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CAPÍTULO II A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA PARA A

2.2 Mas e a Justiça Restaurativa?

2.2.1 A Justiça Restaurativa no mundo e no Brasil

A origem das ideias sobre a Justiça Restaurativa tem aproximadamente 40 anos, a partir da década de 1970 quando os primeiros registros foram verificados nos Estados Unidos através de mediação entre vítima e ofensor (Grossi, Santos, Oliveira, & Fabis, 2009). Esse movimento se dá como resposta à ineficiência do modelo processual e penal que ainda perdura, e, em muitos casos, em vez de efetivamente contribuir para diminuir os conflitos sociais, aumenta e aprofunda as questões (Aguiar, 2009).

Essa delimitação temporal diz respeito ao campo moderno da JR, mas o movimento restaurativo tem origens mais antigas, tanto quanto a história da humanidade, nas palavras de Zehr (2012), nas tradições culturais e religiosas das tribos de nativos da América do Norte e Nova Zelândia. De acordo com Nunes (2011) esses povos resolvem seus conflitos interpessoais fazendo reuniões com amplo debate em que participam a vítima e o agressor buscando a restauração da relação, além disso, familiares, amigos, líderes comunitários e religiosos também podem participar e contribuir.

Especificamente sobre a Nova Zelândia o modelo se inspirou nos costumes do povo Maori em função da preocupação com a forma como o Sistema de Justiça Juvenil tratava os jovens e crianças, através de decisões que os retiravam de seus lares, do contato com suas famílias e a da própria comunidade, portanto, após muitas exigências, um processo diferenciado e culturalmente adaptado foi pensando. Assim, em 1989 foi aprovado o Estatuto das Crianças que reformulou o Sistema de Justiça incluindo as práticas restaurativas, como a Conferência de Grupo Familiar, que permitiu a inserção das famílias no processo e garantiu

conjuntamente a responsabilidade. Em função do sucesso, a JR na Nova Zelândia vem alcançando outros níveis de desenvolvimento. Nesse sentido, esse país se destacou internacionalmente por ser a pioneira a adotar a Justiça Restaurativa no seu ordenamento jurídico, sendo inspiração para os demais países do mundo. De forma semelhante, no Canadá o processo restaurativo se deu a partir dos métodos tradicionais de resolução de conflitos dos aborígenes que não reconheciam os valores e métodos do sistema tradicional de justiça (Pinho, 2009).

Entretanto, é somente nos anos 1990 que a JR e seus programas se destacam internacionalmente, e, se disseminam para países como: Austrália, Canadá, Estados Unidos, África do Sul, Argentina, Colômbia, dentre outros. Em 1990, ainda, foi publicada a Changing lenses: a new focus for crime and justice (Trocando as lentes: um novo foco sobre crime e justiça) de Howard Zehr, que é considerada obra fundamental e uma marco para afirmação da Justiça Restaurativa, enquanto novo modelo de justiça, revolucionando ao colocar as necessidades da vítima como ponto inicial do processo. Ao mesmo tempo, o modelo de Justiça Penal Retributiva começou a ser questionado pela doutrina especializada (Orsini & Lara, 2012).

Resumindo, a Justiça Restaurativa é fruto de uma conjuntura complexa. Em seu início estava associada ao movimento de descriminalização, dando passagem a diversas experiências-piloto no sistema penal a partir de metade dos anos 1970 (fase experimental), sendo algumas experiências institucionalizadas nos anos 1980 (fase de institucionalização) pela adoção de medidas legislativas específicas, e, a partir dos anos 1990 passa por uma fase de expansão e se insere em todas as etapas do processo penal (Jaccound, 2005).

A conjuntura de disseminação dessa forma de se fazer justiça influenciou o Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (ONU) a requisitar, através da Resolução 1.999/26, de 28 de julho de 1999, à Comissão de Prevenção do Crime e de Justiça

Criminal que considerasse a adoção da medição e Justiça Restaurativa pelas Nações Unidas. Aproximadamente um ano depois, o Conselho estabeleceu, por meio da Resolução 2.000/14, de 27 de julho de 2000, os Princípios Básicos para utilização de Programas Restaurativos em Matérias Criminais. E, em 2002, esse mesmo Conselho editou a Resolução nº 2.002/12, definindo os princípios e as diretrizes básicas de utilização dos programas de Justiça Restaurativa no âmbito criminal. Com isso, a referida norma influenciou vários países a adotarem a Justiça Restaurativa ou aprimorar os seus programas, inclusive o Brasil (Orsini & Lara, 2012). Como consta nessa resolução, no item dois, o:

Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles) (Organização das Nações Unidas, 2002).

