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3.2 Discursos que sustentam a agricultura globalizada: diálogos entre Planos e Relatórios

3.2.9 Plano Agrícola e Pecuário 2008/2009

Na leitura do sumário do PAP 2008/2009, há uma diferença importante em relação ao PAP do ano-safra anterior, como é possível constatar nas Figuras 28 e 29. No documento do ano-safra 2008/2009, o título do item seguinte à Introdução expressa Crédito para a Agricultura

Empresarial, enquanto o documento de 2007/2008, também no item que trata do crédito, traz

Crédito rural para a agropecuária. Quanto a essa diferença, é importante ressaltar: a) de um ano para o outro, o crédito deixou de ser rural e passou a ser somente crédito; b) a palavra

agropecuária, no Plano de 2007/2008, designava as atividades que receberiam o crédito, o que, no Plano 2008/2009, passa a ser designado pela expressão Agricultura Empresarial; c) no documento de 2007/2008, entre a Introdução e o item que trata do crédito, há um outro item que discorre sobre A agropecuária brasileira como prioridade, no entanto, mesmo sendo declarada como prioridade, a agropecuária passa a ser agricultura empresarial no documento do ano seguinte; d) no sumário de 2008/2009, a única vez em que essas atividades são designadas como agropecuária é no item que trata da Minimização de Riscos Climáticos no

Setor Agropecuário. Quando se relaciona ao crédito, quem recebe os recursos do Ministério é a Agricultura Empresarial, no entanto, quem causa riscos climáticos que precisam ser minimizados é o Setor Agropecuário. Isso nos mostra que já no sumário dos Planos, do mesmo Ministério, a luta é expressa e se instaura no uso de um signo em vez de outro para designar um ou outro sentido, conformando-se aos interesses que se quer defender e compondo padrões discursivos para consolidação das valorações.

Figura 28 – Sumário PAP 2007/2008 – MAPA Figura 29 – Sumário PAP 2008/2009 - MAPA

Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2007/2008 Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2008/2009 (MAPA, 2007). (MAPA, 2008).

Na Introdução do Plano 2008/2009, já no primeiro parágrafo, as vozes das ideologias da competitividade global ressoam nas palavras do documento, quando ligam a produção agrícola e pecuária à sua contribuição para o crescimento da economia brasileira, posto que a competitividade global, assim como é pregada pelos agentes hegemônicos globais, vem sempre ligada aos signos crescimento, desenvolvimento e produtividade. Reproduzo aqui o trecho do documento: O revigorado desempenho do setor agropecuário, atestado por safras

recordes e acentuada expansão das exportações, tem dado importante contribuição para a retomada do crescimento da economia brasileira. Esse fato é percebido, especialmente, no

atual cenário econômico internacional que, mesmo com seus efeitos adversos, tem perspectivas favoráveis em relação ao mercado agrícola mundial e às possibilidades de expansão do agronegócio brasileiro nos mercados interno e externo” (p.7).

As vozes dos discursos da competitividade vão sendo refletidas e refratadas ao longo de todo o documento. Por meio da palavra “competitividade”, aparece somente duas vezes, nas sentenças Finalidade do crédito: aumentar a competitividade do complexo agroindustrial das

cooperativas brasileiras por meio da modernização dos sistemas produtivos e de comercialização (p.21) [justificando os recursos para financiamento do Programa de Desenvolvimento Cooperativo para Agregação de Valor à Produção Agropecuária – Prodecoop] e ao descrever as ações para o Agronegócio do Café, no trecho [o Programa Desenvolvimento da Economia Cafeeira] destina-se também ao desenvolvimento de pesquisas

e incentivo à produtividade e competitividade dos setores produtivos, qualificação da mão-de- obra e promoção e marketing dos Cafés do Brasil nos mercados interno e externo (p.58). Nos dois casos, a palavra competitividade aparece junto a verbos como aumentar e incentivar, o que corrobora a afirmação de que esta é uma característica que ora opera como justificativa, ora como alvo; nos casos descritos acima, a competitividade é, simultaneamente, justificativa e alvo, visto que o crédito e o Programa são justificados por ela e também expressam a necessidade de se buscar aumentá-la e incentivá-la.

Contudo, além das duas ocorrências da palavra competitividade, o adjetivo competitivo também compõe o discurso do PAP em dois momentos, quando afirma que o agronegócio

brasileiro é um dos mais competitivos do mundo e tem a seu favor fatores como a natureza, a tecnologia de produtos, altos índices de produtividade e ampla disponibilidade de terra para cultivo (p.65); e ao tratar da questão do transporte da safra: Concluídas as obras da Ferrovia

Norte-Sul, os produtores agrícolas do Tocantins, do Sul do Maranhão, do Leste do Mato Grosso e do Oeste da Bahia terão a alternativa de escolher o modal de transporte mais competitivo, ou utilizar o transporte multimodal, para embarcar o produto pelos portos da região Centro-Norte (p.66). No primeiro trecho, há a afirmação de que o Brasil está entre os países mais competitivos no que diz respeito ao agronegócio; no segundo, há a indicação de que os produtores agrícolas de algumas regiões poderão optar por um transporte mais competitivo. Mesmo o adjetivo competitivo, no documento, também expressa a necessidade de se atingirem maiores níveis de competitividade e carrega sentidos de que é vantajoso ser competitivo.

