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2.5 CIÊNCIA e complexidade

2.7.1 Da complexidade ao projeto

Aquilo que a história da complexidade conta pode ser relatado por referências àquilo que a

informação faz quando se combina com mais informação. A informação foi-se

combinando indefinidamente até chegar a um nível de ordenamento tão exclusivo quanto aquele que se traduziu na fabulosa complexidade do ser humano. O que aconteceu até aí pode resumir-se a uma insondável rotina recombinatória processada ao nível da matéria e da energia. Esta rotina, através da sua vertente orgânica, acabou por fazer emergir a vida, apesar de sempre prescindir desta para poder continuar na sua produção de limitada diversidade (restrita a pouco mais que o representado na tabela periódica mas, porém, ubiquamente disseminada por todo o Universo). Assim, instaurado o domínio biológico, desenvolve-se uma nova rotina de ordenamentos por recombinação orgânica cuja dinâmica, partindo da informação genética e orientada para a sobrevivência, sempre prescindiu das ideias e do projeto para poder prosseguir criativamente com a ‘sua’ vida (infinitamente mais diversificada que no caso da matéria) durante milhões de anos. Isto, claro está, até ter emergido a espécie humana – a única espécie que, como tal, se pôde afirmar dominante por ter começado a ter ideias e a projetar para nunca mais poder prescindir disso (q.v. It. 2.2.8; Figura 2).

Num instante, a capacidade de ter ideias viria a revelar-se vantajosa num contexto

biológico de sobrevivência, mas, não só, também chegaria a ir ainda muito mais para além desse contexto. Tão rápida e intensamente isso se foi manifestando que a recombinação de ideias se transformou na mais descondicionada das rotinas, permitindo-se crescer,

recombinar e evoluir indeterminadamente, desde que ocorresse num cérebro humano – o espaço mais intensa e dinamicamente evolutivo da Natureza – e desde que se pudesse refletir ou incorporar, através do projeto, na realidade envolvente. Simultaneamente, as conquistas resultantes dessa rotina, nunca deixando de ser significativas para um certo progresso em termos de sobrevivência, começaram a afirmar uma tendência de progressão noutro sentido – o do bem-estar238. De facto, é o bem-estar, promovido pela virtuosa

238 “(…) com efeito, o homem mostrava um esquisito e obstinado empenho em viver. Mas esta expressão, percebemo-lo

agora, era equívoca. O homem não tem empenho algum em estar no mundo. No que tem empenho é em estar bem. Só isto lhe parece necessário e tudo o resto é necessidade apenas na medida em que torne possível o bem-estar. Portanto, para o homem só é necessário o objectivamente supérfluo. Isto julgar-se-á paradoxal, mas é a pura verdade. As

combinação de mais informação, de mais conhecimento, de mais ideias e de muitas correspondentes concretizações (realizadas e realizadoras), que acaba por se constituir numa rotina geradora de um certo efeito aditivo em termos de artificialidade. Esta aditividade inscreve-se na própria ‘condição técnica239 do ser humano, ou seja, na sua mente, nas suas ideias e na sua ação. O seu sistema nervoso e cerebral encontra-se preparado para detetar e interpretar sinais que indiciem a ‘proximidade’ de potenciais vantagens a adquirir ou desvantagens a evitar. Tal sistema encontra-se sensível a ‘tudo’ quanto, interna ou externamente, lhe possa trazer boas ou más sensações, e é capaz de processar automaticamente toda essa experiência, emoções e sentimentos numa mente que se vai capacitando segundo infinitas possibilidades de recombinação neural. O ser humano, assim dotado de uma mente cuja ‘realidade interior’ é transformável no confronto com a realidade exterior (segundo um complexo processo de geração, recombinação e de adaptação de ideias), extrapola ou intui (recorrendo a esse mesmo processo) que a

realidade que lhe é exterior pode também ser transformada ao incorporar nela a informação proveniente das suas ideias (q.v. It. 2.3.9; 2.4.2). Considerando que essas ideias procuram encontrar-se em sintonia com a realidade envolvente através de um promitente projeto – no sentido de poderem conduzir o ser humano até junto daquilo que causa prazer ou vantagem e afastá-lo ou preservá-lo do que causa dor ou prejuízo – se de algum modo as mesmas conseguirem ser incorporadas nessa realidade, então supõe-se que esta passe a poder ser moldada e a dotar-se de condições que irão aproximá-la progressivamente de todos os interesses humanos.

necessidades biologicamente objectivas não são, por si, necessidades para ele. Quando se encontra limitado a elas nega-se a satisfazê-las e prefere sucumbir. Só se convertem em necessidades quando aparecem como condições do "estar no mundo", que por sua vez só é necessário de forma subjectiva; a saber, porque torna possíveis o "bem-estar no mundo" e a superfluidade. Daí decorre que até o que é objectivamente necessário apenas o é para o homem quando é referido à superfluidade. Não há dúvida: o homem é um animal para o qual só o supérfluo é necessário. (…) E isto é essencial para entender a técnica. A técnica é a produção do supérfluo: hoje e na época paleolítica. (…) Agora podemos aceitar esta fórmula que ontem rejeitávamos, porque agora sabemos que as necessidades humanas são objectivamente supérfluas e que só se convertem em necessidades para quem necessita do bem-estar e para quem viver é essencialmente viver bem. Eis aqui por que o animal é atécnico: contenta-se com viver e com o objectivamente necessário para o simples existir. Do ponto de vista do simples existir o animal é insuperável e não necessita da técnica. Mas o homem é homem porque para ele existir significa, com agora e sempre, bem-estar; por isso é a nativitate técnico criador do supérfluo. Homem, técnica e bem-estar são, em última instância, sinónimos.” – Ortega y Casset: Meditação Sobre a Técnica, p.36; p.37.

239 “Eis aqui por que o homem começa quando começa a técnica. A folga, maior ou menor, que esta lhe abre na natureza

é o alvéolo onde pode alojar o seu excêntrico ser. Por isso insistia ontem em que o sentido e a causa da técnica estão fora dela; a saber: no emprego que o homem dá às suas energias deixadas vagas, libertadas por aquela. A missão inicial da técnica é essa: dar liberdade ao homem para poder entregar-se a ser si mesmo.” –idem., p. 53.

Também Dominique Bourg, na sua obra O Homem Artifício (onde se opõe a uma emancipação da técnica face ao homem), resume esta ideia (que aqui designamos de «condição técnica humana» como sendo o coincidir do homem com a sua tecnologia) assim: “O homem artifício é de forma inseparável faber e sapiens. Não poderíamos ter com a natureza uma relação que não fosse artificial” – p. 329.

O projeto e a ação técnica tornam-se, então, por excelência, nos meios pelos quais o ser humano procede a tal incorporação de ideias na realidade (q.v. It. 2.3.9; 2.4.2) e a transforma de modo a torná-la mais propícia ao seu bem-estar.240

Resgatado da mera rotina de sobrevivência biológica, através de um longo processo de hominização, o ser humano toma consciência do seu bem-estar e, ao mesmo tempo, das suas próprias faculdades e limitações para operar sobre a realidade através da antecipação projetiva e da ação técnica. No confronto entre Natural e Artificial, tudo se pode resumir à procura humana orientada para o aproveitamento de recursos e fenómenos encontrados na Natureza e ao acautelamento dos efeitos que daí provenham. Fora disto apenas existem as “coisas por sua própria conta” 241.