melhor representada por:

Esquema 4.8

mercadoria {valor de troca valor de uso}⇔ valor de uso}

Todavia, a condição de troca não somente contém a de uso, senão que, contraditoriamente, a nega187. Para fazer clara essa relação dialética, adentremos na análise da diferença entre valor de uso e valor de troca188. Com vimos, o valor de uso é uma característica

que advém da qualidade física do bem. Diferentemente, o valor de troca pressupõe os termos quantitativos pelos quais a troca se efetiva. O sentido da mercadoria, então, deve equiparar quantitativamente mercadorias que precisam ser diferentes em suas qualidades. Nesses termos, se a troca ocorre é porque as diferenças contidas nas mercadorias foram renegadas a um resto não simbolizado, de modo que, assim, uma igualdade possa se estabelecer. Lacan parece bem identificar esse resto, quando, em seu seminário de 1957-1958, faz referência exatamente à forma particular de valor de troca da mercadoria:

Marx formula a proposição de que nada pode instaurar-se das relações quantitativas do valor sem a instituição prévia de uma equivalência geral. Não se trata simplesmente de uma igualdade entre tantas e tantas varas de tecido. É a equivalência tecido-roupa que tem de ser estruturada, ou seja, que

187 Utilizaremos o símbolo ⇔ valor de uso} (se e somente se) para representar o movimento de contenção e negação do

primeiro termo pelo segundo.

188 Segundo Tomšič (2015, p. 6, nossa tradução), quando “Marx parte da lacuna [gap] entre o valor de uso e o

valor de troca que determina o duplo caráter da mercadoria – ele, de fato, antecipa a principal realização do estruturalismo: o isolamento do sistema de diferenças”. Tomšič busca, em Saussure, reforçar sua proposição do caráter estrutural das diferenças estabelecidas na dialética de O capital. Ali, Tomšič identifica uma possível relação entre a Economia Política e a linguística demarcando que ambas as disciplinas podem ser consideradas ciências do valor. A despeito de considerarem o valor de forma distinta, Saussure apontaria para um mesmo ponto de partida de Marx: onde há diferença, há valor. Dessa forma, o isolamento do valor estabelecido de uma distinção entre dois elementos já remete a uma autonomia do sistema de diferenças. Essa é a chave de uma leitura estruturalista de O capital (Tomšič, 2015, p. 27, nossa tradução).

roupas possam representar o valor do tecido. Não se trata mais, portanto, da roupa que vocês possam usar, mas do fato de que a roupa pode tornar-se o significante do valor do tecido. Em outras palavras, a equivalência necessária logo no início da análise, e sobre a qual se assenta o chamado valor, pressupõe, por parte dos dois termos em questão, o abandono de uma parcela muito importante do seu sentido. (Lacan, 1999, p. 86, apud Oliveira, C. 2008, p. 12).

Reparemos que a transformação de qualidades distintas em quantidades equiparáveis não é possibilitada por uma condição intrínseca dos objetos. Ela é, isso sim, um movimento de abstração. Sendo assim, há a exigência de uma configuração subjetiva particular para essa abstração se realizar. Podemos dizer que 1 quarter de trigo é igual a x de graxa de sapato porque existe uma modalidade específica de negação das diferenças e de estabelecimento de equivalências no capitalismo, modalidade essa que exige uma redução da importância simbólica das diferenças qualitativas e a elevação dos termos abstratos que proporcionam o estabelecimento de igualdade quantitativas. O caráter de negação que opera a lógica capitalista, como já introduzimos, é o fetiche: a negação pelo desmentido, o contorno da diferença. É sob tais condições que o arranjo significante por trás da mercadoria promove quantidades em prejuízo de qualidades.

Esquema 4.9

O Esquema 3.9 representa esse arranjo significante do sentido da mercadoria. Nesse esquema, a ordem simbólica (S) aparece como aquela na qual o significante mestre (mercadoria) demanda sentido dos significantes que compõem o que chamamos, com base em Lacan, de Saber desse discurso ({valor de troca valor de uso}). O Saber capitalista, assim, é⇔ valor de uso} um saber comandado pelo movimento de contenção e negação significante que o valor de troca exerce sobre o valor de uso. A partir dessa estrutura, o sujeito ($) surge como efeito.