Ainda há as vozes das ideologias da competitividade mesmo sem o emprego específico desse signo. É possível auscultar essas vozes quando colocamos o PAP em relação com os Relatórios do Fórum Econômico Mundial, especialmente se recorrermos aos doze pilares da competitividade, estabelecidos por esse agente para classificar os países. Nesse exercício de ausculta, estão presentes o primeiro pilar [Instituições], quando olhamos para a própria ação de elaboração do Plano Agrícola, que é uma ação da instituição brasileira à qual compete as atividades relativas à agricultura e à pecuária em larga escala – o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; o segundo pilar [Infraestrutura], por exemplo, no trecho em que o documento afirma que uma de suas contribuições é atenuar os efeitos negativos das

deficiências de infraestrutura e das atividades climáticas (p.7); o terceiro pilar [Ambiente

macroeconômico], no trecho [...] esse plano busca aprimorar os instrumentos de política

agrícola em sintonia com os mercados agrícolas interno externo e com o cenário macroeconômico (p.7). Nesse trecho, há também o diálogo com o primeiro pilar [Instituições], por conta da formulação de políticas agrícolas, com o sexto pilar [Eficiência do mercado de

produtos] e com o décimo pilar [Tamanho do mercado]. Além disso, o discurso da sustentabilidade é bastante recorrente ao longo de todo o documento.

Outro ponto do qual quero tratar aqui diz respeito às palavras e expressões empregadas para designar as atividades agrícolas e pecuárias: setor agropecuário, agronegócio, produção de

grãos, setor produtivo, atividades agropecuárias, agropecuária, agricultura empresarial,

produção agropecuária, produção e comercialização de alimentos. Todas essas expressões foram empregadas somente no texto de Introdução do Plano. O que foi anunciado já no sumário referia-se a essas atividades como Agricultura Empresarial. O adjetivo empresarial dá ao substantivo agricultura tons de formalização e de inserção da atividade no cenário econômico. O crédito de R$65 bilhões é, portanto, destinado à agricultura em larga escala, formal, empresarial. Contudo, todas as outras expressões empregadas para tratar das atividades agrícolas contribuem para minimizar esse tom empresarial do agronegócio; à medida que todas essas palavras compõem o setor ao qual se destinam R$65 bilhões dos cofres públicos, o processo de tentativa de enfraquecimento das tensões constitutivas dos signos agronegócio e agricultura vai ganhando força79. Isso porque se se instaura a noção de que todas essas expressões referem-se à produção agrícola e pecuária no Brasil de um modo

79 Neste Plano Agrícola e Pecuário, a palavra agronegócio foi empregada 22 vezes, uma delas acompanhada

dos adjetivos responsável e sustentável. Já a palavra agricultura foi empregada 2 vezes sem nenhum adjetivo e em outros momentos com os adjetivos irrigada (1 vez), orgânica (1 vez), familiar (4 vezes),

geral, não fica clara a divisão entre agronegócio e agricultura familiar, por exemplo. No entanto, o próprio Plano declara essa cisão no ponto que trata do crédito: A oferta para a

agricultura empresarial, nesta safra, é de R$65 bilhões, 12% a mais do que o previsto para a safra anterior, além dos R$13 bilhões para a agricultura familiar (p.13). Aqui, há a separação entre as duas frentes de atividade de produção agrícola, contudo, em vez do emprego do signo

agronegócio, o texto traz a expressão agricultura empresarial contrapondo-se à agricultura

familiar. Outro ponto que demonstra qual a ênfase das políticas para a agricultura no Brasil é o próprio valor destinado a cada atividade: a agricultura empresarial recebeu na sagra 2008/2009 R$52 bilhões a mais que a agricultura familiar.

A constância do uso de todas essas expressões como se fossem sinônimos vai entrando no horizonte cognoscitivo dos grupos sociais e vai modificando gradualmente as valorações que se atribuem a um ou a outro signo. Esse processo complexo e dinâmico instaura as tentativas de aparar as arestas constituintes dos diferentes interesses de classe que fazem parte da esfera de atividade agrícola brasileira. E o signo competitividade, bem como suas vozes e fios ideológicos, compõem toda essa trama de relações, ora como justificativa, ora como alvo, via discursos globais hegemônicos e hegemonizantes.