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A paisagem: interface entre processos naturais e antrópicos

A geografia quando se instala nas universidades em meados do século XIX, é eminentemente fundamentada no historicismo, corrente do pensamento que associa a individualização à questão da região. Assim, Ratzel (1870) introduz o pensar político (antropogeografia) e a paisagem é vista como passagem, ou seja, a marca do homem sobre a natureza. Nesta época, muitos consideravam paisagem e região como sinônimos. É fato, que em tempos bastante remotos, a geografia correspondente a cada grupo seria explicado pela própria ação do grupo na paisagem, desse modo, paisagem e região estavam diretamente associadas. Ao conjunto de técnicas e costumes, construído socialmente denominou-se “gênero de vida”24, o

qual exprimia uma relação entre a população e os recursos, uma situação de equilíbrio, onde a diversidade dos meios explicaria a diversidade dos gêneros de vida. Esta idéia persistiu no espírito dos geógrafos europeus até o fim do século XIX. Na Europa, cada região foi constituindo-se lentamente. As atividades criadas se mantinham durante um longo período, dando a impressão de imobilidade. Daí a idéia de que a paisagem, criada em função de um modo produtivo duradouro, devia confundir-se com a região, isto é, a área de ação do grupo interessado. Milton Santos argumenta que neste contexto era possível estabelecer certa semelhança entre paisagem e região, porém o mundo passou por grandes e rápidas transformações e estes conceitos foram reformulados.

Dessa forma, pode-se afirmar que o entendimento da paisagem geográfica conheceu duas fases: a primeira, com a escola de geografia regionalista da França, até o início do século XX, quando ainda existia coincidência entre os limites da paisagem e a região administrativa em que se encontravam. A paisagem era capaz de fornecer boa carga de informação sobre a organização social nela compreendida. A segunda fase, situada em meados do século XX conheceu um forte desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação, da circulação de mercadorias e capitais, fazendo com que as paisagens perdessem seus fundamentos locais para refletir as relações das redes de economia e sua simbologia universal.

Fig 1.23 Fig 1.23Fig 1.23

Fig 1.23Fig 1.23 O mar de Galileu. D e l a c r o i x . F o n t e : www.ibiblio.org/wm/paint/ auth/delacroix.

Fig 1.24 Fig 1.24Fig 1.24

Fig 1.24Fig 1.24 Paisagem com carvalhos e um caçador - Casper David Friedrich (1774-1840). Fonte: www.google.com.br/pinturas romantismo.

Fig 1.25 Fig 1.25Fig 1.25

Fig 1.25Fig 1.25 Porto dos Padres (1910). Os artistas retrata- vam as paisagens com certo romantismo, realçando sua dimensão pinturesca. Fonte: Arquivo Público P.M.V. Fig 1.26

Fig 1.26Fig 1.26

Fig 1.26Fig 1.26 Cais do Impera- dor, atual sede do Palácio do Governo (desenho de 1904). Fonte: Arquivo Público P.M.V. Fig 1.27

Fig 1.27 Fig 1.27

Fig 1.27 Fig 1.27 Os primeiros re- gistros fotográficos da anti- ga vila de Vitória - Alfândega e a Baía. Fonte: Arquivo Público P.M.V.

Fig 1.28 Fig 1.28 Fig 1.28

Fig 1.28 Fig 1.28 Pessoas aguardam no antigo Cais do Porto de Vitória (fotografia). Fonte: Arquivo Público P.M.V.

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Paralelamente, a descoberta da fotografia, e depois do cinema, da televisão e do vídeo iriam, pela grande possibilidade de reprodução, criar uma concepção mais moderna e difundida da paisagem. É que reunindo as virtudes pictóricas com as da literatura e do movimento, o cinema desenvolve uma nova expressão, ou seja, ele potencializa a relação de história com paisagem e da paisagem com a história. Para Harvey25, “a arte futurista buscou moldar o espaço de maneira capaz de representar

a velocidade e o movimento”. Nesse sentido, o filme contém seu efeito estético precisamente através do seu movimento temporal. O filósofo Sartre ficou particularmente impressionado com suas possibilidades: “é uma arte que reflete a

