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A emoção estética é, como se sabe, comumente associada à produção e à contemplação da obra de arte. Por sua vez, a Psicologia Evolucionária diz-nos que essa emoção, tal como muitas outras que compõem o nosso apetrechamento emocional, faz uso de

funcionalidades neurológicas que foram naturalmente programados para exercerem o seu desempenho adaptativo em conformidade com situações vitais relacionadas com o meio físico e social ancestral166. Ao mesmo tempo, Pinker diz-nos que “o valor da arte é amplamente desvinculado da estética”, justificando que “uma obra de arte inestimável perde todo o seu valor caso se descubra que se trata de uma falsificação”167. Na verdade, esta desvinculação da estética refere-se a uma certa necessidade de independência face àqueles aspetos estimulares que são diretamente explicitadas pela aparência de uma obra de arte e que, apesar de serem passíveis de desencadear uma genuína emoção estética,

166 “Da mesma forma que um psiquiatra tem que olhar para o historial de um paciente para o compreender melhor no

presente, também nós temos de olhar para o passado da nossa espécie para compreender as nossas peculiaridades modernas.

Esta tomada de posição é chamada de Psicologia Evolucionária — um fascinante campo da ciência — nascida há 40 anos. É um sólido exemplo de sucesso de unificação científica em curso, concebida através de uma combinação profunda e significativa de Psicologia, Antropologia, Arqueologia, Biologia Evolucionária, Linguística, Neurociências, e

Inteligência Artificial. A Psicologia Evolucionária tem estudado o cérebro a partir da perspetiva evolucionária,

originando dessa forma algumas contribuições extremamente relevantes. Nessa perspetiva, tem sido fortemente suportada pela Arqueologia Antropológica no seu estudo empírico da evolução cultural da humanidade.” – Luís Moniz Pereira:

Jornal de Ciências Cognitivas. (acedido em http://jcienciascognitivas.home.sapo.pt/08-12_pereira.html a 22-10-2014) 167 Steven Pinker, Op. Cit., p.547.

Também em Nelson Goodman: “A questão obstinada de saber porque razão há qualquer diferença estética entre uma falsificação enganadora e uma obra original põe em causa uma premissa básica da qual as próprias funções do colecionador, do museu e do historiador da arte dependem. Um filósofo da arte apanhado sem uma resposta a esta questão fica pelo menos tão desamparado como um conservador de pintura apanhado a tomar um Van Meegeren por um Vermmer.” – Linguagens da Arte, p.123.

admiração e ‘sentimento de beleza’ no observador, são também mais suscetíveis às imitações. Existem, no entanto, outros aspetos, de ordem cognitiva, que concorrem para a apreciação e legitimação da obra de arte, e que se referem à sua contextualização – trata-se de informações acerca de quem a fez, das suas motivações para o fazer, de como foi feita, das contingências da época e do local em que foi feita, etc. Será no confronto destes

aspetos cognitivos com os aspetos estimulares que, naturalmente, se determinará o valor da

obra de arte e se identificam os predicados que atestam a sua originalidade. Quanto à

legitimação da obra como sendo arte, ela depende, em primeiro lugar, de ter sido proveniente de alguma emoção estética e, em segundo, de poder ser fonte de alguma (outra) emoção estética, e isso pode suscitar averiguações, interpretações e argumentações que, como se adivinha, encontrar-se-ão bastante suscetíveis à polémica e à controvérsia. Um aspeto marcante (talvez problemático) que a arte tende a manifestar, nomeadamente relacionado com as suas prerrogativas da originalidade e da criatividade, é que a sequência histórica das suas inovações é feita através de ocorrências que parecem não se consumarem por melhoramentos sobre o ‘já estabelecido e realizado’ por outros autores. A arte poderá aludir, em termos simbólicos/ estéticos, a realizações antecedentes oriundas do seu próprio domínio168 – à semelhança de que se passa, em termos funcionais, no domínio biológico e tecnológico –, ou de quaisquer outros. Mas, não obstante isso, e ao contrário do que se passa no domínio da tecnologia, a arte não leva a que as suas realizações mais recentes sejam propriamente ‘melhores’ que outras que as antecederam169.