Cabe destacar que a Justiça Restaurativa não tem o objetivo de substituir o Sistema de Justiça Tradicional, mas opera lado a lado, como um complemento ou alternativa, cujo foco é a reparação dos danos às pessoas e a comunidade, ao invés de punir os infratores. Como a JR atua em paralelo ao sistema vigente, pode acontecer em qualquer momento do processo criminal. De uma maneira geral, o processo restaurativo pode acontecer em quatro níveis principais: no policial; no acusatório; no processual, antes do julgamento ou sentença; ou ainda na execução como parte de uma sentença, durante o encarceramento, ou alternativa a ele (Pinho, 2009). Já para Muñoz (2013), ao comentar sobre os sistemas de justiça ocidentais, vislumbra três modelos de aplicação de Justiça Restaurativa: a) complementar ao tribunal, em que o Estado cria os programas restaurativos no desenvolvimento dos processos; b) sistemas

alternativos ao tradicional, antes de uma formalização judicial; e, c) sistemas de Justiça Restaurativa que atuam nos conflitos emocionais em vez de no fato delitivo, e, geralmente, independentemente da atuação de uma justiça penal.

Como se pode perceber, a partir da positivação da importância da Justiça Restaurativa no Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, é possível ter um direcionamento mais claro para os programas que se pretendem baseados na JR. Essa resolução ganha ainda mais importância quando o entendimento sobre o campo ainda está se consolidando e, por isso, podem existir distorções sobre a prática de Justiça Restaurativa, que na verdade, como será apresentado em momento oportuno, não acontece de uma única maneira, mas existem diversas formas de operacionalizar a JR.

Como consequência desse movimento de expansão mundial, a Justiça Restaurativa chega ao Brasil principalmente a partir da observação e estudo do direito comparado. No entanto, os modelos aplicados no país não são exatamente iguais aos estrangeiros, especialmente, porque precisa de mudanças legislativas para que possam ser positivados no direito brasileiro. Além disso, a Justiça Restaurativa precisa se adequar à realidade onde se insere (Pinho, 2009).

Portanto, desde 1999, antes mesmo de a Justiça Restaurativa se desenvolver no Brasil, foram realizados estudos teóricos e observações da prática restaurativa, sob condução do Prof. Pedro Scuro Neto, no Rio Grande do Sul. Ainda nesse ano foi desenvolvida a primeira experiência prática através de pesquisa sobre prevenção da indisciplina e violência nas escolas públicas, que se intitulou “Projeto Jundiaí: viver e crescer em segurança”, sob coordenação do referido professor. O projeto foi desenvolvido através de parceria entre o Centro Talcott de Direito e Justiça, o Conselho Comunitário de Segurança (CONSEG), Coordenadoria de Ensino do Município de Jundiaí, e apoiado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). As

atividades foram encerradas em 2000 deixando a experiência das “câmaras restaurativas1” no contexto escolar (Maiochi & Maiochi, 2015).

O primeiro caso, efetivamente, trabalhado conforme o modelo restaurativo no Brasil, chamado “Caso Zero”, data de 4 de julho de 2002. Essa experiência de aplicação de prática restaurativa ocorreu na 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre/RS a um conflito envolvendo dois adolescentes. Desde então, a JR vem se firmando como metodologia autônoma aplicada tanto ao âmbito interno quanto externo do Poder Judiciário, e vem se expandindo para várias partes do país além do Rio Grande do Sul (Orsini & Lara, 2012).

Essa expansão pelo país encontrou terreno favorável a partir do movimento, nos anos iniciais do século XXI, para que houvesse uma reforma no Judiciário no sentido de debater a sua função social, buscando uma justiça mais participativa, a ampliação ao seu acesso, fortalecimento do respeito aos direitos humanos e que fosse garantidora de direitos sociais. Foi a partir desse contexto que a Justiça Restaurativa começou a ser realidade no país (Melo, Ednir, & Yazbek, 2008).

Assim, no final de 2004 e início de 2005, o projeto “Promovendo Práticas

Restaurativas no Sistema de Justiça” foi desenvolvido pela Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e inicia ações mais representativas da Justiça Restaurativa no Brasil através da implantação de três projetos-piloto, nas seguintes localidades: Porto Alegre/RS, implantado na execução de medidas socioeducativas, na 3ª Vara da Infância e Juventude; no Distrito Federal no Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirante; e em São Caetano do Sul/SP, nas escolas por meio de câmaras ou círculos restaurativos, de modo a

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“É o encontro no qual já há o reconhecimento do erro por parte do transgressor e a vítima. Há o entendimento entre as partes, para que juntas cheguem a um denominador comum, gerando meios de reparar o dano causado. A vítima, o transgressor e as suas comunidades assistenciais participam do encontro, bem como as partes interessadas secundárias na tentativa de contribuir na feitura do acordo e sua efetividade” (Pinho, 2009, p. 261).

reduzir o número de conflitos encaminhados ao judiciário. Nesse sentido, através desse projeto do Ministério da Justiça foram implementados “núcleos” de Justiça Restaurativa em vários estados brasileiros, em parceira com associações ligadas à justiça por meio de promotores, juízes entre outros. A partir disso, em 2005 a Justiça Restaurativa começa a fazer parte da realidade brasileira como se pode observar (Maiochi & Maiochi, 2015).