civilização de nosso tempo.”26

Régis Debray27 para quem o olhar não se pauta unicamente na percepção de uma

imagem, mas na organização do mundo visível, do mesmo modo que se organiza a experiência, defende a argumentação de que é preciso suprimir esta aflição da imagem do visível, esta asfixia do real, facilitando os espaços visíveis do interior através do sonho, da poesia e da arte. Dito de outra forma: as imagens cinematográficas, televisivas e fotográficas constituem não só uma fonte de informação, mas também de interpretação. Eis porque, apesar de a Geografia procurar um rigor descritivo do mundo natural, das culturas, das economias e das técnicas, “somente a arte consegue vivificar o sentimento que nos liga ao meio de

modo sublime e grandioso.”28

A paisagem, portanto, é considerada como um produto, resultante de um processo social, de ocupação e de gestão de um território; e como um sistema, na medida em que a partir de qualquer ação sobre ela impressa com certeza haverá uma reação correspondente, no caso equivalendo ao surgimento de uma alteração morfológica parcial ou total. Dessa forma, as paisagens, dos menores aos maiores ambientes, acham-se carregadas de informações, ainda que incompletas, sendo ponto de partida para outras averiguações que por sua vez dependem da capacidade perceptiva do observador.

Nesse sentido, a paisagem detém um movimento que é intrínseco a ela. Sua morfologia apresenta inúmeras possibilidades de entendimento, que por sua vez, dependem fundamentalmente das condições culturais, econômicas, sociais e emocionais do indivíduo e/ou da sociedade no curso histórico. Portanto, falar de paisagem é discorrer sobre visões distintas do pensamento que se aproximam na medida em que transcendem do campo da percepção para a materialidade concreta em constante transformação.

Podemos, então, nos aproximar de uma conceituação mais atual sobre paisagem como sendo “uma determinada porção do espaço - e em um determinado tempo -

o resultado da combinação dinâmica, portanto instável de elementos físicos, biológicos e antrópicos que reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável em perpétua evolução”. Bertrand (1971) Para Macedo29, a paisagem se define como “expressão morfológica das diferentes

formas de ocupação e configuração de um território e, portanto da transformação do ambiente em um determinado tempo”.

24 24 24 24

24 A teoria de Vidal de La

Blanche concebia o homem como hóspede antigo de vários pontos da superficie terrestre, que em cada lugar se adaptou ao meio que o envolvia, criando, no relacionamento constante e cumulativo com a natureza, um acer vo de técnicas, hábitos, usos e costumes. A isso Vidal denominou “genero de vida” (Moraes, 1986, pp.68-69 citado In: SANTOS, Milton. 1988, p.63) 25 25 25 25 25 HARVEY, D., 1992, p.191. 26 26 26 26

26 Citado In: Harvey, 1992,

p.192.

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27 DEBRAY, Regis. Vida e

Mor te da Imagem. Uma história do Olhar no Ocidente. Petrópolis: Vozes,1994.

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28 Eduardo Yazigi, geógrafo

(professor da USP e organizador da obra coletiva “Turismo e Paisagem”. São Paulo: Contexto, 2002.

29 29 29 29

29 MACEDO, Silvio. Quadro do

Paisagismo no Brasil. São Paulo, 1999. p.11.

Segundo Pellegrino30 (1995), o ritmo de evolução das formas sociais e culturais

não acompanha a evolução das formas da paisagem natural. Ambas as dimensões apresentam equilíbrios e tempos diversos: o interesse do homem ultrapassa a mera sobrevivência física do mundo natural e expressa uma relação econômica em constante ampliação que, a partir de novas tecnologias, em um processo cultural no qual, ao englobar também os processos naturais, organiza outras realidades. Estas se revelam mediante sinais, que representam os acordos feitos pelos meios de produção e a negociação havida com a natureza. Assim uso e hábito organizam uma imagem perceptiva da paisagem que, apesar de ser calcada em sua imagem física, se sobrepõe a esta, passando a ser o elemento de manifestação concreta do espaço, transcendendo a própria realidade material.

30 3030

3030 PELLEGRINO, Paulo

Renato. M. Paisagens Temáticas: Ambiente virtual. São Paulo: Tese de Doutor amento, FAUUSP, 1995.

