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CAPÍTULO II A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA PARA A

2.2 Mas e a Justiça Restaurativa?

2.2.3 Valores Restaurativos

A Justiça Restaurativa além de se alicerçar em princípios também se baseia em valores. A associação desses elementos permite compreender e dar o tom da Justiça Restaurativa, de modo que a aplicação dos princípios presume a existência dos valores. Assim como nos princípios, a existência de valores possibilita que os programas e projetos que se

intitulem de Justiça Restaurativa possam de fato ser construídos dentro dos preceitos da abordagem, aconteçam e resultem em decisões de fato restaurativas.

Em função da importância dos valores para a perspectiva restaurativa, é preciso conhecê-los e exercitá-los no cotidiano das relações. Cabe destacar que existem algumas controvérsias sobre a quantidade e quais seriam os referidos valores da JR. Talvez a pluralidade de construções da teoria e prática da Justiça Restaurativa esteja relacionada a sua compreensão cultural, como reflete Souza (2011) que parte da noção de que as práticas da justiça penal são culturalmente implicadas, assim, se constituem da maneira como são em razão das diversas concepções culturais que as moldam, nessa mesma linha de raciocínio estaria a JR, em que ela e suas práticas seriam moldadas a partir do arranjo cultural mais amplo (com seus valores e visões de mundo), e, por isso, contribuiria para manter tais formas, mas que a JR também influenciaria tal contexto através suas premissas e práticas que possibilitam entender como as pessoas são, como deveriam se relacionar e o que fazer em situações de conflitos.

Enfim, o encontro das práticas de Justiça Restaurativa e contexto cultural de inserção pode resultar em formas de ação distintas e, conforme Zehr (2012), a JR deve ser construída com as comunidades em que se insere, analisando suas necessidades e recursos para aplicar os princípios da JR às suas situações específicas. Para o autor, existiriam três valores essenciais: a interconexão (todos estão ligados uns aos outros e ao mundo de forma geral); o segundo seria a particularidade/diversidade (cada pessoa tem sua individualidade que deve ser considerada e respeitada bem como a cultura e o contexto); e, por fim, o respeito que tem importância fundamental dentro da JR e remete à interconexão e diversidade. Por isso, para ele quando não se respeita os outros, não há Justiça Restaurativa, mesmo que se utilizem os princípios.

Já para Van Ness (1997), os valores fundantes da JR seriam quatro: o encontro que é valorizado tendo como participantes a vítima, o ofensor e a comunidade. E a grande diferença desse encontro para a simples presença em conjunto no tribunal, por exemplo, é a possibilidade de as partes interagirem, de estar cara-a-cara, de terem a oportunidade de falar, de contar sua versão, de se emocionar e compreender o crime, as outras partes envolvidas, e o que deve ser feito para reverter à situação. O segundo valor é a reparação que significa “fazer as pazes”, seja através da restituição material ou mediante qualquer outra forma acordada entre os envolvidos. Existem crimes em que não é possível reverter a situação ou reparar integralmente, como nos casos de assassinatos, mas usar mecanismos simbólicos nesses casos é importante, como reparação financeira e outros mais. O terceiro valor é a reintegração que significa a entrada novamente da vítima e ofensor na comunidade, sendo respeitados e com o atendimento de suas necessidades específicas. Por fim, o último valor é a participação de todos os envolvidos no crime, que deve ser direta e voluntária e pretende que se chegue a um acordo/solução. E não como nos julgamentos tradicionais em que as vítimas e réus somente aparecem nas falas dos representantes do direito, sendo aqueles que sempre são falados, mas nem sempre são ouvidos (Souza, 2011).

Outros teóricos que versam sobre os valores restaurativos os entendem como valores que são e devem ser essenciais aos relacionamentos de modo a garantir equilíbrio, justiça e saúde. Por isso, deveriam estar presentes em todos os relacionamentos entre as pessoas no campo da Justiça Restaurativa (juízes, vítimas, ofensores, policiais, oficiais, etc.), mais ainda, dentro e entre os grupos comunitários. É um conjunto de valores numericamente maior do que para os autores já citados, entretanto, considerados fundamentais no processo de distinção da JR em relação a outras abordagens (incluindo judiciais) para resolução de conflitos (Marshall, Boyack, & Bowen, 2005). De acordo com Nunes (2011), os valores da JR são valores essenciais à pessoa humana de uma forma geral.

