• Nenhum resultado encontrado

Como o espaço não é para o vivido um simples quadro e como o sujeito vive através de um modo de apropriação, a atividade prática vai mudando constantemente o espaço e os seus significados, marcando e renomeando os lugares, acrescentando por sua vez, traços novos e distintos que trazem novos valores, presos aos trajetos construídos e percorridos. Para Ana Fani Carlos (1996), “as formas materiais guardam uma certa monumentalidade com seu conteúdo que a memória ilumina, torna-o presente e com isso lhe dá espessura. A memória articula espaço e tempo, ela se constrói a partir de uma experiência vivida num determinado lugar. Produz-se pela identidade em relação ao lugar, assim lugar e identidade são indissociáveis.”

O histórico, portanto, tem suas conseqüências. A memória liga-se decididamente a um lugar. No momento em que a metrópole explode em multiplicidade, interioriza no vivido o coletivo, pois o indivíduo só se realiza no e pelo outro, através do imbricamento entre as histórias coletivas e individuais.

0.25 0.27

Fig 0.28 O sítio geográfico da Praia do Canto na década de 60. Fonte:Nau/UFES. Fig 0.29 Banhistas na ense- ada da Praia do Canto e que cedeu lugar à presença de edifícios residenciais. Fonte: Nau/ UFES.

Fig 0.30 e 0.31 Aterro hi- dráulico que fez sucumbir o sítio original da Praia do Canto. Fonte: Nau/ UFES.

Nesse sentido, o passado deixou traços, inscrições, escritura do tempo. Enquanto moradora da Praia do Canto (região nordeste) lembro-me bem de suas ruas e cenas, a presença cons- tante do mar, os banhistas, enseadas e recantos. Pude testemunhar a desaparição de praias que quando criança construía castelos e que sucumbiram mediante o turbilhão de areia do aterro hidráulico. Acompanhei, a partir de 1976, a movimentação progressiva das dragas que lentamente iam desmoronando toda aquela paisagem particular e especial, divinamente concedida, que agora refugia-se apenas em lembranças e fotografias, resguardadas pelo determinismo da quantificação que a falsa idéia de progresso acarreta.

Um tempo nem tão longínquo, tempo em que se voltava da escola caminhando, sem pressa e sem medo, sob a sombra das imensas e enfileiradas castanheiras à beira-mar. Tempo em que se podia sentir o bater dos ventos e a brisa acariciar a face, através do movimento ininterrupto de ir e vir de bicicleta pelas tranqüilas ruas do bairro, verdadeira expressão de liberdade. Não haviam portas trancadas, as crianças simplesmente brincavam e o medo existia apenas nos pesadelos noturnos. Tinha-se a impressão de que a Praia do Canto era uma extensão do quintal de nossas casas. Hoje ela é de todo mundo e de ninguém . . .20

20 O processo de fragmen-

tação do espaço e do indiví- duo decorrente da rapidez do processo de transforma- ção da cidade pode ser per- cebido na paisagem dos bairros. O trecho final da cena do filme Avalon (filme escrito e dirigido por Bar r y Levinson,1992) aponta a existência prática da abstra- ção que ocorre num momen- to real e concreto: “Há al- guns anos fui ver a casa em Avalon. Não estava mais lá.

0.28 0.29

Fig 0.32 Fig 0.32Fig 0.32

Fig 0.32Fig 0.32 A Praia das Casta- nheiras na Av. Saturnino de Brito, onde na infância cons- truía castelos de areia. Esta praia sucumbiu aos aterros visando ampliação dos espa- ços de circulação. Fonte: Nau/ UFES.

Fig 0.33 Fig 0.33Fig 0.33

Fig 0.33Fig 0.33 O arruamento mos- trando a tranqüilidade do bairro Praia do Canto na dé- cada de 60. Fonte: Nau/ UFES.

Fig 0.34 Fig 0.34Fig 0.34

Fig 0.34Fig 0.34 O perfil da paisa- gem na Praia do Canto ad- quire novo contorno. Fonte: acervo pessoal.

