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3.2 Discursos que sustentam a agricultura globalizada: diálogos entre Planos e Relatórios

3.2.6 Plano Agrícola e Pecuário 2005/2006

Diferentemente dos Planos Agrícolas e Pecuários de anos anteriores analisados até aqui, o PAP 2005-2006 se inicia com uma introdução retomando a produção das duas safras anteriores – 2003/2004 e 2004/2005 –, que, segundo o que se apresenta no texto do documento, deixaram de superar a produção recorde do ano-safra 2002/2003, em função das adversidades causadas pelas condições climáticas e de um cenário de custos e preços

adversos para a atividade agropecuária. Esta combinação de adversidades, ainda segundo o que se lê no Plano, impôs à agricultura brasileira rentabilidade bem menor do que a

esperada, afetando a capacidade de investimento e a liquidez dos produtores rurais e de suas cooperativas. Para esquematizar esse conjunto de acontecimentos, o texto do documento75 apresenta uma figura – intitulada A equação da crise agrícola –, que resume o processo todo vivido pelo setor em 2005 (Figura 25).

75 “A figura acima procura resumir o processo vivido pela agricultura brasileira de grãos, em 2005. Por ocasião

do plantio, insumos estavam mais caros, em função da maior demanda e do real relativamente desvalorizado. Os preços dos grãos estavam em baixa, em razão da maior oferta mundial. De um modo geral, os produtores brasileiros haviam aumentado seus investimentos, na forma de ampliação de área e emprego de tecnologia mais aprimorada. Veio a seca, impondo quebra significativa da produção. Tudo isso combinado, levou à perda de renda o que foi agravado pelo sucateamento da infra-estrutura de transportes, levado à situação de crise hoje enfrentada”.

Figura 25 – Esquema-resumo da crise agrícola vivida em 2005.

Fonte: Plano Agrícola e Pecuário 2005/2006

(MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO, 2005).

Vale ressaltar aqui que toda a descrição e esquematização feita pelo Plano não trata de uma crise relativa a questões de abastecimento do país, mas de uma crise produtiva, que não foi capaz de bater safras-recordes e, dessa forma, não resultou em retorno satisfatório de todo o capital e de toda a tecnologia empregados. A crise descrita é uma crise na rentabilidade que não afetou o abastecimento, mas a capacidade de investimento e a liquidez dos produtores rurais; dos produtores rurais e não necessariamente dos agricultores. Esses signos da forma como foram empregados já vão delineando o rumo argumentativo do Plano. As medidas por ele anunciadas vão, pelo que começa a se auscultar aqui, tratar de questões relativas à capacidade de investimento e retorno desse investimento, bem como à busca pela recuperação da capacidade produtiva do setor agrícola.

Todo esse trecho introdutório do Plano 2005-2006 se constrói para justificar que esse documento e todo o seu conteúdo se lançam como reação ao cenário descrito: Em resposta, o

Governo adotou uma série de medidas emergenciais de apoio ao setor [...]. Dessa forma, o Plano desse ano-safra não se apresenta, então, como novas projeções para o setor mas como medida de emergência para a sua recuperação, o que se lê no trecho em que é declarado que esse Plano tem o objetivo de auxiliar no processo de recuperação da agricultura, mantendo

ambição quanto aos resultados pretendidos e às políticas definidas. As duas ações são descritas como objetivo: a recuperação da agricultura – considerando que a produção de grãos não superou o recorde dos dois anos-safra anteriores – e a manutenção da ambição para os próximos resultados.

Há nesse texto introdutório do Plano uma expressão forte da preocupação do Ministério com a questão da produtividade. Essa questão da busca constante pelo aumento da produtividade nas diferentes esferas de atividade está, em grande medida, relacionada ao discurso da competitividade, uma vez que, nos discursos hegemônicos globais, os níveis de produtividade de um determinado país refratam sua capacidade competitiva. Retomando, ainda mais uma vez, o texto dos Relatórios Globais de Competitividade, ao apresentar os doze pilares que indicam e sustentam os níveis de competitividade, o Fórum Econômico Mundial define a competitividade como o conjunto de instituições, políticas e fatores que determinam o nível

de produtividade de um país. E os Relatórios ainda discorrem um pouco mais sobre aquilo que entende por produtividade: O nível de produtividade, por sua vez, determina o nível de

prosperidade que pode ser alcançado por uma economia. Nessa perspectiva, tomando a definição dada sobre a competitividade pelo Fórum, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento compõe o conjunto de instituições, as medidas de auxílio para a recuperação da agricultura e para a manutenção das ambições do setor compõem as políticas e fatores que vão auxiliando na construção dos níveis de produtividade do nosso país, já que o PAP 2005- 2006, por exemplo, Prevê uma produção de grãos próxima a 125 milhões de toneladas […] nessa safra.