Ainda em 2005, a referida parceria permitiu a difusão das ideias restaurativas - não somente para os estudiosos de direito como também para as mais diversas áreas das ciências sociais no país - com o lançamento do livro Justiça Restaurativa, que consiste em uma compilação de dezenove textos de especialistas na área (juízes, juristas, sociólogos, criminólogos e psicólogos), de oito países diferentes. Além dessa publicação, diversos eventos, tendo como tema a Justiça Restaurativa foram realizados no Brasil, tais como: I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, em 2005, na cidade de Araçatuba (SP); a Conferência Internacional “Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de Conflitos”, realizada em Brasília em 2005; e, o II Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, realizado em Recife/PE, em 2006. Esses eventos ganharam importância não somente por serem veículos para divulgação da prática restaurativa, como também por apresentarem produtos como cartas de princípios para a execução das JR em solo nacional (Orsini & Lara, 2012).

A partir de 2006, os projetos de Justiça Restaurativa vêm se aprimorando, sempre considerando a necessidade de adaptação das práticas e princípios estrangeiros à realidade brasileira e demonstrando resultados expressivos. Nesse sentido, o Governo Federal reconheceu sua importância, com a aprovação do 3° Programa Nacional de Direitos Humanos (Decreto n. 7.037/2009), no qual consta que:

[...] o PNDH-3 propõe profunda reforma da Lei de Execução Penal que introduza garantias fundamentais e novos regramentos para superar as práticas abusivas, hoje comuns. E trata as penas privativas de liberdade como última alternativa, propondo a redução da demanda por encarceramento e estimulando novas formas de tratamento dos conflitos, como as sugeridas pelo mecanismo da Justiça Restaurativa.

[...] Incentivar projetos pilotos de Justiça Restaurativa, como forma de analisar seu impacto e sua aplicabilidade no sistema jurídico brasileiro.

Outro dispositivo jurídico que trata a Justiça Restaurativa como meio possível para resolver os conflitos é o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, por meio da Lei n. 12.594/2012, em que, no art. 35, inciso III, estabelece-se como um dos princípios para execução da medida: “prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas”.

Vale destacar que no Brasil existem tentativas de inserir a Justiça Restaurativa no seu ordenamento jurídico, como o projeto de lei que está em tramitação desde 2006, Projeto de Lei n. 7.006/2006, mas que tem sido arquivado e desarquivado inúmeras vezes (Pacheco, 2012). Entretanto, em 04 de junho de 2014, o projeto recebeu parecer favorável à sua aprovação pelo Deputado Lincoln Portela, que foi o relator2.

No referido projeto, tem-se em seu artigo primeiro, que “esta lei regula o uso facultativo e complementar de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais” (Projeto de Lei n. 7.006/2006) e considera, em seu segundo artigo, como:

procedimento de justiça restaurativa o conjunto de práticas e atos conduzidos por facilitadores, compreendendo encontros entre a vítima e o autor do fato delituoso e, quando apropriado,

2Para maiores informações e acompanhamento do processo, ver:

outras pessoas ou membros da comunidade afetados, que participarão coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime ou pela contravenção, num ambiente estruturado denominado núcleo de justiça restaurativa.

Além disso, outro grande passo foi dado com a aprovação da Resolução 225/2016 de 31 de maio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no Poder Judiciário estabelecendo diretrizes para sua implantação e difusão.

Por todo exposto, percebe-se que a Justiça Restaurativa vem sendo aplicada no Brasil em projetos do Poder Judiciário, através, muitas vezes, de parceiras com órgãos internacionais ou até mesmo com outras instâncias da sociedade, como a educação. E, apesar disso, podem ser utilizados para resolver qualquer tipo de conflito: “na família (conflitos matrimoniais, violência doméstica, divórcio); escola, vizinhança/bairro (violência, vandalismo, perturbação de sossego); economia, tutela ambiental, trabalho, nas comunidades em geral, inclusive no sistema de justiça (conflito em prisões)” (Prudente & Sabadell, 2008, p. 57).