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Na nossa busca por uma abordagem de sujeito histórico e materialmente determinado, há muito que ainda a explorar na sentença de Descartes. Vamos insistir, portanto, no cogito cartesiano: cogito ergo sum. Lembremos que “Penso, logo sou” articula aquela dicotomia entre interno e externo, ou entre sujeito e objeto. O pensamento, aí, funda o sujeito como entidade livre. Livre para duvidar do outro e fazer dele um objeto de inspeção, inspeção essa que só é possível na medida em que há uma distinção, uma diferença previamente estabelecida entre sujeito e objeto.

Pois bem, tal dicotomia entre sujeito e objeto é uma questão que está nas bases da busca do conhecimento e da verdade pelo pensamento ocidental. Nesse sentido, para a tradição aristotélica, a verdade sobre um objeto se identifica como ausência de contradição: “Se A é igual a A, não pode ser igual a B ou a qualquer não A” (Sader, 2007, p. 9). Essa lógica, chamada de lógica da identidade (ou lógica formal), alcança os dias atuais como sendo um dos fundamentos mais difundidos da realidade empírica, fazendo, assim, da contradição, um sintoma de falsidade.

Hegel125, todavia, propõe romper com essa norma elementar. De fato, Hegel

concebe na contradição o movimento essencial, entendendo-a como dinâmica real dos fenômenos. Nesses termos, a dicotomia clássica sujeito-objeto passa a ser posta em questão. Se em Descartes essa dicotomia era condição para a reflexão epistemológica e, logo, para a compreensão do humano no mundo, a partir de Hegel essa condição é problematizada. Vejamos, sucintamente, a direção que Hegel nos aponta, baseando-nos sobretudo na apresentação feita por Emir Sader126 em A Ideologia Alemã.

No cogito cartesiano, o sujeito, feito consciência livre, é capaz de se separar de seus objetos e submetê-los ao escrutínio da razão. Em Hegel, por sua vez, “[o] pensamento atinge justamente o que era assumido como um dado da realidade: a separação – contraposição ou reencontro – entre sujeito e objeto” (Sader, 2007, p. 10). A diferença entre sujeito e objeto 125 A importância de Hegel na nossa perscrutação de uma abordagem materialista de sujeito nos é importante

não só por ter sido uma das principais influências filosóficas de Marx, mas também pelo fato de seu pensamento ter atravessado de forma indelével a teoria lacaniana. Assim, temos em Hegel um ponto (crítico) de encontro entre nossos dois principais corpos teóricos. Sobre a importância de Hegel para Lacan, ver Roudinesco e Plon (1998, p. 447).

deixa, aí, de ser uma assunção lógica, passando-se a buscar as razões pelas quais sujeito e objeto aparecem como diferenciados e contrapostos. Assim, a garantia de veracidade do conhecimento não se faz mais do afastamento entre o sujeito e a coisa.

No centro do que antes era, então, uma condição epistemológica para o adequado exercício da razão, insere-se, a partir de Hegel, um componente crítico, advindo exatamente do que é negligenciado quando se separa o sujeito do conhecimento e objeto a ser conhecido. A “ilusão do conhecimento” – o que Marx e Hegel cunharão de “ideologia” - é o princípio do pensamento hegeliano de que a ilusão ocorre pela assunção da coisa a partir da sua forma de aparição ao sujeito:

O mundo que nos aparece sob a dicotomia entre sujeito e objeto, entre subjetividade e objetividade, tem de ser desvendado nas suas raízes, para compreendermos o porquê dessa cisão, enquanto as ilusões mencionadas optam por um dos dois polos e os absolutizam. A apreensão da verdade do real consiste justamente na explicação da forma pela qual o real se desdobra em sujeito e objeto (Sader, 2007, p. 11).