Prosseguindo com a decodificação dessas imagens fixadas na memória, observo que já do outro lado da ilha, a região noroeste sempre se manteve para mim distante, oculta, escondida por trás dos morros e do imenso Maciço, que divide estes dois territórios geograficamente. No início da década de 70, nada nos remetia a esta região longínqua, inexplorada e desabitada. Nem dela se ouvia falar. O centro da cidade ainda era a principal referência comercial, de serviços e moradia, comprimido pelo gigantismo enigmático do Maciço, pela baía e seus portos. No máximo, poderíamos dizer nesta época era que o bairro de Santo Antônio tornava-se a última referência demarcatória dos limites da cidade a oeste, cuja imagem esteve sempre associada ao “lugar do cemitério”.

Vale mencionar uma passagem curiosa que aguçou minha imaginação infantil. Num dia típico de domingo, a família se propôs a fazer um passeio diferente: contornar a ilha de Vitória de carro21

. Assim dispusemo-nos a explorar este território até então desconhecido, porém interessante, por entre caminhos e trilhas tortuosos e de difícil acesso. Recordo-me bem, que esta estradinha de barro nos levou em determinado momento a um sítio, onde o proprietário criava jacarés e nós pudemos vê-los, soltos, bem próximos. Como era possível, tão perto da cidade, existirem jacarés? Afinal, estávamos numa floresta ou seria apenas mais uma divagação que se conflitava com os limites da realidade?

Os mapas mentais por ora se confundem. Esta indagação ficou gravada na minha memória como marco ilusório.22

Nunca mais havia voltado lá, porém, nesse momento, passados trinta anos, estou aqui a fazer leituras para minha pesquisa, e deparo-me com a citação da exis- tência do Sítio do Jacaré na região que fornecia água para a Ilha das Caieiras na região noroeste.

Não só a casa, mas toda a vizinhança. Fui ver o salão onde eu e meus irmãos cos- tumávamos tocar, também não existia mais. Não só ele mas o mercado onde fazía- mos nossas compras tam- bém. Tudo desapareceu. Fui ver o lugar onde Eva mora- va. Não existe mais. Nem a rua existe mais, nem mesmo a rua. Então fui ver o clube noturno do qual fui dono e, graças a Deus, estava lá. Por um minuto achei que nunca eu nunca tivesse existido.” (Citado por Ana Fani Carlos,p.62). Dessa forma, a separação entre homem e natureza, animalidade e hu- manidade, marca a existên- cia social da abstração que se concretiza na separação entre valor de uso e valor de troca.

0.32 0.33

Fig 0.35 Fig 0.35 Fig 0.35 Fig 0.35

Fig 0.35 Verticalização na Praia do Canto esconde os referenciais naturais. Fonte: acervo pessoal.

Fig 0.36 Fig 0.36 Fig 0.36 Fig 0.36

Fig 0.36 A natureza recria um cenário mais homogêneo na região nordeste. Presen- ça de coqueiros e adensamento ver tical na Praça dos Namorados. Fonte: acervo pessoal. Fig 0.37

Fig 0.37 Fig 0.37 Fig 0.37

Fig 0.37 Antiga estrada que dava acesso à região noro- este e que fazia o contorno da ilha. Fonte:www.baiadevitoria.ufes.br Fig 0.38 Fig 0.38 Fig 0.38 Fig 0.38

Fig 0.38 Mata da região no- roeste na década de 50.Fonte:www.baiadevitoria.ufes.br Fig 0.39 Fig 0.39 Fig 0.39 Fig 0.39

Fig 0.39 Entardecer na re- gião noroeste.Fonte: www.vitoria.es.gov.br.

Vaga , no azul amplo solta, Vai uma nuvem errando. O meu passado não volta. Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente. Entra mais na alma da alma.