31 3131

3131 David Har vey em sua

inter pretação sobre a experiência do espaço e do tempo, cita Foucault (1984,70) que quando pressionado trata o espaço como “o mor to, o fixo, o não-dialético, o imóvel” enquanto “ o tempo, pelo contrário, era riqueza, fecundidade, vida, dialética”. In: Condição Pós-Moderna, 2000. p.190 e 191. 32 3232 3232 SANTOS, Milton. Metarmofoses do espaço habitado. Hucitec, 1988. p.73. Fig 1.29 Fig 1.29 Fig 1.29 Fig 1.29

Fig 1.29 Praia de Camburi em 1969. Fonte: Arquivo Pú- blico P.M.V. Fig 1.30 Fig 1.30 Fig 1.30 Fig 1.30

Fig 1.30 Praia de Camburi em 2002. A paisagem em evolução. Fonte: acer vo pessoal.

Já os geógrafos se contrapõem a uma preocupação científica de análise da paisagem, isto é, a necessidade de elaborar conceitos generalizáveis sobre a paisagem chega a divergir de certa forma dos arquitetos paisagistas. Milton Santos, geógrafo, entende a paisagem como materialidade e permanência, e o espaço como movimento. Em sua obra chega a definir paisagem como trabalho morto: “a maneira como ocorre a produção, e o intercâmbio entre os homens confere um aspecto à paisagem. O trabalho morto (acumulado) e a vida se dão juntos, mas de maneiras diferentes. O trabalho morto31 seria a paisagem. O espaço seria o conjunto do trabalho morto

(formas geográficas e espaciais) e do trabalho vivo (o contexto social).”32 Por outro

lado admite a dimensão da paisagem como sendo a dimensão da percepção que chega aos sentidos, conferindo importância crucial ao aparelho cognitivo nessa apreensão. Este pensamento torna-se contraditório quando interpreta a percepção sensorial como o não conhecimento, restrita à aparência.33

Em seguida, seu pensamento torna-se novamente ambíguo ao afirmar que a paisagem é objeto de mudança, mesmo quando considerado trabalho morto: “a

paisagem não é dada para todo o sempre, é objeto de mudança. É uma espécie de marca da história do trabalho, das técnicas. Por isso, ela própria é parcialmente

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trabalho morto, já que é formada por elementos naturais e artificiais.” 34Ao analisar sua

obra, percebe-se que o autor imprime o caráter de materialidade à paisagem, objeto formal resultante da construção social, que sofre acréscimos e substituições, porém de maneira lenta. Já o autor entende o espaço como submetido à lógica de produção econômica do trabalho que origina os fluxos - circulação, distribuição e consumo – sugerindo assim, um movimento contínuo e total. Para Milton Santos, a paisagem é parcial, fragmentada, e o espaço, a totalidade que pode conduzir à compreensão do real.

A partir do momento em que já não é mais possível entender a paisagem urbana de um determinado lugar sem recorrer ao conhecimento das redes que a ultrapassam, na interpretação de Milton Santos, torna-se necessário o entendimento da “internalização do externo35” em lugares específicos. Considerando o processo de

transformação ao qual está submetida a paisagem a Baía Noroeste, especialmente no que se refere ao lugar Ilha das Caieiras, o argumento de Santos para a eficácia do fator externo é que ele varia segundo os lugares e os valores internos a estes. Para o autor, os lugares e respectivamente as paisagens se diferenciam pela maneira pelo qual os fatores internos resistem aos externos, determinando as modalidades do impacto sobre a organização preexistente. A partir desse choque impõe-se uma nova combinação de variáveis, um outro arranjo, destinado a se manter em constante movimento. 33 33 33 33 33SANTOS, M., p.62. 34 34 34 34 34 Idem, p.68. 35 35 35 35

35 Expressão usada por Mil-

ton Santos para analisar a ação do externo sobre o Fig 1.31

Fig 1.31Fig 1.31 Fig 1.31

Fig 1.31 A seqüência da paisagem na Baía Noroeste. Fonte: acervo pessoal. Fig 1.32

Fig 1.32Fig 1.32 Fig 1.32

Fig 1.32 O particularismo da Ilha das Caieiras desponta na paisagem. Fonte: Projeto Terra.

