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O estranhamento entre o trabalhador e o fruto de seu trabalho: O

O indivíduo: indiferença e anistoricidade

Condição 8 O estranhamento entre o trabalhador e o fruto de seu trabalho: O

estranhamento entre o trabalhador e o produto de sua lida tem como base o fato de a força de trabalho ser vendida e, logo, de o resultado dessa atividade não pertencer ao trabalhador. Contudo, a complexidade desse estranhamento é mais extensa, pois as mercadorias, assim estranhadas, acabam por constituir uma esfera aparentemente autônoma daquela do trabalho e, mais do que isso, ela inverte a relação de dependência fazendo com que o trabalhador é que dependa das relações mercadológicas.

Se a ordem de realização inicia pelo valor de troca da mercadoria e, só após dele, os trabalhadores têm sua subsistência realizada, então, de forma lógica e significante, o que se tem inicialmente são mercadorias que se trocam entre si. As condições da produção, quando então, ficam em suspenso, obnubiladas pela agência das mercadorias na manifestação de seus 197 Marx e Engels (2007, p. 72)

valores de troca.

Temos a mercadoria A buscando representar seu valor noutra mercadoria, a B, em uma relação que basta às duas, que é suficiente para a realização de ambas. Em sua aparência, o mercado proporciona uma emancipação dos frutos do trabalho, dado que a mercadoria vai expressar seu valor e cumprir o seu fado por meio de outras mercadorias. Como se sua existência se iniciasse na troca e não na produção.

Assim, se os sujeitos da ordem significante capitalista só podem se relacionar com a mercadoria como se ela fosse estranha, essa estranheza passa a assumir um sentido sistêmico. Toda a relação social por trás da mercadoria tem seu sentido posto em crise. É como se elas constituíssem uma dimensão autônoma, como se tivessem seu próprio mundo de valores e relações independentes.

No século XVIII tudo começa a mudar sob as luzes da Razão e do Iluminismo. O mercado aparece como uma espécie de fonte da vida uma vez que as mercadorias parecem pulular em geração espontânea... a vida é deslocada do corpo do trabalhador para o produto de seu trabalho. O mercado ditará cada vez mais a nova ordem, a ordem "das mercadorias", como ordem universal, como a ordem natural das coisas. A vida troca de lugar... enquanto as mercadorias vivem, os homens morrem de fome, frio e solidão. O século XIX gritará promessas de paraísos na Terra, mas o século XX revelará o real das fantasias utópicas. (Góes, 2008, p. 107)

Essa abstração mercadológica não somente não é velada pela narrativa econômica, como é, de fato, propagandeada por ela. Ali, a “esfera do mercado” ou o “mundo dos negócios” representam as relações de entidades estranhas, nas quais as leis, a ética, os equilíbrios, os ânimos aparecem como independentes da humanidade. Devemos, aliás, concordar com Braunstein quanto ao capitalismo produzir uma

“ideologia da foraclusão do sujeito” cuja máxima expressão se encontrará na doxa econômica que postula que os mercados funcionam sozinhos, regidos por suas próprias leis, independentemente da vontade de seus atores e daqueles que são afetados pelos movimentos do capital. A ciência econômica, propomos, é o paradigma de uma atividade humana produtora de saber que faz ver a história como efeito de processos ingovernáveis e, por isso mesmo, fatais. (Braunstein, 2010, p. 157)

O processo de subjetivação que suporta essa condição capitalista produz, assim,

Marx inicia da autonomia da troca para deduzir a forma específica de subjetividade que essa autonomia inevitavelmente produz. Essa dedução demostra a dependência do sujeito em relação ao significante: o sistema de diferenças, a troca de mercadorias, a maneira pela qual as mercadorias se comunicam entre si, molda o sujeito independentemente de qualquer referência ao consumidor (Tomšič, 2015, p. 36)198.

O movimento de ocultação da anterioridade social da mercadoria faz com que, simbolicamente, os significantes que representam a lida de seu produtor, em suas condições históricas, também sejam desvalorados no ato da troca. Pouco sentido faz pensar, por exemplo, na maneira como, na China, os bens que consumimos são produzidos, quem realiza a produção, e quais são as necessidades humanas ali envolvidas. No ato da troca, as mercadorias aparecem como suficientes, como agentes individuais, como se nada devessem ao trabalho social ou ao trabalhador que as produziram.

Condição 9 – O estranhamento-de-si: A lógica da apropriação por outro da força de

trabalho faz com que o trabalhador estranhe a si próprio no processo produtivo. Esse estranhamento-de-si decorre de o trabalhador, em ato, não se pertencer a si mesmo, ser impróprio a si próprio, por estar sob comando de outro no exercício de sua atividade vital.

Já assinalamos que o sujeito é efeito da forma de se preencher historicamente a atividade de trabalho. Pois bem, se essa forma é a forma capitalista, em que o sujeito está peculiarmente alienado tanto de seu trabalho quanto do fruto de seu trabalho, então podemos dizer que há, mesmo, uma maneira específica de estranhamento-de-si no capitalismo. “Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio (fremd) ao produto de sua atividade se no ato mesmo da produção ele não se estranhasse a si mesmo?” (Marx, 2004, p. 82).

De fato, fadados a vender livremente sua força de trabalho, os sujeitos no capitalismo veem a si próprios alheados, tendo de produzir objetos estranhos, de valores de uso estranhos para consumidores estranhos, e tudo isso em nome de um outro, igualmente 198 “Marx starts from the autonomy of exchange in order to deduce the specific form of subjectivity that this

autonomy inevitably produces. This deduction demonstrates the dependency of the subject on the signifier: the system of differences, commodity exchange, the way in which commodities communicate among themselves, shapes the subject independently from every reference to the consumer.”

estranho. Nesse sentido, escreve Marx (2004, p. 83, grifos do original):

A relação do trabalho com o ato da produção no interior do trabalho. Essa relação é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma [atividade] estranha não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a procriação como castração. A energia espiritual e física

própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o que é vida senão atividade

– como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele. O estranhamento-de-si (Selbstentfremdung), tal qual acima o estranhamento da coisa.

Ao negar o trabalho social nela empregado, a realização do valor de troca da mercadoria chancela esse estranhamento-de-si, por criar um lapso intransponível entre aquele sujeito que trabalha e aquele que efetiva sua existência.

Tentemos representar esse estranhamento-de-si pela imagem a seguir. Um dos maquinários de uma empresa apresenta um problema que impede seu funcionamento por dias, até que seja reparado. Essa ocorrência interrompe a lida de uma trabalhadora, quem tem como única atividade operar a tal máquina. Não obstante, a trabalhadora deve se apresentar à firma diariamente, mesmo que seja para, lá, não fazer nada. Percebamos que a trabalhadora não é dona desse “eu” que ali deve prostrar, vendido. Esse “eu” é inativado pela impossibilidade de que se produza e se realize valores de troca. À trabalhadora cabe somente encarar esse eu- estranho, em si mesma alheio, desapropriado.

Essa imagem hipotética, mas nada irregular, serve aqui para fazer saliente esse estranhamento-de-si, mas esse estranhamento não é menor quando a máquina funciona e os valores de troca são produzidos e realizados. O trabalho no capitalismo é quase como uma versão do rio de Heráclito, se bem que fazendo as diferenças independerem do tempo e do espaço. O sujeito desse laço social não é igual a si próprio quando trabalha. Ele é um despedaçado, um desapropriado de si; ele é, em si mesmo, uma alteridade cujo sentido e o devir são distantes e impróprios.