Considerando que os critérios para a geração de uma obra de arte são subjetivos, levando esta a ficar determinantemente vinculada ao domínio autoral, psicológico e individual do próprio artista, deveremos supor que só este reunirá as ‘condições legítimas’ para proceder a melhoramentos das suas próprias realizações. Para o bem e para o mal, a destruição

168 “Todas as formas estéticas, todas as obras de arte, musical ou literárias mantêm diversos modos de relação com as que

as precedem. Esta relação pode ir da generalidade difusa a uma atenção intensa e específica. Pode acarretar a imitação, a rejeição, a variação, o disfarce, a paródia, a citação directa ou indirecta. Os modos de alusão, de referência declarada ou encoberta, são propriamente incomensuráveis. Nenhuma obra, por mais iconoclástica, por mais «original» (mas que significa exactamente o termo «original»?) que seja, chega até nós ou ao mundo sem precedentes.” – George Steiner,

Gramáticas da Criação, p.282.

169 “O que poderá ser, em contrapartida, [a um equivalente avanço tecno-funcional] um avanço relativamente a Homero

ou a Sófocles, a Platão ou a Dante? Que teatro progrediu para além do Hamlet, ou que romance supera Madame Bovary ou Moby Dick? Um poema lírico, digamos, de Pilke ou de Montale será mais perfeito que um de Safo ou Catulo? Será Stravinsky superior a Monteverdi? Picasso ou Bacon ultrapassarão Giotto? Levantar a questão nestes termos é, por si só, sugerir a impressão de estarmos perante um absurdo, uma pergunta mal formulada. (…) uma casa de Frank Lloyd Wright ou o centro de arte de Jean Nouvel em Lucerna é um avanço relativamente ao Parténon ou à praça princimpal de Sienna, uma sua superação? As Imagens de Debussy são mais perfeitas que o Cravo Bem Temperado de Bach ou que as

criativa schumpeteriana não é propriamente aplicável no domínio da arte. O critério de

‘melhor’ não se aplica na arte como se aplica na técnica.170

Nos domínios tecnológico e biológico as noções de solução, de adaptação, de

melhoramento e de inovação são aquelas que se encontram correlacionadas com a criatividade que, nos respetivos parâmetros de desenvolvimento evolutivo, promove a

transformabilidade, a diversidade e a complexidade. Já no campo da arte, relativamente aos parâmetros do seu desenvolvimento evolutivo, encontramos fortes vínculos com as noções de representação, de expressividade, de beleza, de originalidade e de novidade nas suas variadíssimas possibilidades alternativas. Por esta ótica podemos ver a expressividade e a representação como ponto de partida para uma certa arte espontânea que, com o desenrolar do tempo, pôde ir aceitando diversas regras e influências, desde as noções de beleza, proporção e harmonia até à noção mais técnica da perspetiva, passando até por determinantes de ordem moral e religiosa. Por seu turno, a originalidade que poderia vislumbrar-se em alguma idiossincrasia autoral encontrava-se (num período entre a Idade Média e os academismos do séc. XVII e XVIII) tomada pelas restrições de ordem temática, de ordem técnica ou de género, não deixando grande espaço à mudança inventiva. Esta, porém, acabará por emergir (e afirmar-se nos séculos seguintes) em reação a esses tempos, manifestando-se por diversos ‘vanguardismos’ que procuram, pela subversão, pelo protesto e até pelo escândalo, uma oposição ao tradicionalmente estabelecido. A arte

contemporânea parece situar-se no extremo desta oposição, afirmando-se por aquilo que a

socióloga da arte Nathalie Heinich designa por “regime de singularidade”171. Neste regime, o que importa é procurar evidenciar algo como sendo arte e fazê-lo por qualquer meio – não importando realmente qual, desde que seja fora da norma ou do espectável –

independentemente de qualquer adaptação ao senso comum (e até ao bom senso) ou a qualquer outra sensibilidade, artística, estética, moral, técnica, etc. Neste regime, o ‘carácter artístico’ reside na própria atitude do artista que, assim, se torna mais central e