Embora a palavra competitividade não componha esse documento, sua voz e seus sentidos compõem as tecituras daquilo que aqui se lê e se ausculta. Ainda no texto dos Relatórios Globais de Competitividade, lemos que O nível de produtividade também determina as taxas

de retorno obtidas por investimentos numa economia, que, por sua vez, são motores fundamentais para suas taxas de crescimento. Garantindo uma maior produtividade para o setor agrícola brasileiro, garante-se também um maior crescimento. Aliado a toda essa complexa trama de políticas e ações, o Plano Agrícola 2005-2006 ainda prevê um fortalecimento dos laços entre o setor público e o privado, criando também novos títulos

voltados ao agronegócio para atrair recursos financeiros privados ao financiamento da

atividade. E o texto introdutório desse PAP [que nesse ano-safra não vem com a assinatura do Ministro] ainda afirma que as medidas e inovações por ele anunciadas estão realmente indo

ao encontro das demandas da moderna agropecuária brasileira. Interessa-me aqui destacarmos o emprego da expressão moderna agropecuária brasileira; esse termo, em outros momentos, já compôs discursos com o sentido de agronegócio. O emprego do adjetivo

moderna antecedendo o substantivo agropecuária dá a este uma qualidade que, quando aparece sozinho, não expressa. Por esse emprego, podemos compreender que agropecuária

brasileira é diferente de moderna agropecuária brasileira; diferente de agropecuária

brasileira moderna ou ainda de agropecuária moderna brasileira.

Na página 7 do PAP 2005-2006, são apresentados os quatro grandes objetivos do Plano. Dentre eles, o signo competitividade aparece uma única vez, no segundo objetivo, que diz:

Estimular a modernização e a competitividade do agronegócio, mediante o financiamento de investimentos produtivos e da infra-estrutura do meio rural. Nesse objetivo, é possível observarmos os termos modernização e competitividade compondo aquilo que as medidas anunciadas pelo Plano pretendem estimular no agronegócio. Dessa forma, além de compor um dos grandes objetivos do documento, esses dois termos também nos auxiliam na construção da compreensão do que afirmei anteriormente em relação à moderna agropecuária estar ligada ao agronegócio. Outra observação que podemos fazer acerca desse segundo objetivo é que o estímulo à modernização e à competitividade se dará mediante o

financiamento de investimentos produtivos, ou seja, mais uma vez a questão da produtividade constitui a tecitura dos discursos que vão justificando os investimentos e as medidas direcionadas ao agronegócio brasileiro, o que reforça a afirmação de que produtividade é um dos tentáculos discursivo-ideológicos da competitividade.

E essa tecitura ainda se constitui pelo entrecruzamento de tantos outros fios ideológicos do campo da competitividade: o primeiro objetivo afirma que as medidas anunciadas pelo PAP 2005-2006 vão Apoiar o produtor rural, objetivando contornar as dificuldades presentes e

retomar o processo de crescimento da produção, com sustentabilidade ambiental e econômica, aumentando as oportunidades de inclusão social, geração de emprego e renda. A respeito desse objetivo, podemos construir algumas compreensões: a) novamente as medidas declaram a busca pelo crescimento da produção, o que podemos remeter à questão da produtividade como grande alvo da competitividade expresso pelo Relatório do Fórum Econômico Mundial; b) a sustentabilidade (ambiental e econômica) é também um dos alvos e uma das âncoras desses discursos hegemônicos globais, que vão imprimindo ideologias ligadas a uma vontade [quase cristã] de explorar os recursos ambientais e econômicos sem saturá-los; c) a inclusão

social, geração de emprego e renda, embora possam, num primeiro momento – assim como o discurso da sustentabilidade – parecer um contraponto para promover um certo equilíbrio entre esses objetivos, também se constituem entre os pilares que pautam a medida dos níveis de competitividade dos países na esfera global. Como possibilidade de compreensão, podemos afirmar que o 4º e o 5º pilares [Saúde e educação primária e educação superior e

treinamento, respectivamente76] absorvem os sentidos de inclusão social, geração de emprego

e renda, refletindo e refratando também a competitividade como alvo dessas medidas anunciadas.

É muito importante trazermos para cá o desenvolvimento apresentado pelo texto do Relatório acerca desses pilares. Em relação ao quarto pilar [Saúde e educação], o Relatório afirma que

uma força de trabalho saudável é vital para a competitividade e produtividade de um país. Trabalhadores que estão doentes não podem realizar seu potencial e serão menos produtivos. A falta de saúde leva a custos para os negócios, já que trabalhadores doentes geralmente faltam ao trabalho ou operam em níveis menores de eficiência. Investimentos na provisão de serviços de saúde são essenciais tanto para considerações econômicas, quanto para as morais. Esse quarto pilar ainda é composto pela educação e, ainda segundo o Relatório, a Educação Básica aumenta a eficiência de cada trabalhador. Além disso, geralmente os trabalhadores que receberam pouca educação formal podem desenvolver somente tarefas manuais simples e encontram muito mais dificuldade para se adaptar a processos produtivos e técnicas mais avançados e, por conseguinte, contribuem menos para a elaboração ou execução de inovações77. No que diz respeito ao quinto pilar [Educação Superior e Treinamento], o Fórum Econômico Mundial apresenta suas razões para considerar a educação superior como uma das medidas dos níveis de competitividade dos países: particularmente, a economia

globalizada de hoje requer países que nutram trabalhadores bem educados que sejam capazes de desempenhar tarefas complexas e de se adaptar rapidamente às mudanças de ambiente e às necessidades envolvidas no sistema de produção. Este pilar mede as taxas de matrículas no ensino médio e superior assim como a qualidade de educação avaliada de acordo com lideranças dos negócios. São pilares extramente funcionais, direcionados ao atendimento das exigências e metas estipuladas pelo discurso hegemônico da competitividade global.

