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2.3 Os agentes da Globalização (os governos mundiais) e a construção do discurso da

2.3.4 A Organização das Nações Unidas

Como os outros agentes hegemônicos da Globalização dos quais tratei até aqui, a Organização das Nações Unidas é composta por diversos países; neste caso, países que se reuniram

voluntariamente para trabalhar pela paz e o desenvolvimento mundiais50. Pautados pela restauração dos povos após os flagelos das guerras, a paz vem em primeiro lugar descrita como objetivo dessa organização, contudo, vem aliada, imediatamente, ao desenvolvimento, este último, um signo bastante recorrente dos discursos de unificação do modo de organizar o mundo. Enquanto os outros agentes aliavam o desenvolvimento, ou crescimento, ao combate à pobreza, aqui, o desenvolvimento é aliado à busca pela paz. Esse é um padrão discursivo

relativamente estável nos discursos hegemônicos globais: aliar questões de tom mais humanitário a questões de cunho econômico.

Na Carta de Princípios da ONU (Anexo 11), em seu preâmbulo, há a declaração de que os povos das nações unidas estão resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da

guerra e, para tanto, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons

vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos51. A declaração de garantia de que a força armada não será empregada vem imediatamente acompanhada, no texto, da concessão a não

ser no interesse comum [um interesse único da comunidade das nações unidas] para a promoção do progresso econômico e social de todos os povos. Um interesse comum, de todos os povos pertencentes a essa organização, justificaria, então, o emprego de mecanismos internacionais, seguindo princípios e métodos, de forma a assegurar o desenvolvimento econômico das nações.

Essa declaração da ONU, do interesse comum, me traz à memória as palavras de Augusto Ponzio52, quando afirma que “Para Bakhtin, não interessa a comunidade, a união, porque essas palavras pretendem cancelar a diferença”. Como, então, sustentar uma guerra (ou um mecanismo internacional para a promoção do desenvolvimento econômico e social de todos os povos) em nome de um interesse comum, um interesse comunitário? Em nome da racionalidade do progresso econômico e social, ações, inclusive armadas, seriam justificadas. Uma das possibilidades de sentidos aqui seria a guerra, ou mecanismo internacional, como álibi do homem racional. “E com o álibi do Homem em geral, o homem humano e racional, para fazer valer os 'direitos humanos', se recorre 'às ingerências humanitárias' e se fazem guerras humanitárias” (PONZIO, 2010, p.28). O interesse comum gera uma comunidade de interesses e, consequentemente, o que não faz parte dessa comunidade é extracomunitário, está fora dela, é excluído. Os Estados, portanto, que não são membros das Nações Unidas, são

51 Carta de princípios da ONU: “A Carta das Nações Unidas foi assinada em São Francisco, a 26 de junho de

1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele mesmo ano. O Estatuto da Corte Internacional de Justiça é parte integrante da Carta”. Disponível em: http://nacoesunidas.org/carta/. Acesso em 15 de dezembro de 2014, às 18h03.

extracomunitários, com interesses extracomunitários53.

Além disso, a construção discursiva de que “somente em nome de um interesse comum” é que se usaria a força armada reproduz a intencionalidade do progresso cujo centro é o capital e não o homem; racionalidade que naturaliza a guerra e a coloca numa dimensão marginal. Se for necessário intervir de maneira armada em nome de um bem comum, é “aceitável”; como assevera Marcuse (2002), a tortura tem sido reintroduzida como uma questão normal; desde que se trate de um tipo de guerra colonial, que ocorra às margens do “mundo civilizado”. Uma guerra marginalizada, por essa racionalidade, é vista até com boa consciência, uma vez que “this war is at the margin – it ravages only the ‘underdeveloped’ countries. Otherwise,

peace reigns” (MARCUSE, 2002, p.88). Portanto, a guerra necessária para manter os

interesses comuns do “mundo civilizado” faz parte do “pacote” global e é amplamente sustentada pelos discursos de segurança e paz, asseguradas por agentes hegemônicos globais como a ONU.

Os órgãos principais das Nações Unidas são: uma Assembleia Geral, um Conselho de Segurança, um Conselho Econômico e Social, um Conselho de Tutela, uma Corte Internacional de Justiça e um Secretariado. Aqui, vou fazer mais considerações acerca do Conselho Econômico e Social, uma vez que me interessa compreender a articulação entre os discursos da esfera econômica e da esfera social desses agentes hegemônicos da Globalização e a força desses discursos na cadeia de sentidos que tentam construir um pensamento único.

O Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, que é composto por cinquenta e quatro membros eleitos pela Assembleia Geral, tem entre suas atribuições a função de produzir estudos e relatórios a respeito de assuntos internacionais de caráter

econômico, social, cultural, educacional, sanitário e conexos e poderá fazer recomendações a respeito de tais assuntos à Assembleia Geral, aos membros das Nações Unidas e às agências

53 Quero ressaltar, ainda, que a comunidade de interesses relativos à manutenção da paz tem um conselho

específico, cuja composição é expressa na Carta de Princípios da ONU: O Conselho de Segurança será

composto de quinze membros das Nações Unidas. A República da China, a França, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e os Estados Unidos da América serão membros permanentes do Conselho de Segurança. A Assembleia Geral elegerá dez outros membros das Nações Unidas para membros não permanentes do Conselho de Segurança, tendo especialmente em vista, em primeiro lugar, a contribuição dos membros das Nações Unidas para a manutenção da paz e da segurança internacionais e para os outros propósitos da Organização e também a distribuição geográfica equitativa. Disponível em: http://nacoesunidas.org/carta/cap5/. Acesso em 15 de dezembro de 2014, às 18h21.

especializadas interessadas54. Esse ponto é fundamental para a compreensão que venho construindo até aqui, já que todos os agentes globais que fazem parte das análises neste capítulo produzem seus estudos e, a partir deles, publicam relatórios com resultados e índices por eles construídos e apresentam recomendações a serem seguidas por diferentes instâncias em nível global. Esses agentes – ou “governos mundiais” –, sejam eles Fóruns, Bancos, Fundos ou Organizações, produzem discursos que justificam e sustentam suas ações, e esses discursos são, inclusive, de ordem documental, dentro dos mesmos padrões no que diz respeito aos tipos e formas de seus enunciados, e, a partir deles, vão imprimindo tentativas de homogeneização do pensamento mundial. Haja vista a materialidade estética dos documentos da ONU em relação a documentos produzidos por outros agentes hegemônicos globais, como será exposto mais adiante.

O axioma There is no alternative [Não há nenhuma alternativa] vai se fortalecendo à medida que uma trama extremamente complexa e dinâmica vai se entrecruzando e interpenetrando nas diversas esferas de atividade humana, seguindo padrões homogeneizados e homogeneizantes, o que corrobora para a construção de um modo único de pensar sobre o mundo e de organizar as relações mundiais. Os Relatórios são um lugar em que essas vozes homegeneizadoras refletem e refratam as ações de construção de unicidades, uniformidades e homogeneidades, típicas do período da Globalização.

Desde 1991, foram publicados pela ONU vinte e quatro relatórios. Três deles tratam mais especificamente da competitividade – Transnational Corporations and Competitiveness [Corporações Transnacionais e Competitividade], de 1991; Transnational Corporations,

Market Structure and Competition Policy [Corporações Transnacionais, Estrutura de Mercado e Política de Competição], de 1997; e Transnational Corporations and Export

Competitiveness [Corporações Transnacionais e Competitividade de Exportação], de 2002. Em 2009, o Relatório Mundial de Investimento da ONU tratou do tema da Agricultura no Transnational Corporations, Agricultural Production and Development [Corporações Transnacionais, Produção Agrícola e Desenvolvimento]. Toda essa rede de ações, de eventos (como as grandes conferências organizadas por esses agentes ou as orientações para a formulação de políticas, por exemplo) e esses discursos sistematizados nos Relatórios Mundiais vão construindo justificativas para valorar as coisas do ponto de vista econômico,

transformando direitos em serviços e bens de consumo, alimentos em commodities. E o fazem de modo a atender um grande bem comum, que é o desenvolvimento e a estabilidade

econômica, que, por sua vez, são embasados na competitividade – ora como objetivo a ser alcançado, ora como justificativa – tão estimulada pelos agentes hegemônicos em níveis globais. Os relatórios e outras publicções desses agentes são um meio pelo qual ecoam as mono-lógicas do capitalismo neoliberal em tempos de Globalização.