170 A haver destruição criativa na arte (tal como Schumpeter sugere haver na Técnica) ela não significa superação do

anteriormente estabelecido por ação de melhoramentos, a não ser que estes sejam efetuados pelo próprio artista. Ou, excecionalmente, por algum gesto transgressivo como aquele (que a socióloga da arte Nathalie Heinich indica como sendo “um caso de inovação no minimalismo [artístico]”) em que Robert Rauschenberg expôs os vestígios de um desenho original, que lhe foi oferecido por Willem de Kooning, depois de o ter apagado com uma borracha.

171 “Pour qu’arrive l’art moderne, il fallu un changement très profond de la concepcion de l’art, qui a sou-levé

protestations et scandales. Ce changement amenait l’idée que l’on pouvait créer des oeuvres qui n’avaient jamais été vues auparavant. C’est ce que j’appelle le «regime de singularité», qui juge interéssant le fait d’être different, hors du commun, bizarre même.” – Nathalie Heinich: La Course aux Avan-gardes, le Jeu de l’Art Contemporain, In. Les Grands Dossieres

determinante que o próprio objeto (independentemente do carácter deste, da sua

originalidade, vulgaridade, complexidade, interatividade, …) associado a essa ‘atitude’172. Os resultados dos esforços na criação artística são ‘não progressivos’, no sentido em que eles não decorrem do uso da eficácia e da funcionalidade para, objetivamente, se irem alcançando melhoramentos ao nível do bem-estar e da eficácia. Estes são (como sempre foram), prerrogativa da atividade tecnológica (quanto à avaliação final de tais

melhoramentos, isso é outra história). Os esforços na criação artística, por seu turno, (como já referido) vão celebrando ou aproveitando esse bem-estar, ‘servindo-se’ (usufruindo ou aproveitando) do seu ‘estado funcional adaptativo’ e aliviando-se de certos

condicionalismos e desempenhos a que a ‘sociedade do bem-estar’ se encontra obrigada. Para a arte, tal estado funcional adaptativo não passa de uma conveniente circunstância contextual, a juntar a um certo estado de aptidão que desde há muito a Natureza tem vindo a sintetizar na espécie humana.

Ficamos fascinados ao observarmos os pormenores das representações do Grande Painel de Chauvet, e esse fascínio parece intensificar-se ao percebermos que aqueles figurativos desenhos tão expressivos (representando graficamente diversos herbívoros e predadores) foram realizados há cerca de 36 mil anos; podemos ficar igualmente fascinados com o surpreendente efeito perspético dos frescos barrocos de Adrea Pozzo, realizados no teto da

igreja de Sant’ Ignazio, em Roma, há pouco mais de 3 séculos; podemos ainda

experimentar congénere fascínio ao contemplarmos o grafismo da pintura futurista, Estado

de Alma, realizada por Boccioni, há pouco mais de um século, ou podíamos até ficar

fascinados ao apreciar uma eventual obra contemporânea que faz uso da mais recente tecnologia digital. Mas, será que se pode proceder a alguma comparação avaliativa relativamente às experiências estéticas sentidas na apreciação das obras ou, sequer, relativamente a uma certa ‘qualidade artística’, será que se poderiam encontrar teores evolucionais proporcionalmente comparáveis a um tão extenso período (mais de 36 mil anos) em que se foram manifestando? Poder-se-ão encontrar assim tantas evoluções progressivas/ transformativas – derivadas de eventuais ‘contributos melhorativos’,

recebidas ou prestadas entre cada obra artística – ao longo de tantas dezenas de milhares de anos?173

172“Il faut biem comprendre que l’ouvre n’est plus dans l’object, mais dans le geste (…)” – Idem, p.60.