Nesse ponto da nossa análise, uma terceira condição do sujeito capitalista se revela:

Condição 3 – A quantificação das qualidades e a contabilização da experiência. Embora a

troca tenha como base e possibilidade valores de uso diferentes, os significantes que estabelecem essas diferenças devem ser subordinados, devem ter sua importância subsumida para aqueles que avaliam os bens de forma quantitativa. Os sujeitos do laço social capitalista têm de ter essa marca de subjetivação: uma forma particular de quantificar e subordinar

qualidades. Essa marca produz os sujeitos em suas relações específicas com os objetos, as

necessidades e as medidas de valia, etc.

Com efeito, se não houvesse as condições históricas e materiais conformando o caráter da abstração necessária para o intercâmbio de desiguais, se não houvesse uma forma social específica de negligenciar as diferenças dos produtos trocados, os trocadores se deparariam com a impossibilidade da formulação dos termos de troca ou com a estranheza de assumir equivalências entre produtos tão desconformes. A troca de desiguais requer sempre uma negação das diferenças, negação essa que deve ser, de alguma forma, operada simbolicamente.

O resultado desse movimento dialético é a legitimação subjetiva da narrativa de padronização e de homogeneização numérica da experiência no capitalismo. Como efeitos desse discurso, somos sujeitos que, no limite, sempre precisam saber um “quanto”, que, inescapavelmente, necessitam de um padrão contábil para conceber o sentido do que quer que seja.

As pessoas grandes adoram os números. Quando você fala a elas de um novo amigo, elas nunca vão perguntar sobre o essencial. Elas nunca dirão: “Qual o som da voz dele? Quais são os jogos que ele prefere? Ele coleciona borboletas?” Elas vão lhe perguntar: “Quantos anos ele tem? Quantos irmãos? Quanto ele pesa? Quanto ganha seu pai?” Somente assim elas creem conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: “Vi uma bela casa de tijolos rosas, gerânios na janela e pombas no telhado...” elas não conseguem, de modo nenhum, imaginar essa casa. É preciso dizer-lhes: “Vi uma casa de cem mil francos". Então elas exclamam: “Que beleza!”.189

Essa passagem de O pequeno príncipe nos faz experimentar essa quantificação cotidiana, essa demanda por saber “quanto” – quantos likes, quantos filhos, quanto custa, quanto tempo, quanto se deseja. Esse “quanto” é um elemento crucial da articulação da relação entre o sujeito e seus objetos no laço social capitalista. Nos seus termos, Pacheco Filho identifica no valor de troca essa condição que estamos propondo. Ele a denomina de “valor- desejo”:

“o valor-de-troca surge na cena histórica como um modo particular de se conseguir um poderoso e inédito instrumento de articulação, fixação e padronização da “desejabilidade” por um objeto, para os sujeitos de uma sociedade/cultura: talvez pudéssemos nos referir a isso como a fixação/padronização/homogeneização do “valor-desejo” de um objeto, para os sujeitos de uma sociedade/cultura” (Pacheco Filho, 2009, p. 157).

Esse processo de quantificação da relação objetal, vale dizer, não se restringe aos bens, senão que também se estende à relação que o sujeito estabelece com o outro e consigo mesmo. A padronização contábil resultante da dialética do valor de uso para o valor de troca nos convoca a mediar tudo numericamente, a reduzirmo-nos ao cálculo das horas, dos ganhos, das posses, de tudo que, de alguma maneira, possa estabelecer uma relação de intercâmbio, de modo que a vida parece sempre passível de ser comandada por um cálculo de esperança ou de custo de oportunidade.

Assim, temos que, na ordem simbólica na qual a mercadoria é um significante mestre - por força das condições históricas e materiais –, os sujeitos serão aqueles que são representados do valor de troca para o valor de uso, em uma relação em que o primeiro contém e nega o segundo. A partir dessa dialética, a discursividade capitalista implica o rebaixamento abstrato das condições qualitativas em prol do estabelecimento de uma medida quantitativa que permita a troca de desiguais. O sujeito é fruto dessa forma de subjetivação. Ele é condicionado, de antemão, por esse devir simbólico.