Mas como, no céu sem gente, A nuvem flutua calma, E isto lembra uma tristeza E a lembrança é que entristece,

Dou à saudade a riqueza De emoção que a hora tece. Mas, em verdade, o que chora Na minha amarga ansiedade Mais alto que a nuvem mora, Está para além da saudade. Não sei o que é nem consinto A alma que o saiba bem. Visto da dor com que minto Dor que a minha alma tem.

Fernando Pessoa

21 Na década de 70, a es- trada que contornava a ilha de Vitória era de barro e de difícil acesso e que hoje cor responde a rodovia Serafim Derenzi . Podia-se alcançar a Ilha das Caieiras, mas a região noroeste era praticamente desabitada. 22 Uma forma de pensa- mento que se afasta explici- tamente do real e se apóia na percepção e na memória, não para organizá-las objetivando o conhecimento da realidade, mas sim visan- do a estruturação de cenári- os irreais e a criação de um universo fictício. È a forma de pensamento que Freud cha- ma de imaginação, ou pen- samento imaginário. Para ele, o pensamento realista resul- ta na produção de idéias que podem, ou não, ser verdadei- ras; já a imaginação resulta na produção de fantasias que não são falsas nem verdadei- ras, mas apontam para uma realidade possível, situada além da visibilidade existen- te e, portanto, potencialmen- te capaz de concretizar-se como alternativa ao presen-

0.35 0.36

Como pudemos observar, a imagem pública de qualquer cidade ou paisagem é a sobreposição de muitas imagens individuais. A alta e sofisticada tecnologia moderna pode criar um gran- de repertório de paisagens passíveis de imaginabilidade. A disponibilização dessa produção espetacular exige cada vez mais do cidadão uma velocidade perceptual adaptável às mudan- ças, entretanto, a necessidade de se reconhecer e padronizar o ambiente vivido é tão crucial e tem raízes tão profundamente arraigadas, que se torna o elo estratégico de enorme importân- cia prática e emocional para o indivíduo.

Nesse sentido, busco compreender a passagem de uma cidade provinciana para uma cidade moderna, potencializada para os interesses do universo global. O contorno de seu perfil urbano, não mais revela as grandes pedras gnáissicas escondidas por trás dos grandes edifí- cios agrupados similarmente na paisagem, ocultando a maritimidade antes tão visível. Por- tanto, é fato que na produção espacial pós-moderna, a ansiedade pela cópia é inestimável, e seus reflexos se espalham em todos os cantos da paisagem urbana contemporânea.

23 A paisagem entendida

como construção coletiva pode-se, ademais, atribuir uma qualidade de manipula- ção, de ocultação de verda- de, na medida em o que ali está representado não corresponde à totalidade dos fatos, mas a uma visão par- cial deles, muitas vezes em desacordo com os nossos desejos individuais. Op.cit texto Maria Ângela Faggin, 2004. FAUUSP

24 Apesar de pouco explo- rada nos dias atuais, no en- tanto, esta referência à man- jedoura dada à capital, tor- nou-se oficialmente adotada no início do século XX, após um longo período sem gran- des interferências urbanas. Embora Vitória, por vezes seja lembrada por este ter- mo, para muitos a Cidade- Presépio se refere exclusiva- mente àquela antiga cidade de tipologia portuguesa com construções ecléticas, espre- mida entre o mar e as mon- tanhas (Ribon,2002). Fig 0.40 Fig 0.40Fig 0.40

Fig 0.40Fig 0.40 Vista geral verticalização Praia do Can- to estabelecendo um contraponto com a natureza primeira(região nordeste). Fonte: acervo pessoal, jul/ 2003.

O antigo e o novo referencial urbano, como compará-los e pô-los sob julgamento?23 Onde

houve perdas, onde houve os ganhos? Onde estará o aroma de Vitória, o cheiro do mar, das estrelas e das algas marinhas estendidas na areia, a percepção do nascer do sol por detrás de suas ilhas, o frescor de seus ventos? Restará um olhar sensível sobre a cidade,

cidade presépio24

?

Outline

Documentos relacionados