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O dinheiro como onipotência: A subjetivação capitalista é aquela que

Dinheiro e sujeição: a solução de compromisso do desejo

Condição 13 O dinheiro como onipotência: A subjetivação capitalista é aquela que

possibilita que o dinheiro assuma o lugar de um significante onipotente. Em uma sociedade mais e mais reificada e que tem no dinheiro o representante potencial de qualquer mercadoria, a moeda só pode aparecer como signo de poder absoluto, como um meio totalizante de satisfação para o que quer que venha ser desejado.

Ao conter o valor, o dinheiro carrega em si a condição da mercadoria de significar outra mercadoria, de ser forma geral do valor. Contudo, como vimos, o dinheiro não só contém o valor, mas também o nega e, ao fazê-lo, apaga sua condição material, restando-lhe apenas sua vacuidade. Ele se caracteriza, assim, como uma forma negativa, vazia, uma vez que, para além de seu valor de uso, não há, nele, nenhum outro conteúdo. Não obstante, essa vacuidade não aponta para um nada, senão que estabelece, a partir do lugar vacante, a possibilidade de um vir-a-ser-tudo. Em outras palavras, sua propriedade de equivalente geral, faz o dinheiro aparecer como um vazio que, exatamente por isso, pode transformar-se em qualquer coisa.

No capitalismo, o dinheiro sustenta essa promessa, a promessa de infinitude, na medida em que permite que se compre qualquer coisa desde que se tenha a quantidade necessária para pagar o limite imposto pelo preço. Não há qualquer entrave à operação da troca a não ser a posse de um bem... seria o dinheiro um bem? Não. Nem isso. O dinheiro é o suporte material de uma inscrição simbólica, a inscrição do valor. Marx o examina, ao dinheiro, ainda no Livro I, de O capital, quando aponta seu caráter paradoxal. Este consiste em expressar infinitude nos estreitos limites da finitude. E este o traço que permite a promessa de um gozo infinito. (Góes, 2008, p. 43)

O impacto subjetivo dessa construção social é que o capitalismo implica sujeitos cujas demandas são sempre mediadas pelo dinheiro. Se aceitarmos aqui a concepção lacaniana do desejo, como um movimento radical causado por uma falta absoluta e insaciável, então o dinheiro passa a ocupar lugar central no processo de subjetivação do laço social capitalista: o de promotor de uma solução de compromisso para o desejo, oferecendo para ele não a possibilidade de um fim, mas de um meio para tudo. Com efeito, o dinheiro aparece subjetivamente como um mediador absoluto, um meio para qualquer condição material e um meio para qualquer sentido. Ele promove a possibilidade de os sujeitos demandarem o objeto de valor e não o valor do objeto204.

Invertendo, assim, a relação meio-fim, o dinheiro promove uma configuração subjetiva que tem no elemento de mediação a sua finalidade. Marx já identificava essa condição desde os Manuscritos. Ali, ele escreve:

Em que medida o dinheiro que aparece como meio é a verdadeira potência e a única finalidade – em que medida afinal o meio, que faz de mim uma essência, que me apropria da essência estranha objetiva, é autofinalidade... (…). (Marx, 2004, p. 146, grifos do original)

A onipotência do dinheiro, nesses termos, condiciona a forma de demanda da sociedade, fazendo da carência do dinheiro “a verdadeira carência produzida pela economia nacional e a única carência que ela produz” (Marx, 2004, p. 139). Ora, se o trabalho é a ação movida pela carência, se capitalismo faz de todo trabalho uma mercadoria e, enfim, se todas as mercadorias necessitam ser trocadas por dinheiro, então o dinheiro é aquele que chancela toda a expressão do sujeito em sua relação com os objetos, tornando-a uma carência latente por um vazio; por um vazio que se expressa como potência imaginária de ter absolutamente tudo, de estar em todos os lugares e conhecer todas as vicissitudes mercadológicas.