Assim, a novidade do pensamento de Hegel, de sua dialética, é a de questionar a própria concepção de objetividade, como advinda da razão de um sujeito isento e desprendido. Nesses termos, temos a distinção entre o que seria a consciência em si - aquela que avança sobre o mundo, entendendo-o como um objeto separado e que não se reconhece a si mesma, como consciência parte do mundo – e a consciência para si – que retoma a unidade do mundo por incluir-se como parte, ela mesma, desse mundo (Sader, 2007, p. 12). É da diferença radical entre essas duas formas de consciência que aparece o sujeito hegeliano: ele é uma “indeterminação substancial, é aquilo que aparece como negatividade” (Rotta, 2008, p. 26, grifo do original):

O sujeito, não obstante, é o nome do movimento de pôr um outro dentro

de si, no interior de si mesmo e ainda conservando-se como identidade.

Sujeito é o movimento de internalizar a oposição. Sujeito é, acima de tudo, um conceito relacional e não-solipsístico, já que traz em si mesmo um outro. Este portar um outro em-si-mesmo é condição para que seja sujeito, para que seja o fundamento das operações racionais” (Rotta, 2008, p. 33, grifos do original)

Com efeito, o sujeito que queremos propor - avançando a partir de Hegel - se estabelece como um lugar vazio, como pura negatividade. Dessa forma, a objetificação do

sujeito só pode ser um ato histórico e, logo, material. Assim pensado, o sujeito rompe com o dualismo cartesiano entre o interno e o externo127.

Dessa discussão, surge uma entidade importante: o eu. Para fazer esse eu saliente, reescrevamos o cogito como “eu penso, logo eu sou”. Ora, o eu demarca uma relação do sujeito consigo mesmo, de um sujeito que faz de si mesmo objeto para enunciar que “eu penso, logo eu sou”. Se nos permitirmos conceber, a partir do cogito, um sujeito que questiona a realidade de si, podemos vislumbrar que esse questionamento pode ser posicionado de três diferentes formas, conforme faz Perez128. Vejamos:

Em primeiro lugar, temos o que é mais típico das investigações científicas da realidade: assume-se o pensamento como fato empírico e aceita-se o pressuposto de que esse pensamento representa o eu. A partir daí, investiga-se as leis ou a lógica pelas quais essa cognição se processa. Tomada assim, a realidade do eu é entendida a partir dos modelos e mecanismos mentais, qual entende, por exemplo, o cognitivismo, inclusive em sua versão econômica, a Economia Comportamental. O que representaria essa forma de questionamento da realidade de si é a seguinte construção: se eu existo e existo como consciência livre, então a

maneira como eu penso significa o que eu sou.

Em um tempo lógico anterior, a segunda forma de questionamento da realidade de si, aquela mais própria à filosofia, interroga o que se entende tanto pela realidade do pensamento quanto pela consciência de si, tomando essa realidade como objeto a ser questionado. O eu, aí, é, em geral, um sujeito lógico, ideal, que suporta as condições de realidade levantadas pela reflexão. Essa também é a forma de aparecimento mais comum do sujeito da ortodoxia econômica, seu agente representativo.

Por fim, em terceiro lugar, o questionamento da realidade de si pode partir, antes, da pergunta sobre quem é “eu”, e como “eu”, enquanto sujeito, está implicado em tais reflexões. Essa posição, percebamos, instala uma redundância. Ela solda o sujeito ao objeto de reflexão, dissolve a dicotomia sujeito/objeto desde a própria indagação sobre si. É como se nos 127 Essa abordagem parece romper também com outro dualismo, aquele do entre agente e estrutura. Segundo

Laclau (2003, p. 18, grifos do original, nossa tradução): “O debate tradicional em torno da relação entre agente e estrutura fica, assim, fundamentalmente deslocado, uma vez que o tema já não é um problema de

autonomia, de determinismo versus livre arbítrio, em que dois entes plenamente constituídos como

“objetividades” se limitam mutuamente. Pelo contrário, o sujeito surge como resultado do fracasso da substância em processo de autoconstituição.

perguntássemos: Em nome de que e a partir de que lugar eu questiono a realidade de “eu”. Essa reflexão propedêutica é realizada, assim, por Perez (2016, p. 165, grifo do original):

