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Uma solução frustrada: a Economia Institucional

Vamos propor uma maneira encaminhar as contradições desse individualismo ultraliberal hayekiano, que acaba por apresentar um indivíduo de alguma forma dividido. Ora, se o humano é um animal seguidor de regras e conformado pelas instituições que surgiriam espontaneamente, então permitamo-nos pensar que a própria ideia de si como um indivíduo é uma dessas regras, tradições e convenções sociais que as pessoas adotam sem maior razão, simplesmente porque não são contrários a ela. Por esse caminho, como deve ter ficado claro, retomamos nossa proposição de que o indivíduo é uma instituição da sociedade capitalista. E, é óbvio, isso significaria uma dobra impraticável à integridade do pensamento de Hayek, pois romperia com seu princípio básico de individualismo, caminhando no sentido do que ele chamava de “socialismo”.

Pois bem, se não quisermos aceitar prontamente uma concepção amplamente social – para não dizer materialista – do que quer que seja a pessoa em sua forma de existência, temos um caminho alternativo nas ciências econômicas que se articula com a aporia que Paulani identifica no individualismo hayekiano. Trata-se da Economia Institucional.

De fato, a Economia Institucional busca, mesmo, absorver ou intermediar abordagens de individualismo e de holismo72, de modo a propor um duplo sentido de determinação entre

indivíduos e instituições.

As leitoras e leitores mais afeiçoados com essa corrente de pensamento devem ter sentido, aliás, algumas notas dela na concepção de Hayek sobre como interagem indivíduo e sociedade. Passa muito ao largo do propósito desse trabalho analisar possíveis influências ou interlocuções entre institucionalistas e o pensador austríaco73. Contudo, “regras”, “costumes” e

“convenções” - isso é, essas formações sociais às quais o indivíduo recorreria para acomodar sua complexidade e seu conhecimento limitado – são conceitos fundantes da Economia Institucional.

Vejamos algumas definições mais notáveis sobre o que seriam as instituições. Segundo Douglas North, instituições são as “regras do jogo” (North, 1990), ou, de forma mais precisa, seriam “as restrições humanamente concebidas que estruturam a interação política, econômica e social” (North, 1991, p. 97)74. Ainda, instituição é aquilo que “conota um modo

de pensamento ou ação de alguma prevalência ou permanência, que está incrustado nos hábitos de um grupo ou nos costumes de um povo” (Hemilton, 1932, p. 84, apud Neale, 1987, p. 1178)75, de acordo com Walton Hemilton. “Instituições são compostas por elementos

regulativos, normativos e culturais-cognitivos que, junto com as atividades e recursos associados, proporcionam estabilidade e significado à vida social” (Scott, 2013, p. 56)76, para

William Scott. Há também a concepção de Geoffrey Hodgson, para quem as instituições são “sistemas de regras sociais estabelecidas e prevalecentes que estruturam as interações da sociedade” (Hodgson, 2006, p. 2)77.

Dentre tantas definições, duas outras nos chamam a atenção, de modo que já foram 72 Ver Rutherford (1994).

73 Embora Rutherford argumente que a New Institutional Economics, literatura institucional de maior prestígio

no mainstream econômico, tenha emergido de fontes neoclássicas, da teoria dos jogos e da Escola Austríaca, tendo Hayek exercido importante papel no que concerne à essa última fonte. Ver Rotherford (1994, p. 2 e 3).

74 “Institutions are the humanly devised constraints that structure political, economic and social interaction”. 75 “connotes a way of thought or action of some prevalence or permanence, which is embedded in the habits of

a group or the customs of a people”

76 “Institutions comprise regulative, normative, and cultural-cognitive elements that, together with associate

activities and resources, provide stability and meaning to social life”.

77 “we may define institutions as systems of established and prevalent social rules that structure social

por nós aqui utilizadas para propor a noção de pessoa como “um indivíduo” como uma instituição moderna. São elas a de David Dequech78, que parece oferecer a definição mais

ampla de todas ao propor instituições como “padrões de pensamento e/ou comportamento socialmente compartilhados” (Dequech, 2009, p. 71)79; e aquela que acreditamos ser a mais

transformadora, a de Thorstein Veblen, para quem:

Em substância, são as instituições hábitos mentais prevalecentes no tocante a relações particulares e funções particulares do indivíduo e da comunidade (…).

