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No universo das materialidades sígnicas, a palavra é o signo mais puro; ela é “neutra” em relação a qualquer função ideológica específica, posto que pode preencher qualquer função ideológica: no campo estético, científico, moral, religioso (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009a, p.37). O estudo da palavra é parte vital para a compreensão da constituição das hegemonias discursivas (que constituem as hegemonias sociais, políticas, econômicas, etc.), já que “a palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” (p.38).

Por todas as suas propriedades, apontadas por Bakhtin e Volochínov, – sua pureza semiótica, sua neutralidade ideológica, sua implicação na comunicação humana ordinária, sua possibilidade de interiorização e sua presença obrigatória em todo ato consciente – a palavra se faz objeto fundamental do estudo das ideologias.

Mais do que sua pureza semiótica, Bakhtin e Volochínov ressaltam a ubiquidade social da palavra, que confere a ela o caráter de mediadora em todas as relações sociais em todos os domínios, sendo o indicador mais sensível de toda e qualquer movimentação social. Essa

ubiquidade social faz com que ela seja um dos mais adequados materiais para orientar as compreensões das relações entre a base material e os discursos. A palavra, portanto, pode nos fornecer os indícios das transformações sociais e, ao mesmo tempo, ser o veículo que garante a construção das hegemonias ideológicas, como a da competitividade global, por exemplo.

Além de registrar as fases transitórias e acumular quantitativamente as mudanças que ainda nem tiveram tempo “de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009a, p.42), a palavra também é o índice das transformações que já vão ganhando força e tomando forma de sistemas ideológicos mais estruturados. A palavra registra as fases mais transitórias e carrega também sentidos já mais estabilizados em determinadas épocas.

A interação verbal, a palavra funcionando como veículo de diferentes relações sociais entre a estrutura sociopolítica e a ideologia é o que constitui a “psicologia do corpo social”, como a denominam Bakhtin e Volochínov (2009 a). Essas relações e as transformações sociais acumuladas é que indicam que a palavra “competição”, por exemplo, não é mais capaz de exprimir toda a carga de sentidos novos engendrados em determinadas relações em determinado período da história e que, em função disso, é preciso lançar mão de uma nova palavra para significar toda a carga ideológica nascida nas novas relações. A “competitividade”, então, parece cumprir melhor o papel de materializar as novas relações econômicas, políticas, mercadológicas constituintes da psicologia do corpo social na era globalizada neoliberal.

O que desejo ressaltar aqui é o caráter material, concreto, da palavra na exteriorização do “espírito” global da competitividade. Esse espírito não é algo abstrato, do campo espiritual, mas algo discursivamente construído servindo a intencionalidades específicas. Do mesmo modo,

a psicologia do corpo social não se situa em nenhum lugar “interior” (na “alma”, dos indivíduos em situação de comunicação); ela é, pelo contrário, inteiramente exteriorizada: na palavra, no gesto, no ato. Nada há nela de inexprimível, de interiorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo está no material, principalmente no material verbal (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009a, p.43).

nos revelam e ao mesmo tempo exprimem também possibilidades de construção do real. Não há algo inexprimível no “espírito” do capitalismo, ou da globalização, ou ainda da competitividade. Esse espírito se materializa via palavra e constitui os discursos que vão, por sua vez, refletindo e refratando as diferentes concepções sobre as possibilidades de se construir o real.

A Globalização é, para Milton Santos, “de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista” (SANTOS, 2013, p.23). Mundo esse movido pela mais-valia universal, possível graças à produção em escala mundial, por meio de empresas mundiais, competindo entre si, segundo regras ferozes e inéditas (p.30). Daí a importância da construção e consolidação discursiva da ideia de um mundo sem fronteiras, liberal, flexível, sem alfândegas para as “novas” formas de exercício do capitalismo neoliberal.

E os discursos da Globalização, ao longo do tempo e dos acontecimentos, vêm refratando diferentes possibilidades de construção do real. No discurso neoliberal, a busca pela mais- valia universal constitui-se como motor desses processos econômicos globais. Uma das formas de exercício da mais-valia universal é a instauração da competitividade. Para sustentar toda uma complexidade de relações que embasem esses processos, há um conjunto de consensos que se constroem para serem funcionais à reprodução de univocidades, baseadas na lógica capitalista competitiva neoliberal.

Assim como a ideo-lógica (para lembrar Augusto Ponzio) do capitalismo é sustentada e justificada por um conjunto de argumentos, que garantem não somente sua sobrevivência, mas também a ampliação de seu império (BOLTANSKI, 2009), as ideo-lógicas da globalização e da competitividade são igualmente sustentadas e justificadas por um conjunto de discursos que vão criando e reproduzindo determinada ordem social.

A sociologia, segundo Boltanski (2009), atribuiu, tradicionalmente, à socialização e às ideologias o papel de reprodutoras da ordem social, permitindo que “as pessoas não achem insuportável o seu universo cotidiano, o que constitui uma das condições para que um mundo seja duradouro” (BOLTANSKI, 2009, p. 41). A palavra, no entanto, é, para os estudos linguísticos, o material privilegiado que constitui essa ponte, essa mediação, na criação e na reprodução de uma ordem social, refletindo e refratando interesses de classes e interesses de uma época.