Portanto, a paisagem urbana é composta de formas visíveis, e pela trama parcialmente invisível da estrutura social. Se, de um lado, as formas visíveis da paisagem podem dirigir as transformações sociais ou limitar alternativas de organização do território, de outro lado, as modificações da estrutura social criam sempre novas necessidades, sugerem novas formas e redefinem os valores da paisagem visível.

1.31

Na perspectiva de sua obra, a geografia representa a disciplina que por excelência explora a relação sociedade-espaço, fornece preciosos elementos para o planejamento urbano e regional, no qual a questão da paisagem é um item, sendo este muito mais trabalhado por profissionais de outras áreas – arquitetos, urbanistas ou propriamente paisagistas. Entretanto, estes conceitos distintos de paisagem se completam, e possibilitam identificar as relações constitutivas do ambiente urbano: a paisagem como relações entre indivíduos e objetos de percepção visual e estes objetos como expressão morfológica do ambiente, configurando e conformando paisagens e cenários espaciais.

A experiência concreta da paisagem, mostra que está sendo difícil obter algum tipo de harmonia entre natureza, cultura e sociedade. O modelo de desenvolvimento adotado no Brasil penalizou a paisagem urbana contemporânea, tanto em seus processos naturais como nos sociais. Este tipo de modelo, tendo como agente organizador o Estado, gerou focos de concentração de renda, de produção, de consumo, pautados pela miséria, convertendo as maiores cidades do país em metrópoles, nas quais o ritmo caótico e descontrolado da urbanização tornou-se o responsável pela degradação do ambiente urbano e por um cotidiano deteriorado.

“Podem as formas, durante muito tempo, permanecer as mesmas, mas como a sociedade está sempre em movimento, a mesma paisagem, a mesma configuração territorial, nos oferecem, no transcurso histórico, espaços diferentes.”

Milton Santos 36

inter no do lugar (1988,p.97).

O indiscutível ganho em termos de desenvolvimento, verificado com a implantação de tão numerosas redes de transporte, comunicação, energia e produção vem sendo acompanhado, porém, de uma crescente alienação da sociedade com relação ao seu entorno, ao ambiente formalmente constituído por essas inúmeras variáveis. A constante dificuldade em identificar-se com elementos e estruturas que, na maioria dos casos, não respondem imediatamente às necessidades do cotidiano termina por criar uma atitude de rejeição aos modelos do urbanismo. Essa atitude reforça o círculo vicioso criado pela contraposição natural e urbanística, diluindo os benefícios gerados pelo desenvolvimento cultural, econômico e tecnológico da sociedade. Por outro lado, é notável a preocupação assumida por determinadas comunidades e cidades, que lutam contra tal tendência que as privaria de seus valores primordiais e particularidades que conferem caráter único e especial para seus cidadãos. Esse processo de qualificação e identificação é multidimensional, porque envolve o

Fig 1.33 Fig 1.33 Fig 1.33

Fig 1.33 Fig 1.33 A degradação do cotidiano refletida na paisagem de Vitória. Favela no bair ro Andorinhas próximo ao mangue Lameirão. Fonte: Poligonal 11 - Projeto Terra /2001. Fig 1.34

Fig 1.34Fig 1.34

Fig 1.34Fig 1.34 O ganho em mo- dernização da cidade foi si- multâneo à perda ambiental e social na paisagem. Bairro situado na encosta do Maciço Central tendo ao fundo o centro da cidade. Fonte: Poligonal 3 - Projeto Terra/ 2001.

estabelecimento de relações com o conjunto dos elementos físicos, naturais e culturais que integram o contexto.

Apesar da produção da cidade ser conflitante, percebe-se que em quase todas as áreas do conhecimento estão voltadas para a recuperação da qualidade ambiental, preocupando-se de certa forma com as diferenças locais e procurando respeitar as especificidades dos lugares. Dessa forma, o pensamento dos urbanistas deve passar necessariamente pela contextualização, exigindo a ampliação de suas bases referenciais que a explique não a partir de si mesma, mas a partir de sua integração com todas outras esferas de produção do espaço. Se a modernidade impôs à estrutura o fragmento como base, já não é possível a reorganização da totalidade, mas apenas a reorganização de partes precisamente delimitadas. Assim, ao qualificar- se, a cidade assume, uma nova dimensão ambiental.

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