(…) Essas instituições assim herdadas, esses hábitos mentais, pontos de vista, atitudes e aptidões mentais, ou seja lá o que for, são, portanto, um elemento conservador, e esse é um fator de inércia social, de inércia psicológica, de conservantismo. (Veblen, 1983, p. 88)

Seja qual for, nenhuma dessas definições é incompatível com a ideia de que instituições são regras e convenções não completamente redutíveis à um saber absolutamente racional, como queria Hayek. De fato, é seguro identificarmos como denominador comum, nesses casos, o posicionamento crítico de que os fatos humanos não podem ser compreendidos tomando as pessoas como consciências livres e átomos de racionalidade, derivando a sociedade pela simples soma dessas entidades homogeneamente bem-comportadas. Os institucionalistas, pelo contrário, tendem a defender, qual Hayek, a existência prévia de instituições (como a linguagem, a moeda, o Estado) que moldariam a mentalidade e o comportamento dos indivíduos.

Com efeito, em “Instituições: questionando a divisão micro-macro da economia e de seu ensino”80, Dequech busca defender que as instituições não se reduzem ao individualismo metodológico de raízes microeconômicas, tampouco ao determinismo holista por vezes observado na macroeconomia, de modo que a economia institucional mereceria todo um status separado de estudo. O cerne do argumento de Dequech é o de que:

As instituições precisam dos indivíduos para existirem, se reproduzirem ou serem transformadas. É a interação entre a estrutura institucional (e, mais amplamente, social) e a agência individual e coletiva que está no centro da explicação dos processos de construção, estabilidade e mudança institucional.

78 Agradeço especialmente às aulas do Prof. Davi Dequech de onde provém a indicação da literatura aqui

citada.

79 “socially shared patterns of behavior and/or of thought” 80 Dequech (2013)

Esses processos, por sua vez, repercutem de novo, de modo reiterativo, sobre o comportamento e o pensamento dos indivíduos. (Dequech, 2013, p. 21) Assim, por um lado, as mudanças institucionais ocorreriam como produto da ação dos indivíduos, embora, por outro, a existência de instituições conformaria as formas dos indivíduos pensarem e se comportarem81. Noutro trabalho82, Dequech apresenta, vale dizer, as

formas pelas quais as instituições agiriam sobre a esfera individual. Seriam três papeis exercidos pelas instituições nesse sentido: o papel restritivo, de delimitar o espaço de pensamento e comportamento dos agentes; o papel cognitivo, influenciando a forma como os indivíduos selecionam, organizam e interpretam informações; e, por fim, e pouco desenvolvido pela literatura, o papel emocional, que representaria o poder das instituições de induzir o estado emocional das pessoas.

De fato, nesses termos – e no que pese todas as distinções entre a velha e a nova economia institucional83 -, a abordagem institucionalista parece, ao menos, oferecer um avanço

potencialmente crítico em relação à noção de pessoa como indivíduo livre, autônomo, independente e anistórico. Contudo, o potencial dessa crítica é limitado e, não à toa a versão mais notável e influente dessa abordagem, a Nova Economia Institucional - New Institutional

Economics (NIE) -, é aquela que recai no quadro teórico da escolha racional ou, no máximo,

no individualismo cognitivista da economia comportamental, ganhando prestígio com suas explicações sobre como, quando e por quê os indivíduos desviam da concepção padrão de racionalidade bem-comportada.

A saída para essa limitação da economia institucional, e o que aqui defendemos, é a sua radicalização, é tomar as instituições para além do que até então foi feito e conceber o próprio indivíduo, enquanto noção de pessoa, como uma instituição e não como uma amostra individual da espécie humana. Pensemos nesses termos a seguinte afirmação de Dequech:

Ao mesmo tempo, o estudo das instituições pode nos ajudar a entender porque situações econômicas muitas vezes adquirem aos olhos das pessoas – agentes econômicos e/ou acadêmicos – a aparência de naturalidade ou inevitabilidade ou são tomadas implicitamente como dadas, de modo que

81 Hodgson (2000, p. 325), exemplarmente, defende a possibilidade de se examinar as dependências entre

indivíduo e instituição tanto por sua “upward causation”, quando indivíduos criam e alteram instituições, quando pela “downward causation”, quando as instituições moldam e restringem o indivíduo.