173 “Levantar a questão nestes termos é, por si só, sugerir a impressão de estarmos perante um absurdo, uma pergunta mal

Poder-se-á falar de influências dentro do mundo das artes, mas falar de ‘melhoramentos inovativos’ em termos artísticos, contributivos para o quer que se possa considerar ser um

progresso da arte, comparável ao que se verifica ser um progresso na técnica, isso é outra

questão. Tais melhoramentos só poderiam ser encontrados dentro da esfera da

subjetividade do próprio artista – quando ele, dentro do seu próprio tempo e domínio de desenvolvimento como artista, se vai sentindo eventualmente ‘mais bem adaptado’ relativamente ao modo de realização da sua obra e ao respetivo efeito produzido –. De resto, referindo-nos a outros ‘melhoramentos’ na arte, eles não passarão de referências indiretas a funcionalidades ou a eficácias que lhes são extrínsecas. Tais melhoramentos reportar-se-ão ao estado contingencial do próprio âmbito tecnológico ou sociocultural em que o artista, seu produtor, eventualmente se encontre; tais melhoramentos dirão respeito a contributos úteis, a desempenhos técnicos ou coadjuvações funcionais que a realização da obra de arte pôde usufruir (desde sempre) – entre o controlo (técnico) do fogo, que

permitiu a realização das pinturas rupestres em grutas profundas, e os mais recentes meios digitais que propiciam certo efeito numa determinada ‘instalação artística’, podemos encontrar a ‘invenção da perspetiva’ ou a invenção da ‘técnica a óleo’ entre outros (inúmeros) contributos que, nesses termos de utilidade, coadjuvaram ou possibilitaram a manifestação artística –.174

Por conseguinte, se quisermos comparar avanços, inovações ou progressos na arte; se quisermos, por assim dizer, referir-nos ao bem-estar proporcionado por alguma desses aspetos no campo da arte, certamente que, o que quer que isso seja, não poderá significar algo congénere àquilo que resulta da comparação da extraordinária mudança de bem-estar experimentada por alguém que, por exemplo, na sua infância, foi do Porto até Lisboa num já rapidíssimo comboio, locomovido pela Pacific nº 501 a vapor, e, passadas 6 meras décadas, pôde ir de Lisboa até Roma num ‘vulgar’ avião Airbus A320, demorando o mesmo tempo de viagem.

Em suma, tudo isto faz ressaltar um certo traço de constância da arte que, ao combinar-se tão bem com o traço evolutivo do progresso tecnológico, consegue abarcar quase todo o contorno definidor de humanidade.

174 Tais melhoramentos poderão, ainda, ser aqueles a que o próprio artista se refere e que procura representar no conteúdo

da sua obra – seja isso a exaltação de uma cena de caça (com eventual representação dos primeiros instrumentos e técnicas utilizados na sobrevivência), a exaltação do poder edificante de alguma estrutura arquitetónica ou a exaltação (ou exorcização) da complexidade e da aceleração do progresso patenteadas numa certa atualidade tecnológica – (para nos referirmos aos respetivos exemplos supra apresentados).

A afirmação de que “durante longo tempo o instrumento técnico permaneceu atrasado, em relação ao símbolo, no seu desenvolvimento”175, parece não poder corroborar esta tese de que a virtude da evolução na arte não reside no critério de melhoramento, enquanto a

virtude da evolução na técnica depende desse critério para poder progredir. No entanto,

afirmar que o instrumento técnico permaneceu atrasado durante um certo tempo, significa apenas isso – que o instrumento técnico não permanece atrasado todo o tempo, pois tudo o que é técnico progride –. Ou seja, qualquer que seja o estado em que a tecnologia se encontre, ela encontra sempre caminho e motivação para avançar, para inovar e para aperfeiçoar.

Por sua vez, afirmar que a as artes simbólicas primitivas “eram de tal maneira avançadas que muitas delas atingem um nível paralelo, em economia de traço e vitalidade estética, ao trabalho dos pintores chineses da dinastia Sung”176 só pode querer dizer que a arte não possui grande propensão para a evolução progressiva. Na verdade, ainda hoje a arte produz os seus efeitos a partir das mesmas aptidões e recursos gráficos, que os nossos

antepassados do Aurinhacense possuíam ou podiam aceder.