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3.1 INTERPOLAÇÃO PROJETUAL e complexidade

4.1.1 O artefacto de ação gráfica

Um dos indícios mais distintivos da humanidade pode muito bem ser aquele traço que é deixado sobre um suporte para ser lido pela posterioridade. O registo gráfico é talvez a mais ancestral forma de armazenar informação, de tornar memoráveis as ideias e de difundir o conhecimento humano.

Só muito recentemente, há cerca de apenas 5500 anos e tendo já decorrido um longo período de existência da espécie humana, o ser humano, social e culturalmente organizado, terá descoberto a escrita como forma gráfica associada à oralidade da sua linguagem. Manifestável através de pictogramas, ideogramas, grafemas ou símbolos, a escrita deu então origem àquele período que os antropólogos, paleontólogos, arqueólogos e historiadores denominam de história. Porém, desde bastante cedo, o ser humano pré- histórico terá começado a desenhar, passando a simbolizar, a representar e a expressar ideias de forma não-verbal.

O gesto de desenhar com um pedaço de madeira carbonizada, riscando-se sobre uma superfície abrasiva, ou com uma pedra pontiaguda, gravando-se sobre uma superfície

riscável poderá, ainda hoje, em termos de experiência emocional, de eficácia e de espontaneidade, equiparar-se àquele que os nossos ancestrais executavam há mais de 40 mil anos.

O mecanismo mental que permite ao ser humano referir-se a realidades, internas ou externas, representando-as por símbolos ou por quaisquer outras configurações gráficas, mantém-se, nos nossos cérebros, ainda, sob o mesmo esquema operativo. É este

mecanismo que tem desde sempre possibilitado à nossa espécie transmitir ideias e gerar conhecimento e fazer com que nós conseguíssemos evoluir como nenhuma outra espécie o conseguiu.

Para além da adoção de alguns expedientes técnicos – como a descoberta da perspetiva ou a invenção de alguns instrumentos coadjuvantes à eficácia na representação gráfica – poucos aspetos terão levado o desenho a evoluir ao longo dos tempos. Este facto, contudo, terá contribuído para o carácter intemporal, ubíquo e universal que tão bem o caracteriza. Ainda hoje, tal como em qualquer tempo, aquilo que continua a bastar ao ser humano para poder comunicar ou registar graficamente qualquer ideia, simplesmente, poderá resumir-se a um instrumento riscante e a uma superfície capaz de reter o seu traço.

É lógico crer-se que das realizações humanas que fizeram evoluir as civilizações até aos dias de hoje nem todas tiveram um estado antecedente na forma de um registo gráfico. De qualquer modo, é plausível reconhecer-se que cada uma dessas realizações (fossem elas de carácter científico, técnico ou artístico) poderia ter saído da mente humana e passar a ficar plasmado num suporte, através do contacto de alguma ponta de um qualquer instrumento riscador, e aí permanecer materialmente retida para a posteridade na forma de

interpretáveis sinais gráficos.

É, de facto, extraordinária essa possibilidade que existe em se poder produzir, registar e difundir todo o conhecimento sobre uma superfície bidimensional, e, a partir daí – a partir do desenho, da escrita ou de qualquer representação gráfica –, poder-se chegar a todo o género de conceitos e de artefactos que conduziram a humanidade, desde os tempos mais recônditos, ao seu estado atual de progresso.

O lápis apresenta-se, assim, como um artefacto cuja compleição simplificada se propõe facilitar, ainda mais, esse enorme potencial inerente ao gesto espontâneo que desenha, escreve e comunica através do registo graficamente legível.

Mesmo nos contextos mais complexos e exigentes, podemos imaginar o simples lápis, nas mãos de especialistas, a desempenhar a sua indispensável função de registo associável à escrita e ao projeto. Podemos imaginar os inúmeros traçados executados a lápis que anteciparam a realização de cada um dos componentes integrantes do programa espacial que fez chegar seres humanos à lua. E, ainda, podemos imaginar esses seres, em pleno espaço, na ausência de gravidade, a fazerem as suas anotações com um simples lápis e, certamente, com a mesma naturalidade e eficácia que aqui na Terra.261

É certo que a própria aparência do lápis veicula a ideia de simplicidade, mas se esta for devidamente analisada, relativamente a tudo aquilo que a montante mais diretamente estará implicado na obtenção tal de artefacto, essa mesma simplicidade revelar-se-á bastante complexa. Ainda assim, comparando-se toda essa complexidade com toda aquela que estará implicada na obtenção de um terminal de computador – representante da sofisticada tecnologia que é geralmente apontada como inevitável supressora do lápis –, as diferenças revelam-se incomensuráveis.

Esta comparação com o computador é, hoje em dia, inevitável. É certo que a jusante, relativamente a ambos artefactos – um lápis e um terminal de computador portátil – as complexidades envolvidas em cada um deles apresentam entre si uma diferença mais equilibrada, ou seja, quando se pretende escrever ou desenhar, seja com um lápis ou com um interface computadorizado, o pensamento e a gestualidade, implicados em cada tipo de utilização são executados de forma algo semelhante (podendo mesmo verificar-se um certo esforço em emular a natural e espontânea operatividade relativa ao manuseio do lápis, por parte dos processos digitais ao serviço da representação gráfica,).

