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2.5 CIÊNCIA e complexidade

2.5.2 A objetividade da experiência física do artefacto

A forma como o ser humano apreende a realidade pode permitir-lhe imaginar todo o tipo de coisas, até aquelas que são impossíveis de concretizar197. No entanto, uma vez

materializadas em artefacto, essas coisas, por tal possibilidade de concretização material, acabam por ‘falar por si’ como factos concretos, tornam-se objetivos, ou seja, apresentam atributos tangíveis, passíveis de serem objetivamente verificáveis, seja a nível das suas

195 “Uma teoria poderia ser falsa e, ainda assim, ter consequências verdadeiras. Mas o facto de não existir uma certeza

absoluta no que respeita a teorias científicas também implica que, ao contrário de um teorema matemático, elas permaneçam abertas e vulneráveis à mudança. E graças a esta capacidade de mudança que as teorias podem evoluir.” – Heinz Pagels: Sonhos da Razão, p.311.

196 Roger Penrose faz a distinção entre teorias “EXCELENTES”, “ÚTEIS” e “PROVISÓRIAS”, e referindo-se ao

carácter “extremamente artificial” do sistema ptolemaico, escreve que “Este é um bom exemplo de uma teoria ÚTIL (por cerca de dez séculos!) que acabou por desaparecer completamente como teoria física, embora tenha desempenhado um papel sistematizador de clara importância histórica. Temos, pelo contrário, um bom exemplo de uma teoria ÚTIL que acabou por ser bem sucedida na brilhante concepção de Kepler do movimento dos planetas em órbitas elípticas. Outro exemplo é o da tabela periódica dos elementos, de Mendeleev. Por si próprias, nenhuma destas teorias constituía um modelo com capacidade de previsão ‘fenomenal’ necessária para ser considerada EXCELENTE, mas ambas acabaram por se tornar deduções ‘correctas’ das teorias EXCELENTES a que deram origem (a dinâmica de Newton e a teoria quântica, respectivamente.) ” – A Mente Virtual, p.208.

197 “Uma das consequências mais espantosas da percepção humana é a capacidade que esta nos dá para imaginar coisas

que são materialmente impossíveis. Munidos deste «dispositivo», podemos explorar a realidade de uma forma única, situando-a num contexto definido por acontecimentos impossíveis.” – John D. Barrow: Impossibilidade - Os Limites da

relações construtivas/ transformativas, seja a nível das suas relações de desempenho técnico. Mesmo aqueles aspetos do artefacto que motivam relações mais subjetivas com o eventual destinatário humano, não constituem qualquer problema. Antes, pelo contrário, constituem-se num domínio de valências bastante pertinentes que passam a ser exploradas pelo Design e para arte (como retomaremos adiante), em complementaridade com os incontornáveis desempenhos mais objetivos.

Para o Design, a diversidade de leituras interpretativas que se podem estabelecer relativamente aos artefactos passam, assim, a ser permitidas e até promovidas. Tal

subjetividade de leituras, pode até levar a que um artefacto seja preterido a favor de outro, o que não implica, obviamente, que aquele perca objetivamente qualquer componente ou propriedade técnica/ funcional que lhe é fisicamente inerente. Um artefacto permanece instrumentalmente funcional enquanto mantiver intacta a sua integridade física e, nesses termos, nada de subjetivo poderá alterar a fissilidade desse estado. Pode desejar-se, por motivações criativas subjetivas, alterar o desempenho de um qualquer artefacto ou pô-lo a funcionar de uma outra forma, mas, isso não o torna ‘outro artefacto’. Na realidade, só a alteração física operada sobre a sua constituição, a sua configuração ou suas intrínsecas interações mecânicas, poderá resultar em objetivas e concretas transformações.

Para a ciência, contrariamente, apenas uma interpretação da realidade serve; para um mesmo fenómeno, apenas uma única teoria científica pode ser aceite como a mais veraz na explicação e previsão que oferece, pelo que, qualquer outra, que até então tenha tido a sua validade, deixa de a ter198, anulando-se em termos funcionais por revelar não possuir suficiente objetividade, amplitude descritiva ou previsibilidade.