O “espírito do capitalismo”, assim denominado por Boltanski (2009), é “a ideologia que justifica o engajamento no capitalismo” (2009, p.39). As inúmeras representações que apoiam e sustentam esse “espírito” vão se constituindo, de modo compartilhado, ainda de acordo com Boltanski, uma ordem possível, uma ordem aceitável – por vezes vista como a única possível ou como a melhor das ordens. Os argumentos que a essa ordem dão sustentação são robustos de modo a parecerem e serem aceitos como pacíficos (BOLTANSKI, 2009, p.42). Para esse autor,

o espírito do capitalismo é justamente o conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de ação e as disposições coerentes com ela. Essas justificações, sejam elas gerais ou práticas, locais ou globais, expressas em termos de virtude ou em termos de justiça, dão respaldo ao cumprimento de tarefas mais ou menos penosas e, de modo mais geral, à adesão a um estilo de vida, em sentido favorável à ordem capitalista (BOLTANSKI, 2009, p.42).

Os “espíritos” dominantes do Capitalismo e da Globalização tendem, de certa forma, a homogeneizar, a monologizar as vozes e vão ganhando força ao mesmo tempo em que impulsionam a engrenagem de uma visão “única”, de um pensamento “único”, de um “único”

modus vivendi. O espírito da Globalização é, nas palavras de Milton Santos (2013), uma “confusão dos espíritos”, que constitui os baluartes sustentadores do atual estado das coisas, em conjunto com o consumo e com a competitividade.

Contudo, tais espíritos não são homogêneos ou pacíficos. Na concretude da palavra se encontram os conflitos, as lutas ideológicas, os embates, a palavra nos revela as heterogeneidades, as plurivocidades, as diferentes vozes sociais. A harmonia e a homogeneidade são somente aparentes, são somente pretendidas pela classe social dominante.

Os espíritos do Capitalismo e da Globalização, materializados nas palavras não são, portanto, abstratos, assim como não o é a mais-valia universal:

Ela é fugidia e nos escapa, mas não é abstrata. Ela existe e se impõe como coisa real, embora não seja propriamente mensurável, já que está evoluindo, isto é, mudando. Ela é “mundial” porque entretida pelas empresas globais que se valem dos progressos científicos e técnicos disponíveis no mundo e pedem, todos os dias, mais progresso científico e técnico (SANTOS, 2013, p.30).

discursos é um lugar em que se podem construir compreensões sobre ela como o motor determinante do período da Globalização, já que a complexidade desse período se deve ao jogo que a constitui, o jogo entre os sistemas técnicos-informacionais e as políticas, o jogo entre a base material e os discursos. Dessa forma, tomo o olhar e a escuta atenta da palavra como reveladores das relações sociais e dos interesses de classes constituintes desse jogo na busca pela mais-valia e pelos discursos nele gerados.

Não é a mais-valia “em si” que me interessa aqui, mas os discursos sobre ela. Como signo, a “mais-valia” possui a sua materialidade, uma materialidade sócio-histórica e valor ideológico. Além disso, a mais-valia como motor único do período da Globalização se manifesta em outros signos. “A competitividade entre as empresas é uma forma de exercício dessa mais- valia universal, que se torna fugidia exatamente porque deixamos o mundo da competição e entramos no mundo da competitividade” (SANTOS, 2013, p.30 e 31). Não é mais a competição em uma determinada questão, para medir quem é capaz de atender com maior êxito a uma determinada especificidade, mas é a competitividade, que mede os níveis de potencial de realização de necessidades em escala global. Daí a construção de discursos para justificar e sustentar a necessidade de que o mundo – ou os lugares – se organize em torno de um motor único, procurando atender às mesmas necessidades, promovendo as mesmas condições, mediadas pelos mesmos índices de valoração, tudo isso sustentado por um discurso único, propagador de univocidades.

E para compreender os discursos construindo essa necessidade da busca pela mais-valia, do aumento dos índices de produtividade e de competitividade, a linguagem se nos mostra como esse lugar. Essa construção discursiva pela lógica do “espírito” da globalização é construção social, que atende a interesses de classes e de grupos específicos, mas que em sua superfície pode remeter a uma ideia daquilo que “é bom para todos”, que beneficiará a todos igualmente, “todos ganham”. Nesse percurso, a própria lógica que se constrói pode parecer, em vez de construção, uma descoberta, um desvelamento de algo que “naturalmente” o é “em si” e que por “dom divino” se descobre e, a partir daí, passa-se, então, a organizar todo o funcionamento de uma nação ou de um conjunto de nações em torno desse espírito.

No entanto, como bem sabemos, nem essa forma de organização é um dom divino e nem a linguagem cumpre esse papel. Volochínov constrói toda uma linha argumentativa, no texto “Que é a linguagem”, para afirmar que esta “não é um dom divino nem um presente da

natureza. É o produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto

a organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou” (VOLOCHÍNOV,

2013, p141). O espírito da globalização, da mais-valia universal, expresso pelos discursos da competitividade também reflete e refrata em todos os seus elementos a organização econômica e sociopolítica da sociedade globalizada e globalizante.

A escuta ativa da mais-valia universal no campo da palavra pode ser, desse modo, uma escuta do signo e dos discursos da competitividade. A palavra, o signo competitividade, é um dos veículos pelos quais a mais-valia vai alcançando esferas de atividade humana diversas, constituindo o discurso da Globalização como o “espírito” de uma época.

2.2 O espírito de competitividade, a ideologia e a constituição de discursos hegemônicos