O dinheiro, na medida em que possui o atributo de tudo comprar, na medida em que possui o atributo de se apropriar de todos os objetos, é, portanto, o objeto enquanto possessão eminente. A universalidade de seu

atributo é a onipotência de seu ser; ele vale, por isso, como ser onipotente.

[...] O dinheiro é o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida e o meio de vida do homem. (Marx, 2004, p. 157, grifos do original).

A alcovitaria exercida pelo dinheiro, nesses termos, não poupa qualquer objeto de 204 Tomšič, 2015, p. 123.

sua lógica. Ele, inclusive, submete aquele objeto que dissemos ser privilegiado do sujeito, ou seja, o eu. Parece claro que, no capitalismo, a posição subjetiva do dinheiro, como anterior à realização do sujeito, fornece um espaço para a conformação da consciência de si, como um devir monetizado, avaliado nos termos do equivalente geral.

Para sujeito capitalista, a “quantidade de dinheiro se torna cada vez mais seu único atributo poderoso; assim como ele reduz todo o ser a sua abstração, reduz-se ele em seu próprio movimento a ser quantitativo” (Marx, 2004, p. 139, grifos do original). O sujeito aparece como um eu: indivíduo autônomo, independente e livre, no exercício da fortuna de seus interesses. Entretanto, o real desse sujeito é ser anteriormente condicionado pela lógica do dinheiro, um “escravo inventivo e continuamente calculista” (Marx, 2004, p. 139, grifos do original).

O dinheiro é, enquanto solução de compromisso, uma forma acabada que “confraterniza impossibilidades” (Marx, 2004, p. 159). E, mais do que isso: “[é] exatamente essa forma acabada – a forma dinheiro – do mundo das mercadorias que objetivamente vela, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, portanto, as relações sociais entre os produtores privados” (Marx, 1988, p 73). Não que a consciência do dinheiro como valor seja uma falsa consciência; ela é a consciência real do capitalismo, no sentido de ser a consciência que o realiza, que o reproduz, que dá consistência ideológica a esse laço social.

Condição 14 – O dinheiro como unidade social de avaliação o preço como padrão de verdade capitalista: Ao se estabelecer como um signo que contém e nega seus significantes, o

dinheiro conforma uma subjetivação que permite negligenciar as condições materiais que o possibilitam. Dessa negligência, o dinheiro aparece como autodeterminado e, mais do que isso, como substância última do valor social. Os preços surgem aí, não como expressão monetária do valor (tempo de trabalho socialmente necessário à produção das mercadorias), mas como resultante abstrato dessa autodeterminação, como o único princípio de limitação

interna da narrativa capitalista.

ideológica que possibilita que o laço social em torno da troca de mercadorias se difunda largamente. Com efeito, a série de denegações das condições materiais do laço social capitalista conforma um processo de subjetivação que suporta a atribuição de valor por termos completamente abstratos, os termos monetários. A marca subjetiva da dialética desse arranjo simbólico é um sujeito que dá sentido de dinheiro ao valor, e que, logo, inverte forma e conteúdo.

Os preços, daí, passam a comungar da mesma autojustificação do dinheiro, negando todas as particularidades que não concernem à troca mercantil205. Eles têm como base

e possibilidade o tempo de trabalho socialmente necessário, mas não são a expressão monetária desse tempo de trabalho, exatamente porque o dinheiro subverte o valor, fazendo-o obsceno.

O preço é a face imaginária do valor; o valor, a face simbólica do preço, e o real comparece no trabalho que opera a estrutura. Marx define o capital como uma relação social, chamada por Lacan de laço social, discurso ou estrutura. O laço social define-se como dimensão simbólica cuja face imaginária se traduz no preço transubstanciado em dinheiro e cuja dimensão real é dada pelo trabalho que opera a estrutura, e opera na estrutura, descrita por Marx na forma do valor. É o dinheiro que sustenta, quando efetiva o mercado na operação de compra e venda, a possibilidade do gozo dos bens, que não sofre nenhum entrave a não ser o estabelecimento do preço. (Góes, 2008, p. 40)