Assim, parece que a relação com a subjetividade não constitui problema impeditivo do funcionamento técnico de um artefacto. E se para o artefacto, tal como para a teoria científica, a presença de contradições no seu âmago é problemática, e se tais contradições comprometem o seu funcionamento, elas serão automaticamente ou facilmente

desmascaradas pela própria objetividade técnica do artefacto físico, ou seja, pela interatividade das suas inerentes materialidade e constituição técnica face a fenómenos físicos universais. Digamos que esta fisicidade do artefacto é incompatível com as contradições199 pois estas não existem no mundo dos fenómenos físicos. Considerando

198 O que não quer dizer que deixem de ser científicas, reiterando-se a ideia Kuhn já referida na nota 191. 199 O material tem sempre razão é um adágio popular que procura aludir, precisamente, à ausência ou deteção de

uma contradição como aquilo que, logo à partida, impede um artefacto de funcionar (de todo ou em parte), ela será objetiva, direta e tecnicamente imputada a qualquer aspeto material que o compõe. A materialidade do artefacto é proposital e representativa das ideias que nele se incorporam pelo projeto, constituindo-se positivamente naquilo que é dado diretamente à observação e à manipulação concreta.

Sendo assim, o problema da falta de objetividade não se coloca em relação ao artefacto, uma vez que este existe pela sua inerente concretude objetiva. Quer isto dizer que um artefacto se apresenta à realidade consubstanciado nos seus próprios dados, os quais se tornam passíveis de serem experimentados, testados e mensurados por ‘contacto direto’. Esses dados levam a que o artefacto – na sua forma materializada e na sua sistémica

compleição (que comporta eventuais interações fisicamente internas e externas diretamente implicadas) – se possa considerar uma experiência científica. Na verdade, existe algo na experiência tangível do artefacto que mobiliza a operacionalidade do sistema hipotético-

dedutivo da ciência, ao proceder-se a criteriosas verificações funcionais, incidentes sobre

certa formulação conjetural (mais ou menos especulatória) feita com base em alguma conceção técnica ou realidade física. É a própria tangibilidade do artefacto que leva a que eventuais contradições, presentes nele mesmo, acabem por se tornar mais diretamente expostas à refutação, ao erro e ao falseamento – i.e., concretamente acessíveis à observação, à experimentação, à análise e à crítica – e a poderem ser desejavelmente eliminadas ou, independentemente de qualquer intenção ou intervenção humanas, a conduzirem automaticamente a uma seletiva inviabilização do artefacto, seja ao nível da sua realização ou, em último caso, ao nível da sua utilização. Esta descrição evoca a subjacência de um “sistema seletivo”200 no domínio técnico que suscitará a consideração, no contexto projetual que lhe é inerente, a existência daquilo que se designa por protótipo – um artefacto com as qualidades do próprio artefacto que pretende descrever e prever. Se a “ciência explora eficazmente a realidade”201, então, nada melhor que um artefacto, dotado do ‘teor de realidade’ que se pretende nele (ou através dele) alcançar (mesmo que em estado simulado), como forma de exploração e de validamento dessa mesma realidade.

200 Comparamos aqui os efeitos do sistema seletivo do sistema natural, com aquilo que se supõe acontecer no contexto

técnico. Fazemo-lo à semelhança da comparação que Heinz Pagels faz para o contexto da ciência: “Um sistema selectivo discrimina e seleciona elementos específicos de um dado conjunto – um reportório de objectos ou conteúdos bem definidos –, com base em alguma característica ou propriedade.” – Sonhos da Razão, p.310.

A definição de sistema hipotético-dedutivo, que se pode resumir a “fazer uma conjetura esclarecida, uma hipótese científica, seguida de rigorosa verificação e crítica desta hipótese.”,202 pode bem integrar a ideia de protótipo; este pode bem ser essa forma de conjetura, essa hipótese científica que se expõe à verificação e à crítica rigorosas, o que faz de qualquer artefacto um protótipo daqueloutro que eventualmente venha a decorrer dele. Um protótipo permite verificar conjeturas e obter informações, projetualmente úteis à realização de alguma versão artefactada subsequente. Esta realização gozará, assim, de eventuais indicações capazes de salvaguardarem a nova versão de erros comprovados, ou de a incrementarem com alguma vantagem experimentada – numa experiência,

relativamente à qual o que virá a seguir tende a colocar-se em ‘melhor posição’ (como nova vantagem) ou, no mínimo, numa ‘alternativa equivalente’ (como proposta variante)–. Dado que um ‘protótipo eficaz’ será aquele que faculta, o mais possível, verificações próximas de condições reais, então, nestes termos, que protótipo poderá ser mais competente que o próprio artefacto no seu contexto de serviço efetivo?

A diferença entre um protótipo e um artefacto comum, é que o primeiro assume e utiliza o seu carácter provisório (laboratorial, não publicável), enquanto o outro se abstrai dessa sua respetiva componente transitória, tornando-a discreta pela sua ‘diluição’ no seio do seu mais declarado desempenho, o qual assim nos vai distraindo daquele (mais inelutável que eventual) cunho provisório.