Assim, um conjunto de teóricos consideram, pelo menos, oito valores fundamentais na Justiça Restaurativa, os quais seriam: participação, respeito, honestidade, humildade, interconexão, responsabilidade, empoderamento e esperança. A participação dos afetados pelo crime, os quais sejam: vítimas, ofensores e suas comunidades de interesse busca garantir que sejam os principais participantes no que tange à fala e escuta, inclusive sejam os responsáveis pela decisão ao invés de o Estado tomar para si todo o processo judicial; o segundo valor é o respeito que considera todos os seres humanos igualmente sem distinção em função de suas ações, gênero, cultura, orientação sexual, idade, raça, crença e nível socioeconômico. Além de ser em função dele que se gera confiança entre os participantes; o terceiro valor é a honestidade que corresponde à característica da fala, ou seja, falar a verdade no processo de justiça que permite não somente entender o ocorrido, mas possibilita uma fala aberta sobre a experiência dolosa, revelar os sentimentos envolvidos e pensar sobre as responsabilidades advindas da ofensa; o quarto valor é a humildade que está em reconhecer as vulnerabilidade e falibilidades do ser humano, e por isso, possibilita que vítimas e infratores percebam que têm mais em comum como seres humanos do que cada um no seu papel de vítima e ofensor, além disso, faz parte da humildade ter empatia e cuidado mútuo (Marshall et al., 2005).

O quinto valor é a interconexão que existe entre todas as pessoas, porque na sociedade os indivíduos estão ligados uns aos outros, por isso mesmo, vítima e infrator também fazem parte desse emaranhado de relações. Assim sendo, a sociedade compartilha a responsabilidade para com a vítima e ofensor exercendo um papel específico para cada um desses atores: “o caráter social do crime faz do processo comunitário o cenário ideal para tratar as consequências (e as causas) da transgressão e traçar um caminho” (Marshall et al., 2005, p. 5); o sexto valor, ainda conforme os autores, é a responsabilidade, que no caso do infrator deve, obrigatoriamente, aceitar a responsabilização pelo ato e buscar diminuir suas consequências.

Essa aceitação comunica que o ofensor parece se arrepender pelo que fez, seja ao oferecer reparação dos prejuízos, ou até mesmo o perdão das vítimas, enfim, mecanismos que podem levar à reconciliação.

Os dois últimos valores são o empoderamento que diz respeito à autodeterminação e autonomia que cada pessoa deve ter em sua vida. No caso da vítima, a situação do delito lhe priva desse poder sobre sua própria vida e um dos objetivos da JR é devolver o controle sobre si, dando às vítimas um papel ativo no processo de modo a determinar suas necessidades e como estas devem ser satisfeitas. Ao ofensor também é dado poder para se responsabilizar pelo dano, buscar remediá-lo e se reabilitar; por fim, o último valor é a esperança de que a vítima pode se curar, o ofensor pode mudar e, se conseguir uma nova forma de sociabilidade pautada na paz, principalmente porque a JR permite abordar as necessidades e pensar no que pode ser feito daqui para frente (Marshall et al., 2005).

No texto “Círculos Restaurativos – guia metodológico para facilidades” a organização não governamental Terre des hommes Luasanne Brasil traz sete valores, todos os já citados menos a interconexão (Pedrosa, Soares & Barter, 2011). Já Nunes (2012) traz nove valores: participação, respeito, responsabilidade, honestidade, humildade, interconexão, empoderamento, solidariedade e pertencimento. Como se pode observar, não traz o valor da esperança e em seu lugar apresenta a solidariedade (o procedimento restaurativo permite o diálogo e por isso possibilita o respeito mútuo) e pertencimento (no que concerne a um senso comunitário), talvez porque seu texto seja mais direcionado para as práticas restaurativas nas escolas.

A partir dos princípios e valores pode-se perceber como a Justiça Restaurativa opera, ou seja, identifica necessidades, analisa as obrigações, entende como cada envolvido pode participar do processo a partir de um papel específico que resulte na reparação do dano, tanto

quanto possível. Além de que todas essas etapas são permeadas por valores que sustentam a abordagem e possibilitam procedimentos e resultados realmente restaurativos.

Assim, pode-se observar que a proposta restaurativa busca uma mudança na forma como se enxerga os crimes e conflitos e, ao se alicerçar em princípios e valores, demonstra o quanto está próxima ou busca se aproximar do cotidiano, porque os valores acima apresentados não parecem tão distantes da realidade, muito embora possam não acontecer no dia a dia por motivos de ordem mais macro que nesse momento não cabe discutir. Ou seja, é possível incutir na vida diária aspectos restaurativos com a utilização dos valores, o que já foi corroborado pelos autores mencionados, no início desse tópico, quando sugerem que eles devem ser os valores da pessoa humana. Com isso, a tendência, ou ao menos o objetivo, é transformar a sociedade em uma sociedade restaurativa, resolvendo seus conflitos de forma positiva e não-violenta.

Uma vez que se apresentaram os princípios e valores que caracterizam a Justiça Restaurativa, nos tópicos que se seguem são discutidos sua definição e, posteriormente, as formas como pode ser praticada a JR.