76 4º Pilar da Competitividade: Health and primary education; 5º Pilar: Higher education and training. 77

“A healthy workforce is vital to a country's competitiveness and productivity. Workers who are ill cannot

function to their potential and will be less productive. Poor health leads to significant costs to business, as sick workers are often absent or operate lower levels of efficiency. Investment in the provision of health services is thus critical for clear economic, as well as moral, considerations. In addition to health, this pillar takes into account the quantity and quality of the basic education received by the population, whic is increasingly important in today's economy. Basic education increases the effciency of each individual worker. Moreover, often workers who have received little formal education can carry out only simple manual tasks and find it much more difficult to adapt to more advanced production processes and techniques, and therefore contribute less to devising or executing innovations” (WORLD ECONOMIC FORUM, 2013, p.6).

Ainda no que diz respeito aos objetivos declarados pelo PAP 2005-2006, o terceiro e o quarto deles também ressoam as vozes de um discurso global da competitividade: 3º) Atrair recursos

dos mercados financeiro e de capitais para financiar o agronegócio por meio dos novos instrumentos regulamentados no final de 2004 e no decorrer de 2005; e 4º) Reduzir o risco

inerente à atividade agropecuária, através da expansão do seguro rural. Esses dois objetivos, ligados à esfera financeira dentro da esfera produtiva agrícola, refletem e refratam os sentidos do oitavo pilar [Eficiência do Mercado Financeiro78] à medida que vão buscando atingir maior eficiência e sofisticação nas operações financeiras e nas garantias de retorno dentro das ações da esfera agrícola brasileira, buscando melhores posições no ranking global de competitividade. O texto que explica o 8º pilar no Relatório afirma que um setor financeiro eficiente aloca os recursos poupados pelos cidadãos de uma nação, bem como aqueles

recursos vindos do exterior para os usos mais produtivos. Um setor eficiente, ainda segundo o documento, canaliza recursos para projetos empresariais ou de investimentos com maiores expectativas de retorno do que aqueles politicamente conectados.

Dessa forma, cotejando os textos dos Relatórios e do Plano Agrícola desse ano-safra, auscultamos a voz dos pilares medidores da competitividade no direcionamento e no planejamento das ações que envolvem as atividades agrícolas brasileiras em larga escala, à medida que os dois discursos parecem caminhar de forma interpenetrada e entrecruzada.

Esse exercício de ausculta e compreensão nos traz a possibilidade de nos colocarmos à escuta do diálogo no interior de um mesmo discurso. O próprio conjunto de signos constituintes desse Plano Agrícola e Pecuário nos permite escutar diferentes vozes que vão compondo seus sentidos. Esse diálogo se nos mostra nos discursos uma vez que, como afirma Augusto Ponzio em conversa com Susan Petrilli e Massimo Bonfantini, “O diálogo não é uma iniciativa de sujeitos separados, mas é a própria condição do sujeito, porque é estrutural ao discurso, fato que nenhuma ideologia homologante poderá anular” (PONZIO, 2012, p.134). As vozes

78 8º Pilar: Financial market eficiency: An efficient financial sector allocates the resources saved by a nation’s

citizens, as well as those entering the economy from abroad, to their most productive uses. It channels resources to those entrepreneurial or investment projects with the highest expected rates of return rather than to the politically connected. A thorough and proper assessment of risk is therefore a key ingredient of a sound financial market. Business investment is also critical to productivity. Therefore economies require sophisticated financial markets that can make capital available for private-sector investment from such sources as loans from a sound banking sector, well-regulated securities exchanges, venture capital, and other financial products. In order to fulfill all those functions, the banking sector needs to be trustworthy and transparent, and—as has been made so clear recently—financial markets need appropriate regulation to protect investors and other actors in the economy at large (WORLD ECONOMIC FORUM, 2013, p.7).

constitutivas dos diálogos internos nesse PAP se nos mostram, portanto, porque o discurso expresso por esse documento já é uma resposta a vários discursos outros que circulam e circularam nas diferentes esferas de atividade humana e essas vozes são auscultadas na própria estrutura dos enunciados que compõem esses discursos, uma vez que lhes são estruturais, na relação com outros discursos.

O fato de reconhecermos a ideologia hegemônica da busca pela competitividade (alvo) ou da competitividade sustentando ações diversas no cenário da “moderna agropecuária brasileira”, esse fato se deve ao caráter dialógico dos discursos que já nascem em resposta a outros discursos e outras ideologias, reafirmando-os, negando-os, refutando-os, desvalorizando-os, enaltecendo-os, usando-os como argumentos, entre tantas outras possibilidades de significados e de vozes que aqui poderíamos elencar.