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As táticas envolvidas nas negociações entre dois cérebros individuais – um eu e um outro

eu – não devem ter muito a ver com as táticas que estes empregam quando ‘negoceiam’

com todas as outras coisas de um mundo newtoniano (coisas que, independentemente da vontade do observador, se encontram rigorosamente reguladas por imutáveis leis naturais) ou com seres de outras espécies. Mais propriamente, o carácter das negociações entre duas pessoas tem mais a ver com o carácter individual das negociações que ocorrem no íntimo mental de cada respetivo cérebro75, nomeadamente como com a suposição de que o outro é também um outro eu; por princípio, ambos os intervenientes num negócio supõem que cada um pode condicionar o outro, e ser condicionado por ele, através de um preceito de reciprocidade que dinamiza a formulação de propostas – através de exigências e

concessões ou incentivos e dissuasões – que irão moldando o curso do processo negocial até à obtenção de um certo efeito final, i.e. até um dos lados aceitar uma definitiva

75 “A vida mental muitas vezes lembra um parlamento interior. Pensamentos e sentimentos disputam o controle como se

cada qual fosse um agente com estratégias para dominar a pessoa inteira, você. (…) Os interesses da pessoa como um todo são supremos. Mas a pessoa como um todo tem muitos objectivos, como alimento, sexo, e segurança, e isso requer uma divisão de trabalho entre agentes mentais com diferentes prioridades e tipos de especialização. Os agentes estão comprometidos com uma entente que beneficia a pessoa como um todo ao longo de toda a vida, mas no curto prazo os agentes podem passar a perna no outro com tácticas tortuosas.” – Idem, p.441.

condição proposta76. Por outro lado, quando o ser humano procura obter efeitos desejados a partir do ‘negócio com outras-coisas’ a estratégia que utiliza para o fazer será diferente. Nesta circunstância – já não se encontrando ele perante alguém com quem possa trocar argumentos ou condições – a sua potencial capacidade de persuadir ou de motivar o outro, em função das eventuais pretensões de ambos, fica sem efeito. Assim, o resultado das trocas processadas entre indivíduos humanos, potencialmente dotados da mais complexa capacidade de exercerem entre si uma certa reciprocidade adaptativa, é substituído pelo efeito das trocas entre coisas e indivíduos humanos: de um lado, ‘coisas da realidade que

nada podem querer saber de indivíduos humanos’ e, do outro, indivíduos humanos que muito podem e querem, tal quanto precisam e devem saber dessas coisas.

De toda a absoluta imensidão do universo – constituída por toda a infinidade de efeitos (ordenados ou caóticos, recursivamente encadeados ou não lineares) e por toda a infinidade de trocas que os produzem – somente aquela ínfima porção a que chamamos Terra contém a exclusiva possibilidade de alguns dos seus efeitos poderem vir a decorrer de trocas negociáveis. Isto deve-se a um único e exclusivo fator interventivo – a mente humana. Verdadeiramente, a haver trocas negociadas, estas só podem ocorrer através de mentes humanas. Tal significa que qualquer outro evento negocial, a ocorrer entre outras entidades – entre coisas físicas, entre estas e seres vivos, entre criaturas irracionais ou entre alguma destas entidades e o ser humano –, não passará de alguma versão metafórica que toma como referente a ideia comum de negócio. Dentro de determinado processamento de trocas, quanto menor for a influência aí exercida pela intenção humana tanto maior será o afastamento, relativamente à verdadeira asserção do termo negócio, que uma eventual metáfora realizará ao referir-se a esse processamento. Assim, muito pouco do sentido literal do termo negócio acabará por se referir ao processo de trocas pelo qual, algures no universo, todo o ordenamento da matéria, a decorrer em algum lado, tem uma contrapartida que se faz corresponder ao aumento da entropia em outro lado77. Nenhum género de

pulsão, intenção ou conhecimento pode influenciar (melhor dizendo, aproveitar) a regra das trocas e das interações físicas (intercâmbios de pressão, de temperatura, de eletrões, de energia, de matéria, de forças, etc.) e o modo como produzem exatamente os seus efeitos. Estes decorrem de ‘negociações’ levadas a cabo por intransigentes e ubíquas

76 “O outro possui uma diferença irredutível, que nem sempre posso constranger pela força (estratégia da coerção) nem

pelo discurso (estratégia da comunicação). Entramos então no mundo da negociação generalizada. Como viver com o outro, uma vez que admiti a sua diferença irredutível? Não basta falar para convencer. É também necessário ter em conta as representações do outro e os conflitos” – Bruno Jarrosson: Op. Cit., p.104.

regularidades78; de modo constante, tais negociações obedecem às imposições

‘programadas’ por essas regularidades fundamentais, sem compromisso algum com a procura, a vontade, a estratégia ou a ação 79 de alguém.