82 Dequech (2011, p. 607 e 608) 83 Ver Rutherford (1994)

alternativas existentes ou concebíveis são simplesmente ignoradas. (Dequech, 2013, p.14)

É inequívoco que até então a Economia Institucional tenha caído na armadilha que ela própria denuncia. Ora, não existem indivíduos e instituições, na medida em que o próprio indivíduo é uma instituição. E não avançar seu conceito de instituição a tal profundidade, mantém a Economia Institucional alheia a essa institucionalidade fundamental, o que limita extremamente seu horizonte de análise e transgressão. Essa crítica, claro, acaba por ser significante sobretudo para a chamada Velha Economia Institucional - Old Institutional

Economics (OIE) -, versão original e mais contestadora do neoclassicismo econômico.

Segundo Hodgson, aliás, a distinção principal que distingue a OIE e a NIE é exatamente o fato daquela aceitar a seguinte proposição:

A noção de agente individual como um maximizador de utilidade é considerada como inadequada ou errônea. O institucionalismo não toma o indivíduo como um dado. Indivíduos são afetados por suas situações institucionais e culturais. Consequentemente, indivíduos não simplesmente (intencionalmente ou não intencionalmente) criam instituições. Por meio de “causação reconstrutiva descendente” instituições afetam indivíduos de maneiras fundamentais (Hodgson, 2000, p. 318)84.

É de se assumir que, dentre os velhos economistas institucionais, desde Veblen, a noção de indivíduo não é dada, “mas pode ser reconstituída por instituições” (Hodgson, 2000, p. 323)85. Nas versões mais extremas da OIE, como indica Davis, o indivíduo aparece mesmo

em termos funcionalistas, tendo seu comportamento totalmente explicado histórica e socialmente por leis, funções e propósitos que não são resultados pretendidos ou intencionais de suas decisões individuais86. Aparentemente, aquele que chegou mais próximo de conceber

que o indivíduo, enquanto noção de pessoa, é uma instituição foi Commons, quando declara que “o indivíduo com o qual estamos lidando é uma Mente Institucionalizada” (Commons, 1964, p. 3 apud Hodgson, 2000, p. 324)87.

84 “The notion of individual agent as utility-maximising is regarded as inadequate or erroneous.

Institutionalism does not take the individual as given. Individuals are affected by their institutional and cultural situation. Hence individual do not simply (intentionally or unintentionally) create institutions. Through “reconstructive downward causation” institution affect individuals in fundamental ways”

85 “but can be reconstituted by institutions”. 86 Davis (2003, p. 118)

Mesmo John Davis, após uma extensa análise crítica da noção de indivíduo na teoria econômica, acaba por propor uma (interessante) concepção de indivíduo como

socialmente incorporado88 que, como o próprio nome indica, não rompe com a

institucionalidade dessa noção de pessoa. E esse rompimento não é só nominativo. Embora Davis lance mão de uma série de abordagens teóricas (inclusive a institucionalista) para propor sua concepção de indivíduo nos quadros da mutualidade entre agência e estrutura, ela acaba por defender que o indivíduo (o agente) é capaz de influenciar a estrutura por meio de um exercício socialmente independente de autoavaliação89. Significa que Davis concebe a

possibilidade de uma modalidade específica de comportamento que não poderia ser reduzida a condicionalidades sociais90.

O esforço de Davis e da Velha Economia Institucional parecem estar ainda cerceados pelo mandamento de conceber o indivíduo nos moldes cartesianos. De fato, as condições de internalidade subjetiva e externalidade objetiva, de sujeito consciente e objeto de conhecimento, aprisionam até mesmos essas abordagens críticas ao individualismo liberal. O indivíduo parece sempre aquilo que resiste nas narrativas, o que sempre sobra nas análises, o que, no limite, não cede de falar de um lugar de integridade e de autonomia. Por isso a saída por nós proposta é a da radicalização dos marcos da Economia Institucional, ou seja, a de tomar mesmo a nossa concepção de si e do outro enquanto indivíduos como uma instituição funcionante do laço social.

Temos de admitir, no entanto, nossa crença de que essa radicalização seria, mesmo, uma peste ao pensamento institucional, como, a fortiori, ela também o seria ao individualismo da crítica hayekiana. Parece que, frente a essa ferida narcísica, seria necessário buscarmos novas formas de compreensão de si e do outro, formas que rompam de fato com o indivíduo, ao invés de procurarmos maneiras de dividir esse indivisível em alguma instância social. Nossa formalização de sujeito, levada à frente no próximo capítulo, intenta contribuir com tal imperativo.

88 Davis (2003, p. 127) 89 Davis (2003, p. 128) 90 Davis (2003, p. 128)