Tomando-se como referência o efeito do registo gráfico, há que reconhecer que aquilo que os instrumentos digitais permitem realizar – automatismos que facilitam a precisão de traçado, a alteração da cor, a expressão ou a escala do traço, ou que facilitam a correção e arquivamento de registos gráficos, etc. – é cada vez menos comparável com aquilo que um

261 A este propósito costuma relatar-se a história, em tom de anedota, de que o governo dos Estados Unidos teria gasto

milhões para desenvolver uma caneta (que viria a ser a Caneta Espacial Fisher) capaz de escrever no espaço enquanto os Russos teriam usado um simples e comum lápis de grafite para o mesmo efeito.

A este respeito importa desmistificar alguns aspetos:

O material escrevente do referido “lápis comum” teria de ser cera e não grafite, já que qualquer partícula deste material (altamente condutor), à solta dentro de uma nave espacial e na ausência da gravidade, constituiria uma verdadeira ameaça, dado poder alojar-se num qualquer circuito eletrónico e danificá-lo gravemente por curto-circuito. As pesquisas para o desenvolvimento da Caneta Espacial Fisher foram inteiramente financiadas pelo seu inventor. Não houve financiamento por parte do Governo dos Estados Unidos.

O governo Russo também adquiriu canetas daquela marca para utilizar nas suas missões tripuladas ao espaço. fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/Caneta_Espacial

mero lápis permite realizar sobre uma folha de papel. No entanto, também há que

reconhecer que o grau de disponibilidade, de autossuficiência e de espontaneidade que se encontra envolvida na utilização de um comum lápis, constitui-se em algo que

simplesmente não é comparável àquilo que um computador necessita para simular tal utilização. A esse nível, por enquanto, o lápis ainda assim pode ir sendo considerado (na constituição que lhe é típica) como um artefacto mais eficiente que qualquer versão digital existente. Isto é tanto verdade quanto se considere que essa eventual versão, no que

respeita á transformação de energia e de materiais necessários à obtenção de um

instrumento apropriado ao ato espontâneo de desenhar ou de escrever, implicará sempre uma maior diversidade de encargos, ou seja, dependerá de muito mais fatores para existir e envolverá muitos mais recursos para se manter operativo ou para ser utilizado que aqueles respeitantes ao lápis.

No âmbito das possibilidades de representação, de expressão e de comunicação gráfica inerentes ao desenho e à escrita, comparar o lápis com um computador leva a que os parâmetros em confronto não se refiram apenas a aspetos de complexidade, subjacentes tanto a um como a outro (extravasando-se as próprias constituições físicas respetivas), mas obriga a que sejam também confrontados os aspetos de desempenho respetivamente

oferecidos. Ora, em termos de desempenho, o computador está constantemente a potenciar os seus efeitos e os recursos que os possibilitam, enquanto o lápis, na sua essencialidade constitutiva, apenas pode ver os seus efeitos potenciados através de uma direta

dependência da habilidade e intencionalidade do seu operador.

Se as tecnologias digitais (no prosseguimento do sentido de apuramento e de incrementação das suas potencialidades) hipoteticamente conseguissem um grau de acessibilidade tão universal e um teor de complexidade (de impacto ambiental e outros encargos) tão baixos ou tão próximos daqueles implicados na obtenção e uso do lápis, isso corresponderia, plausivelmente, à anulação definitiva da utilidade deste antigo artefacto. Porém, enquanto o lápis for possibilitando às pessoas expressarem-se, comunicarem e projetarem, do mesmo modo – acessível (direto, económico e espontâneo) e sustentável (simples, pouco impactante e utilizando recursos renováveis) – que desde sempre tem vindo a possibilitar, certamente que as condições para ele existir continuarão favoráveis. Um dos maiores inconvenientes inerentes ao lápis prende-se com o facto de a sua

não se refere apenas à erosão da ponta de grafite em contacto desgastante com o suporte gráfico abrasivo, mas, sobretudo, pela necessidade de ter que ser repetidamente afiado, tantas vezes quantas as necessárias para manter a uniformidade do traço que se vai alterando (e engrossando) à medida que vai sendo produzido, i.e. à medida que se vai depositado, como material erodido, no suporte que o retém como marca gráfica.

Terá sido a procura de resolução deste especto problemático que levou ao aparecimento de algumas propostas de variação, adaptação ou complementação relativas à estrutura

constitutiva e ao desempenho do simples lápis.

Para além da popular e útil borracha ou de um (talvez menos pertinente) clip para fixação ao bolso, propostos como complemento à funcionalidade do lápis, foram ainda patenteados outros dispositivos com o propósito de facilitarem o afiamento da extremidade escrevente do lápis (ver Figura 9). Contudo, estas melhorias não chegavam a exercer significativas alterações à estrutura básica e arquetípica deste artefacto. Só quando o núcleo de grafite, já normalizado na sua forma cilíndrica e longilínea, passou a ser considerado

autonomamente, emancipando-se da sua ancestral proteção de madeira, e a ser conjugável com outros envoltórios, outros materiais e a implicar certos acionamentos mecânicos, é que então se assiste ao desenvolvimento de novos artefactos capazes de virem a superar o próprio desempenho básico do lápis.

Figura 9 – Três propostas (apresentadas nos respetivos documentos de registo de patente) de dispositivos de afiar lápis. Notar o sentido evolutivo do modo como cada dispositivo se relaciona com o lápis: de uma maneira acessória e

independente - como a do apetrecho ilustrado à esquerda - para uma maneira mais direta e integrada – como a da cápsula ‘enroscável’ (afiadora e protetora) à direita(fonte: http://www.google.com/patents, acedida em 12/1/014). Ver tambémFigura 14.