2.2.10 ‘Negócios’ adaptativos complexos

Por outro lado, quando as metáforas do termo negócio se referem a eventos do contexto da vida, elas podem assumir aí uma grande diversidade de níveis de aproximação à

literalidade do próprio termo. No mundo vivo onde proliferam os sistemas adaptáveis complexos, encontra-se a decorrer uma infinidade de jogos de intercâmbios e de compromissos geridos por ‘estratégias negociais’ de todo o género. Durante o “tempo evolutivo” 80 das espécies, onde tudo é ‘negociado’ por critérios adaptativos, ou seja, pela seleção natural, os efeitos acabam por ser a expressão do equilíbrio, paulatinamente negociado a nível genético81, entre o que foge e o que persegue, entre o esforço para alcançar e o benefício conseguido, entre a manutenção de caracteres e a mudança para novos outros. Assim, no tempo de vida das plantas e dos animais, cabe a estes ‘negociar’ da melhor forma todo o género de trocas – de modo a viverem o tempo suficiente para se conseguirem reproduzir – recorrendo aos atributos individualmente próprios que o tempo evolutivo lhes permitiu alcançarem. 82

Em suma, o processo designado pelo termo negócio torna-se tão mais efetivo no seu sentido mais literal, quanto mais nele estiverem envolvidos ‘efeitos neurais’ e quanto mais estes se complexificarem por via do funcionamento criativo/ adaptativo de uma mente. No extensivo contexto de todas as trocas e respetivos efeitos – aqueles que correspondem à existência de todas as coisas inertes ou viventes – o cérebro humano destacar-se-á como o sistema que mais informação processa na obtenção de ‘efeitos negociados’. Ao fazê-lo,

78 Trinh Xuan Thuan, P.353

79 “A acção é estratégica. A palavra estratégia não designa um programa predeterminado que basta aplicar ne variantur

no tempo. A estratégia permite, a partir de uma decisão inicial, encarar um certo número de cenários para a acção, cenários que poderão ser modificados segundo as informações que vão chegando no decurso da acção e segundo os imprevistos que vão surgir e perturbar a acção. A estratégia luta contra o acaso e procura a informação.” – Edgar Morin:

Op. Cit., p.116.

80 “Predadores e presas estão envolvidos numa corrida evolutiva ao armamento, a qual decorre no tempo evolutivo. O

resultado tem sido uma escalada regular da quantidade de recursos económicos que os animais, de ambas as facções, despendem nessa corrida, a expensas de outros sectores da economia corporal” –Richard Dawkins, Op. Cit., p.343

81 A noção de “pool de genes”, entendida como determinada reserva de informação genética disponível, apresenta-se aqui

como recurso negocial a poder ser jogado no (aqui apelidado) ‘negócio genético’: “Como é evidente, não são os indivíduos que fazem esse jogo e esse equilíbrio. São os números relativos de genes alternativos nos pools que são jogados e equilibrados para selecção natural.” – Idem, P.347

82 “O propósito da corrida no tempo evolutivo é construir equipamento para as corridas que se desenrolam no tempo real

produz os mais complexos efeitos adaptativos a operarem nesse contexto. Em indivíduos de certa espécie, esses efeitos acabaram por se manifestar num definitivo ‘efeito limiar’ que fez com que eles se distanciassem, em termos de processamento de trocas e de produção de efeitos, face a ‘outras-coisas’ e a ‘outros seres’. Nesse limiar, tal

distanciamento acabou por se manifestar na emergência de algo novo, ou seja naquilo que designamos como alguém. Referimo-nos, assim, a tal entidade, por este termo, por se tratar do próprio ser humano: alguém capaz de se emancipar da sua herança animal através da sua faculdade negocial – uma genuína capacidade de ‘jogar’83 para obter e alcançar efeitos inéditos, muito para além daqueles meramente (e metaforicamente) ‘negociados’ pela intransigente seleção natural, suscetível à sorte dos acasos.