O sujeito que se pergunta sobre a realidade está contido por aquilo sobre o qual pergunta. Ele é capaz de dar conta do perguntar e responder só a partir de uma realidade que o contém. A pergunta não se faz senão desde um lugar de enunciação e ao mesmo tempo esse lugar é um resultado de, poderíamos dizer provisoriamente, um tramado anterior. Por isso, talvez a indicação que foi dada desde Kant até Nietzsche e Heidegger seja de alguma utilidade e que nós formulamos do seguinte modo: É bem recomendável que antes de responder o que é a realidade devamos nos interrogar: quem pergunta?

De fato, só sujeitos podem inquirir sobre a realidade, mas essa inquisição tem como condição de possibilidade o lugar desde onde se formula a pergunta e os elementos de sentido que, ali, se estabelecem. Inescapavelmente, a pergunta sobre a realidade é feita desde a realidade que, de antemão, constitui o espaço de possibilidade da resposta. Essa condição é o que Perez denomina de Princípio do Paradoxo Originário129. Não trata de ser, esse princípio, “um postulado para decidir sobre a realidade ou um postulado para decidir o que é real” (Perez, 2016, p. 174). Isso sim, ele é uma fórmula vazia resultante do impossível que se instala quando se pergunta sobre a posição e os limites que determinam a realidade, uma vez que somos parte dessa mesma realidade.

Desse modo temos a pergunta constituída pela própria realidade que se pretende interrogar e o sujeito da enunciação da interrogação que formula sua pergunta: o que é realidade? Assim, interno e externo (sujeito – realidade – verdade) não são senão modos de nomear momentos da estrutura e não lugares fixos em relação de oposição. (Perez, 2016, p. 172 e 173, grifos do original)

Nesses termos, a realidade seria uma narrativa que compreende o sujeito em relação com o que é considerado verdade. Todavia, o que Perez evidencia é uma dobra nessa relação, a mesma dobra que identificamos, antes, em Marx e que serve de elemento de crítica que esse autor faz ao idealismo. Ora, como a ideia, a consciência ou a razão podem ser pontos de partida da investigação da realidade, se essas expressões são condicionadas pela própria realidade? Como o eu consciente pode ser um átomo autônomo, livre e independente se ele sequer pode formular uma razão de si mesmo sem que seja em nome de uma realidade que o contém e que lhe escapa profundamente?

A possibilidade de responder essas perguntas nos parece também apontar na direção do rompimento da dualidade interno-externo da interpretação de Descartes. Nesse sentido, é nos necessário uma nova geometria de referência para a relação entre o eu e o outro no laço social. O que queremos defender é que devemos abdicar da tradição de interpretar a forma de estar no mundo pelas oposições entre interno e externo, para que, dessa nova geometria, possa surgir uma noção de sujeito que questione os limites entre o eu e o outro.

É necessário uma estrutura que construa o espaço lógico no qual o interno se dissolva no externo e que o mais íntimo do eu esteja fora de si, na materialidade do laço social. Só assim podemos operar a contradição de que a realidade compreende o sujeito e aquilo que ele acredita ser verdade; ao mesmo tempo que, na relação estabelecida entre o sujeito e sua verdade, emerge aquilo que se apresenta como realidade.

Para mantermos o cogito cartesiano como guia, podemos buscar a referência para pensar o espaço do sujeito em uma extensão da geometria: a topologia. Topologicamente, pensar o sujeito, nesses termos, parece-nos remeter à garrafa de Klein: um corpo sem bordas no qual o interior se torna exterior e o exterior se torna interior. A garrafa de Klein - bem como a banda de Moebius -, são recursos à topologiaque Lacan se utiliza para subverter a tradição cartesiana de separação entre interioridade e exterioridade, entre sujeito e realidade, alinhavando-os como efeitos de discursos130. Encontramos nesse contexto o espaço para

adentrarmos no pensamento lacaniano, na indagação de um esquema para conceber o sujeito como materialmente condicionado.