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2.5 CIÊNCIA e complexidade

2.5.3 Seleção de conhecimento e de artefactos

Nestas considerações, devemos ver mais que um simples paralelismo entre teorias científicas e artefactos. Na verdade, embora a ênfase neste paralelismo possa sugerir que exista um ‘campo científico/conceitual’, onde as teorias são melhoradas a partir da

‘problematização teórica/racional’, e que, por outro lado, separadamente, haja um ‘campo técnico/empírico’ onde os artefactos são melhorados a partir de uma ‘problematização prático/racional’, o que é facto é que a história da ciência e da tecnologia têm registado inúmeros entrosamentos evolutivos entre os dois campos de exploração. Este

entrosamento, no entanto, não obedece a qualquer regra hierárquica; a eventual relação intercoadjuvante entre ciência e tecnologia, não implica que o avanço de uma dependa do avanço da outra. Ambas podem evoluir, independentemente, nos seus próprios domínios.

202 Heinz Pagels: Sonhos da Razão, p.309.

Mas, há que registar a particularidade de que o conhecimento científico, para que possa eventualmente inspirar uma inovação tecnológica, não tem que se reportar necessariamente aos seus conceitos mais recentemente consolidados203; qualquer que seja a teoria,

independentemente da época em que tenha sido validada e desde que se encontre vigente, ela está sempre disponível para, em qualquer altura, ser aplicada num novo e inovador artefacto.

Uma teoria vigente é um conhecimento que mantém a sua vantagem no “jogo da verdade e do erro”204. A partir do momento em que o erro, por alguma forma de evidência, se revela no seio de uma teoria, esta perde esse jogo, abandona-o e, em princípio, desaparecerá para sempre do âmbito da utilidade científica (a favor de uma mais verdadeira).

No caso de um artefacto, ele pode ser ‘ultrapassado’ por outro e, ainda assim, coexistindo com este, continuar em bom funcionamento e em condições válidas de utilidade por longos anos. Um artefacto mais eficaz, mais recente e mais sofisticado, não anula definitivamente os seus antecedentes. Estes, apesar de poderem ter sido relegados (por qualquer interesse ou desinteresse) podem continuar tecnicamente funcionais e a poderem ser considerados no âmbito de uma qualquer utilidade.205

Não é tanto no “jogo da verdade e do erro” que a inovação tecnológica se debate mas, mais concretamente, no ‘jogo da eficácia e da complexidade’. Se um artefacto fosse uma ideia teórica, a ‘eficiência’ seria a ‘verdade’ a procurar – a eficácia aliada à simplificação –, enquanto o ‘erro a evitar’ corresponderia à ineficácia, à complexidade ou à junção de ambas. A vantagem de um artefacto face a uma teoria é que aquele, em si mesmo, se constitui no instrumento da sua própria verificação (i.e. verificação do seu teor de “verdade” ou de “erro”, relativamente a um desempenho de referência projetado como finalidade). Um artefacto, enquanto procura corresponder a um desempenho pré-definido pelo projeto, torna-se passível de ser avaliado empiricamente (relativamente à forma como se fazem corresponder a essa predefinição), e torna-se objetivamente mensurável pela sua

203 “(…) o conhecimento científico que estimula a inovação não é necessariamente o mais recente, nem tem de surgir na

sua forma mais pura; concepções em segunda ou terceira mão dos avanços científicos podem igualmente servir à tecnologia.” – George Basalla: A Evolução da Tecnologia, p.96.

204 “Eu disse que a verdade da ciência não estava nas suas teorias, mas no jogo que permitia a confrontação dessas

teorias, no jogo da verdade e do erro; a ciência não possui a verdade, mas joga num nível da verdade e do erro; (…) Direi ainda que as verdades são ‘biodegradáveis’;” – Edgar Morin: Ciência com Consciência, p.155.