É de se notar que para Góes a possibilidade de gozo dos bens na narrativa capitalista é limitada somente pelo sistema de preços estabelecido no mundo das mercadorias. De fato, os preços são o limite da cadeia social de realizações. Eles aparecem, mesmo, como padrão sintético da verdade capitalista, uma vez que indicam, em temos monetários, a possibilidade de realização dos sujeitos desse discurso. Isso porque, temos na forma preço tanto a representação daquilo que pode e o que não pode ser vendido por uns, quanto também o que pode e o que não pode ser comprado por outros. Ora, se nesse discurso as relações sociais são estabelecidas por intermediação das mercadorias no âmbito mercado, então os preços são o limite ideológico do que cada um pode ser, uma vez que representam, nesse sistema, o que cada um pode ter. Não é esse o limite de si como entende toda a teoria da escolha?

Na medida em que a lógica da moeda confere os termos sociais de avaliação no capitalismo, o sujeito acaba sendo posicionado de acordo suas condições de acumulação material e financeira. O limite de poder que o sujeito confere ao eu é, justamente, o limite do poder de suas riquezas. Essa fantasia é a realidade do capitalismo. Se tudo é atravessado pela lógica da mercadoria, então tudo pode ser prostrado aos pés da moeda, de modo que a potência do ser é reduzida à potência vazia do ter monetário.

Dito de outra forma, se o dinheiro consolida o apagamento do laço social que nos sujeita e se oferece como elemento do sentido de qualquer coisa, então o que nos resta é sermos indivíduos que refletem a riqueza que carregam, é sermos feitos a imagem e semelhança de nossas finanças, é tudo podermos naquilo que nos enriquece:

Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas – [de] seu possuidor – qualidades e forças essenciais. [...] Eu, que por intermédio do dinheiro consigo tudo o que o coração humano deseja, não possuo, eu, todas as capacidades humanas? Meu dinheiro não transforma, portanto, todas as minhas incapacidades (Unvermögen) no seu contrário? (Marx, 2004, p. 159, grifos do original).

E a primazia do dinheiro na construção da subjetivação social capitalista, que conforma o sentido dos objetos e da consciência de si, não poderia deixar incólume a relação que o eu estabelece com o outro no laço social, afinal “o que medeia a minha vida, medeia-me também a existência de outro homem para mim” (Marx, 2004, p. 157, grifos do original):

Se o dinheiro é o vínculo que me liga à vida humana, que liga a sociedade a mim, que me liga à natureza e ao homem, não é o dinheiro o vínculo de todos os vínculos? Não pode ele atar e desatar todos os laços? Não é ele, por isso, o meio universal de separação? (Marx, 2004, p. 159, grifos do original) Nesse sentido, o dinheiro aparece como aquele que determina, em muito, quem é o “nós” e quem é “eles” e quem sequer deve ser pronominado. A partir das relações propostas naquele Esquema 3.8, podemos aludir como o dinheiro intermedeia as identificações, estabelecendo os termos das diferenças e oferecendo os signos que consubstanciam os sujeitos que são efeitos do discurso capitalista.

Esquema 3.8

No discurso capitalista, a posição do sujeito A em relação ao dinheiro enquanto significante de é o que permite que ele, A, seja identificado como semelhante a outros, B. Da mesma forma, o dinheiro também é aquele que distingue nesse laço social, é aquilo que permite que o sujeito A possa resultar da identificação com o não-C, ou seja, possa ser o produto ideológico ou da negação, ou da oposição, ou da contradição com C.

Em suma, no capitalismo, a moeda aparece como proposição real da realização da mercadoria e, logo, dos trabalhadores, obscurecendo todo o laço social que a possibilita. Assim posto, o dinheiro assume o lugar de signo. Ele concretiza uma lógica de relação entre significantes para a produção, não de um significado aleatório, mas de uma lógica de sentido socialmente determinado, de um devir historicamente estruturado. Por ser um signo, o dinheiro vela e reproduz a essência capitalista, fazendo concreta a forma de desmentido que ela institui: o fetichismo.