205 O editor da revista Wired, Kevin Kelly, conta que, ao procurar saber quantos produtos do catálogo Motgomery Ward’s

de 1895 podiam ainda ser requisitados nos dias de hoje, ficou surpreendido ao verificar que, dos produtos constantes numa página selecionada como mais representativa de uma certa desatualização, todos eles ainda se encontravam em produção. – In. www.ted.com/talks/kevin_kelly_on_how_tecnology-envolves.html/ - (gravado em Fev. 2005 e publicado em Nov. 2006)

comparação com outros artefactos mais ou menos eficazes, mais ou menos complexos. Isto leva a que os artefactos antigos e recentes, mais simples e sofisticados, possam coexistir na sua aproximação a um certo âmbito de desempenho onde poderão ser considerados

isoladamente ou comparados entre si, sob vários níveis de validade, e de acordo com uma certa relatividade de critérios ou contextos. No ‘contexto do transporte pessoal’, por exemplo, pode dispor-se de uma diversidade de artefactos, os quais, independentemente de serem ou não os mais recentes, de estarem ou não ultrapassados, de serem mais

sofisticados ou menos complexos, poderão todos eles ser válidos para levar alguém de um lugar até outro. A escolha do artefacto, no sentido de se obter determinada utilidade, é só uma questão da sua disponibilidade e da conveniência do seu préstimo para alguém. O mesmo já não pode ser dito em relação à ‘escolha’ de uma teoria científica; uma teoria assim, não sendo uma doutrina nem um artefacto, não pode ser procurada nem encontrada por uma questão de interesse conveniencioso (político, religioso ou pessoal). Também, como já foi dito, uma teoria ultrapassada deixa simplesmente de funcionar; não serve mais para prever ou explicar o quer que seja, passando, portanto, a anular-se, deixando de poder sequer ser uma alternativa disponível para uma qualquer conveniência.

Se, neste sentido, se pode dizer que o progresso tecnológico é cumulativo, não o é apenas pelo processo de incrementação do conhecimento que promove e utiliza, é-o, também em termos físicos e materiais – cada vez que surge uma inovação esta não anula

automaticamente os artefactos anteriores, menos eficazes, menos eficientes ou menos sofisticados, antes, junta-se a estes e, assim, contribui para o incremento de um conjunto de alternativas funcionais. Qualquer artefacto, em plena função, pode eventualmente vir a ‘inspirar’ a emergência de uma inovação (expressável numa melhoria ou numa alternativa radicalmente diferente) e continuar a funcionar e a existir, não tendo que ser relegado de imediato nem, tão pouco, desaparecer para sempre quando tomado como obsoleto. Tal tendência cumulativa, por seu turno, já não se processa da mesma maneira em termos de progresso científico206. Em ciência, uma teoria que apresente ‘mais verdade’, que explique um fenómeno de forma mais rigorosa e mais profundamente que uma outra

206 “É fácil cair na armadilha de pensar que o progresso científico é inteiramente cumulativo: uma acumulação inexorável

de factos. Não é, de modo nenhum, esse o caso. A ciência não avança apenas quando faz novas descobertas. Por vezes, avança quando demonstra que as ideias existentes estão erradas ou que algumas medições foram de certo modo parciais. A tendência geral pode ser avançar, como a corrente de um rio, mas, como o movimento de uma folha à superfície da água, o caminho da ciência poderá sofrer avanços e recuos.” – John D. Barrow: Op. Cit. p.93.

vigente, passa a existir como ‘única’, mesmo que esta, mais completa, tenha, de algum modo, derivado daquela que foi ultrapassada.

Na verdade, isto decorre de uma curiosa propriedade do conhecimento. A nível material e energético, podemos servir-nos de uma diversidade de artefactos, com diferentes teores de desempenho, sendo possível optar pelo uso de um artefacto com baixo grau de eficiência ao mesmo tempo que, ou em vez de, outro mais moderno e eficiente. Com o conhecimento, tal não se passa bem assim. O conhecimento, uma vez incrementado e tomado como mais exato, recente ou verdadeiro, não pode ser preterido em prol de um conhecimento ‘menor’, anterior, menos exato ou menos verdadeiro. O conhecimento, quando consciente, não pode ‘tornar-se desconhecido’, pelo contrário, tende a utilizar-se sempre na sua versão mais atualizada. Isto pode levar-nos a considerar que o ‘desconhecimento’207 só pode ocorrer pela amnésia, pelo esquecimento ou por alguma anomalia de ordem neurológica, não pelo facto de não ter ocorrido uma eventual aquisição de conhecimento. Não ter havido

aquisição de conhecimento é uma constante da vida que só pode designar-se por ‘falta de conhecimento’. Embora se possa fingir ter falta de conhecimento acerca de algo, tal não pode ser considerado desconhecimento. Neste caso, o conhecimento existe e não foi anulado, pelo que poderá sempre ser utilizado para qualquer efeito, quanto mais não seja para participar no fingimento da sua própria inexistência.